Foi a nota
mais desafiante que o Presidente do Conselho Pontifício para a Cultura deixou,
nos dias 30 e 31, ao clero do sul no sentido de este prosseguir “o esforço de
inculturação” – no quadro das jornadas de formação do clero do sul, promovidas
pelo Instituto Superior de Teologia de Évora, sobre o tema “Desafios para uma
Igreja Semper Renovanda’
Secularização, Diálogo, Discernimento”, que estão a decorrer em Albufeira, no
Hotel “Alísios”.
O cardeal italiano
Gianfranco Ravasi veio ao Algarve defender a “abertura ao diálogo” por parte da
Igreja, advertindo ser preciso “entrar no horizonte do mundo e sujar as mãos e
os pés” para dar vida à “Igreja em saída”, de que fala Francisco.
Aos bispos,
presbíteros e diáconos das dioceses do Algarve, Beja, Évora e Setúbal que realizam,
em Albufeira, a sua formação anual, o orador frisou que este objetivo implica a
“escuta e o respeito do outro” por contraposição ao “fundamentalismo”. E considerou
que a relação entre o Cristianismo e a sociedade deve ser marcada
pelo “otimismo”, precisando que o diálogo é o método para “entrar no mundo”.
O teólogo e
biblista considerou que isso se inscreve na cultura do encontro e que esse
“encontro” implica “conservar a própria identidade”, “conhecer a própria
mensagem” e “guardar o próprio anúncio” por contraposição ao “sincretismo”.
Na
conferência sobre o tema “Diálogo: a nova
postura de uma Igreja em saída”, a primeira das que proferiu, o purpurado acentuou
que “o Cristianismo não é uma religião de seita, que esteja protegida num
oásis, fechada em si mesma”, embora tenha, por vezes, essa tentação. Antes aludiu
ao “desencanto do mundo”, distinguindo três elementos na secularização –
secularismo, indiferença e secularidade –, considerando os dois primeiros como
negativos e o terceiro como positivo.
Começando
por se focar no “conceito de verdade”, sustentou que “a verdade era objetiva”,
mas que a têm vindo a tornar-se “refinadamente subjetiva”.
No contexto
do “secularismo”, apontou a opção generalizada pelo “primado técnico-científico”,
sendo que, por esta via, a verdade nos é dada “sob o ponto de vista científico”.
Por outro
lado, observou que também uma das caraterísticas do mundo fortemente secularizado
é “a ‘bulimia’ dos meios e a ‘anorexia’ dos fins”.
E, como
último exemplo do secularismo indicou a “urbanização”, referindo-se ao “fenómeno
das megalópoles”, onde se perde a “individualidade numa espécie de mundo
cinzento onde se desintegram as tradições, a identidade”, lamentando que “o
símbolo da casa da cidade” seja “a porta blindada, atrás da qual vivem pessoas
que, quando morrem, só são descobertas 15 dias depois”, dada a obsessão da azáfama
e a síndrome da indiferença.
No âmbito da
“indiferença”, aquele responsável da Santa Sé criticou o “apateísmo”, que é “fruto
da união da apatia e do ateísmo”, vindo a ser esta “uma das doenças mais graves
do nosso tempo”. E aludiu ao “descarte” como “algo que rompe a harmonia da
sociedade” e vota ao desdém as pessoas e as coisas tidas como já não
necessárias ou inúteis ou indesejáveis.
Por último, nesta
primeira conferência, Dom Gianfranco Ravasi abordou a secularidade, como
“caraterística positiva do Cristianismo”, lembrando que, no quadro da
secularidade ou laicidade positiva, “a Igreja deve respeitar as normas do
Estado e as leis da economia, mas deve também ao mesmo tempo ser uma voz
critica que defende os valores da pessoa”. Neste sentido, criticou a
“estatolatria” que secundariza a fé promovendo a “redução da religião e da
Igreja ao âmbito privado”.
Entre outros
exemplos da “secularidade positiva”, apontou a “leitura histórico-crítica e não
fundamentalista da Bíblia”.
***
No decurso
da segunda conferência que produziu nas jornadas de formação do clero do sul, o
Presidente do Conselho Pontifício para a Cultura apresentou uma segunda
reflexão sobre o tema “A evangelização da
Cultura: desafio e tarefa ingente”.
Foi nesta
intervenção que Ravasi disse ser preciso prosseguir o esforço de “inculturação”,
que, afinal, o Cristianismo “sempre fez”. E lembrou que “a Bíblia atravessou
quantas culturas e assumiu-as”.
Aquele
responsável da Santa Sé, que provocou a reflexão sobre o tema do desafio e tarefa
da evangelização da Cultura, referiu, neste âmbito, três dimensões: “ciência e
antropologia; infoesfera; e arte e fé”. E desafiou os cerca de cem
participantes a assumir os desafios que estas áreas encerram, a “não ter medo”
nem a “ficar de fora” deles, advertindo que “estamos a viver nesta época uma
revolução e não podemos ficar de fora, agarrados ao passado, um passado tantas
vezes usado somente por outros para condicionar o ontem de maneira
fundamentalista”.
Chamando a
atenção para a necessidade de “evangelizar e comunicar no mundo digital”, o
teólogo e biblista considerou que a Igreja deve “purificar” e atualizar a sua
linguagem. Referiu que “a nossa linguagem é demasiado eclesiástica”. É certo que
“tem valores, mas é pouco compreensível no mundo de hoje”. E frisou que “acultura
contemporânea não consegue entrar em sintonia com ela”, apelando ao “cuidado
com a comunicação”.
Lamentando que
“usamos ainda demasiada retórica”, defendeu o regresso a “um discurso mais
incisivo”, particularmente na homilia. Advertindo que “a homilia é um género
literário”, sustentou que, ainda assim, “não podemos continuar a pregar como se
estivéssemos perante o público de há 50 anos, mesmo que sejam idosos”.
Assegurou que,
neste âmbito, “a cultura contemporânea, pela sua própria natureza, está ligada
à imagem”, que tem o papel principal, sobrepondo-se às palavras que “são só um
suporte”, e exortou ao regresso à criação de “imagens comunicativas”. Aduziu que
Jesus nos ensinou este método e este estilo, pois habitualmente “falava por parábolas”,
e lembrou que o discurso do Papa Francisco se concretiza muito naquela modalidade
de estilo.
Chamando à
colação uma “nova categoria de “cultura” – o seu cariz antropológico – e uma
“mudança” do seu próprio conceito, o conferencista apelou ao “diálogo entre a
fé, a ciência e a arte”, considerando que “todos contêm algo de Deus”. Neste
quadro da nova categoria de cultura, defendeu a “continuidade com a riqueza do
passado na multiplicidade das expressões atuais”.
Ravasi
abordou ainda as áreas da manipulação e da engenharia genéticas, da
neurociência, da robotização e da inteligência artificial, designadamente ao
nível da criação de máquinas que têm em vista não só “decidir como
comportar-se”, mas inclusivamente chegar à “autoconsciência”. Observando que “a
inteligência artificial é um campo que exige uma forte atenção cultural, ética
e pastoral”, considerou ser “necessário voltar a uma visão do homem mais
completa”, pois, segundo afirmou, “a ciência e a técnica de hoje são muito
especializadas, mas ignoram muitos outros setores”.
Depois, o cardeal
da Cúria Romana referiu-se à “infoesfera” – a segunda dimensão da evangelização
da cultura – como o “desafio da comunicação atual”, considerando que hoje se
assiste à “quarta revolução da época moderna”, a da “revolução informática”,
“depois da revolução científica, social e psicanalítica”. E sustentou não de tratar
de “uma questão de técnica”, de “uma revolução global, antropológica”.
O cardeal responsável
eclesiástico pela Cultura disse ainda haver “um novo modelo humano de relação”.
Com efeito, na sua ótica, “a comunicação hodierna é a passagem a uma nova
condição humana; é um novo mundo”. E lembrou os nativos digitais e os “millennials”,
termo utilizado para os nascidos depois do ano 2000.
Por fim,
lembrou os “riscos” deste novo modelo como a “perda da capacidade crítica” ou a
“incapacidade da verificação critica”. E, evidenciando que “este é um mundo,
por excelência, virtual” e que “este virtual, na realidade, é também real”,
exortou a comunidade cristã a “conservar, na virtualidade, o encontro
concreto”, visto que “a pessoa humana precisa do encontro”.
***
Em suma, o Presidente do Conselho Pontifício da
Cultura questionou as visões de futuro da humanidade baseadas exclusive na
tecnologia, alertando para as questões inéditas levantadas pela evolução neste
campo. E, a respeito da inteligência artificial, disse:
“Chega-se ao ponto, que considero absurdo, de se introduzir na Europa o
conceito de personalidade eletrónica. Estamos perante algo, em si, muito
positivo, para o desenvolvimento social, técnico, da produção, mas que implica
igualmente o surgimento de interrogações”.
Apontou limitações a propostas como as de Stephen Gould, no
princípio designado como ‘NOMA’, ‘Non-overlapping magisteria’ (magistérios que não se
sobrepõem), precisando:
“Para explicar a pessoa humana, não basta o nível científico; são
precisos mais magistérios. Gould dizia que não se sobrepunham, eram
independentes, não conflituais, mas eu diria que isto não é completamente
verdade. O sujeito é sempre o mesmo e o objeto é o mesmo, pelo que acontecem
fenómenos em que [os magistérios] se enredam, confrontos entre a teologia e a
ciência.”.
Sublinhando a importância do diálogo neste campo, propôs aos
cientistas “uma visão mais completa, mais universal, mais humana” e defendeu:
“Não basta responder à pergunta ‘como é que isto acontece?’, é preciso
questionar: ‘porque é que eu faço isto’?”.
Este cultíssimo colaborador do Papa entende também que a Igreja
não pode, “com base em receios”, pronunciar só “julgamentos negativos”, o que
não é recomendável: não é este o caminho.
As intervenções sobre o ADN e a evolução das neurociências foram
outros campos abordados pelo cardeal, para quem importa o discurso teológico de
estar presente, “sem demonizar, porque há dados positivos”, mas fazendo notar a
sua “defesa da figura humana”.
O líder do dicastério romano para a Cultura sustenta que a Igreja Católica deve procurar envolver-se com a
sociedade, “não só teoricamente, mas também em concreto”, como na questão das
migrações. E deixa um claro alerta contra fundamentalismos e populismos
“verdadeiramente racistas”, que considera “anticristãos”. A via é a do respeito
e do diálogo!
2018.01.31 – Louro de Carvalho
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