quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

É preciso “entrar no horizonte do mundo e sujar as mãos e os pés”

Foi a nota mais desafiante que o Presidente do Conselho Pontifício para a Cultura deixou, nos dias 30 e 31, ao clero do sul no sentido de este prosseguir “o esforço de inculturação” – no quadro das jornadas de formação do clero do sul, promovidas pelo Instituto Superior de Teologia de Évora, sobre o tema “Desafios para uma Igreja Semper Renovanda’ Secularização, Diálogo, Discernimento”, que estão a decorrer em Albufeira, no Hotel “Alísios”.
O cardeal italiano Gianfranco Ravasi veio ao Algarve defender a “abertura ao diálogo” por parte da Igreja, advertindo ser preciso “entrar no horizonte do mundo e sujar as mãos e os pés” para dar vida à “Igreja em saída”, de que fala Francisco.
Aos bispos, presbíteros e diáconos das dioceses do Algarve, Beja, Évora e Setúbal que realizam, em Albufeira, a sua formação anual, o orador frisou que este objetivo implica a “escuta e o respeito do outro” por contraposição ao “fundamentalismo”. E considerou que a relação entre o Cristianismo e a sociedade deve ser marcada pelo “otimismo”, precisando que o diálogo é o método para “entrar no mundo”.
O teólogo e biblista considerou que isso se inscreve na cultura do encontro e que esse “encontro” implica “conservar a própria identidade”, “conhecer a própria mensagem” e “guardar o próprio anúncio” por contraposição ao “sincretismo”.
Na conferência sobre o tema “Diálogo: a nova postura de uma Igreja em saída”, a primeira das que proferiu, o purpurado acentuou que “o Cristianismo não é uma religião de seita, que esteja protegida num oásis, fechada em si mesma”, embora tenha, por vezes, essa tentação. Antes aludiu ao “desencanto do mundo”, distinguindo três elementos na secularização – secularismo, indiferença e secularidade –, considerando os dois primeiros como negativos e o terceiro como positivo.
Começando por se focar no “conceito de verdade”, sustentou que “a verdade era objetiva”, mas que a têm vindo a tornar-se “refinadamente subjetiva”.
No contexto do “secularismo”, apontou a opção generalizada pelo “primado técnico-científico”, sendo que, por esta via, a verdade nos é dada “sob o ponto de vista científico”.
Por outro lado, observou que também uma das caraterísticas do mundo fortemente secularizado é “a ‘bulimia’ dos meios e a ‘anorexia’ dos fins”.
E, como último exemplo do secularismo indicou a “urbanização”, referindo-se ao “fenómeno das megalópoles”, onde se perde a “individualidade numa espécie de mundo cinzento onde se desintegram as tradições, a identidade”, lamentando que “o símbolo da casa da cidade” seja “a porta blindada, atrás da qual vivem pessoas que, quando morrem, só são descobertas 15 dias depois”, dada a obsessão da azáfama e a síndrome da indiferença.
No âmbito da “indiferença”, aquele responsável da Santa Sé criticou o “apateísmo”, que é “fruto da união da apatia e do ateísmo”, vindo a ser esta “uma das doenças mais graves do nosso tempo”. E aludiu ao “descarte” como “algo que rompe a harmonia da sociedade” e vota ao desdém as pessoas e as coisas tidas como já não necessárias ou inúteis ou indesejáveis.
Por último, nesta primeira conferência, Dom Gianfranco Ravasi abordou a secularidade, como “caraterística positiva do Cristianismo”, lembrando que, no quadro da secularidade ou laicidade positiva, “a Igreja deve respeitar as normas do Estado e as leis da economia, mas deve também ao mesmo tempo ser uma voz critica que defende os valores da pessoa”. Neste sentido, criticou a “estatolatria” que secundariza a fé promovendo a “redução da religião e da Igreja ao âmbito privado”.
Entre outros exemplos da “secularidade positiva”, apontou a “leitura histórico-crítica e não fundamentalista da Bíblia”.
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No decurso da segunda conferência que produziu nas jornadas de formação do clero do sul, o Presidente do Conselho Pontifício para a Cultura apresentou uma segunda reflexão sobre o tema “A evangelização da Cultura: desafio e tarefa ingente”.
Foi nesta intervenção que Ravasi disse ser preciso prosseguir o esforço de “inculturação”, que, afinal, o Cristianismo “sempre fez”. E lembrou que “a Bíblia atravessou quantas culturas e assumiu-as”.
Aquele responsável da Santa Sé, que provocou a reflexão sobre o tema do desafio e tarefa da evangelização da Cultura, referiu, neste âmbito, três dimensões: “ciência e antropologia; infoesfera; e arte e fé”. E desafiou os cerca de cem participantes a assumir os desafios que estas áreas encerram, a “não ter medo” nem a “ficar de fora” deles, advertindo que “estamos a viver nesta época uma revolução e não podemos ficar de fora, agarrados ao passado, um passado tantas vezes usado somente por outros para condicionar o ontem de maneira fundamentalista”.
Chamando a atenção para a necessidade de “evangelizar e comunicar no mundo digital”, o teólogo e biblista considerou que a Igreja deve “purificar” e atualizar a sua linguagem. Referiu que “a nossa linguagem é demasiado eclesiástica”. É certo que “tem valores, mas é pouco compreensível no mundo de hoje”. E frisou que “acultura contemporânea não consegue entrar em sintonia com ela”, apelando ao “cuidado com a comunicação”.
Lamentando que “usamos ainda demasiada retórica”, defendeu o regresso a “um discurso mais incisivo”, particularmente na homilia. Advertindo que “a homilia é um género literário”, sustentou que, ainda assim, “não podemos continuar a pregar como se estivéssemos perante o público de há 50 anos, mesmo que sejam idosos”.
Assegurou que, neste âmbito, “a cultura contemporânea, pela sua própria natureza, está ligada à imagem”, que tem o papel principal, sobrepondo-se às palavras que “são só um suporte”, e exortou ao regresso à criação de “imagens comunicativas”. Aduziu que Jesus nos ensinou este método e este estilo, pois habitualmente “falava por parábolas”, e lembrou que o discurso do Papa Francisco se concretiza muito naquela modalidade de estilo.
Chamando à colação uma “nova categoria de “cultura” – o seu cariz antropológico – e uma “mudança” do seu próprio conceito, o conferencista apelou ao “diálogo entre a fé, a ciência e a arte”, considerando que “todos contêm algo de Deus”. Neste quadro da nova categoria de cultura, defendeu a “continuidade com a riqueza do passado na multiplicidade das expressões atuais”.
Ravasi abordou ainda as áreas da manipulação e da engenharia genéticas, da neurociência, da robotização e da inteligência artificial, designadamente ao nível da criação de máquinas que têm em vista não só “decidir como comportar-se”, mas inclusivamente chegar à “autoconsciência”. Observando que “a inteligência artificial é um campo que exige uma forte atenção cultural, ética e pastoral”, considerou ser “necessário voltar a uma visão do homem mais completa”, pois, segundo afirmou, “a ciência e a técnica de hoje são muito especializadas, mas ignoram muitos outros setores”.
Depois, o cardeal da Cúria Romana referiu-se à “infoesfera” – a segunda dimensão da evangelização da cultura – como o “desafio da comunicação atual”, considerando que hoje se assiste à “quarta revolução da época moderna”, a da “revolução informática”, “depois da revolução científica, social e psicanalítica”. E sustentou não de tratar de “uma questão de técnica”, de “uma revolução global, antropológica”.
O cardeal responsável eclesiástico pela Cultura disse ainda haver “um novo modelo humano de relação”. Com efeito, na sua ótica, “a comunicação hodierna é a passagem a uma nova condição humana; é um novo mundo”. E lembrou os nativos digitais e os “millennials”, termo utilizado para os nascidos depois do ano 2000.
Por fim, lembrou os “riscos” deste novo modelo como a “perda da capacidade crítica” ou a “incapacidade da verificação critica”. E, evidenciando que “este é um mundo, por excelência, virtual” e que “este virtual, na realidade, é também real”, exortou a comunidade cristã a “conservar, na virtualidade, o encontro concreto”, visto que “a pessoa humana precisa do encontro”.
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Em suma, o Presidente do Conselho Pontifício da Cultura questionou as visões de futuro da humanidade baseadas exclusive na tecnologia, alertando para as questões inéditas levantadas pela evolução neste campo. E, a respeito da inteligência artificial, disse:
Chega-se ao ponto, que considero absurdo, de se introduzir na Europa o conceito de personalidade eletrónica. Estamos perante algo, em si, muito positivo, para o desenvolvimento social, técnico, da produção, mas que implica igualmente o surgimento de interrogações”.
Apontou limitações a propostas como as de Stephen Gould, no princípio designado como ‘NOMA’, ‘Non-overlapping magisteria’ (magistérios que não se sobrepõem), precisando:
Para explicar a pessoa humana, não basta o nível científico; são precisos mais magistérios. Gould dizia que não se sobrepunham, eram independentes, não conflituais, mas eu diria que isto não é completamente verdade. O sujeito é sempre o mesmo e o objeto é o mesmo, pelo que acontecem fenómenos em que [os magistérios] se enredam, confrontos entre a teologia e a ciência.”.
Sublinhando a importância do diálogo neste campo, propôs aos cientistas “uma visão mais completa, mais universal, mais humana” e defendeu:
Não basta responder à pergunta ‘como é que isto acontece?’, é preciso questionar: ‘porque é que eu faço isto’?”.
Este cultíssimo colaborador do Papa entende também que a Igreja não pode, “com base em receios”, pronunciar só “julgamentos negativos”, o que não é recomendável: não é este o caminho.
As intervenções sobre o ADN e a evolução das neurociências foram outros campos abordados pelo cardeal, para quem importa o discurso teológico de estar presente, “sem demonizar, porque há dados positivos”, mas fazendo notar a sua “defesa da figura humana”.
O líder do dicastério romano para a Cultura sustenta que a Igreja Católica deve procurar envolver-se com a sociedade, “não só teoricamente, mas também em concreto”, como na questão das migrações. E deixa um claro alerta contra fundamentalismos e populismos “verdadeiramente racistas”, que considera “anticristãos”. A via é a do respeito e do diálogo!
2018.01.31 – Louro de Carvalho

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