quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Pacto de Justiça: desafio aos partidos e ao Governo para que legislem

Um acordo que resultou do trabalho conjunto da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, do Sindicato Magistrados do Ministério Público, da Ordem dos Advogados, da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução e do Sindicato dos Funcionários Judiciais resultou numa proposta a que se chamada “Pacto de Justiça”. Consta de 89 medidas, tecnicamente fundamentadas, e resulta do apelo lançado pelo Presidente da República, há um ano, aos operadores da Justiça, pois os partidos não conseguiram um acordo já tentado noutras ocasiões.O documento, de 40 páginas, que chegou às mãos do Chefe de Estado, que o elogiou e desejou que assim acontecesse na saúde e na educação, tem por título “ACORDOS PARA O SISTEMA DE JUSTIÇA” e, segundo o primeiro destinatário, constitui um desafio aos partidos e ao Governo para que legislem por uma justiça mais célere, eficaz, transparente e acessível.
A proposta abrange quatro áreas: a organização judiciária; o acesso ao direito; a justiça económica; e a criminalidade económica e corrupção.
Assim, da organização dos tribunais ao custo do acesso à justiça por parte dos portugueses, à execução das sentenças dos tribunais, à cobrança de dívidas e à justiça económica, o Pacto aborda diversos temas e propõe alterações para simplificar e garantir o acesso da Justiça aos cidadãos, além da sua proteção.
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No quadro da organização judiciária, os subscritores querem, por exemplo, a unificação da jurisdição comum com a jurisdição administrativa e fiscal, criando uma ordem única de tribunais, um único Supremo Tribunal e um único Conselho Superior da magistratura judicial. Sustentam esta pretensão aduzindo que os princípios que enformam as suas áreas de direito, o quadro de organização e funcionamento dos tribunais e até o modelo de ingresso dos juízes na carreira estão, desde 2004, muito próximos entre jurisdições.
Por outro lado, propõem a implementação em concreto de estruturas de apoio direto aos magistrados nos tribunais e a reserva aos oficiais de justiça da realização de tarefas processuais.

Quanto à formação, o sentido é ainda de maior unidade. Defendem a realização de iniciativas formativas comuns alargadas ao CEJ (Centro de Estudos Judiciários), aos departamentos de formação das Ordens e à DGAJ (Direção-Geral da Administração da Justiça).

No âmbito da família e menores, o Pacto defende, por exemplo, a criação dum corpo de peritos de diversas áreas (pediatras, psicólogos, psiquiatras, técnicos de serviço social) nos quadros permanentes dos tribunais de família e da criança, bem como a cobertura nacional completa dos juízos de família e menores , a criação de secções da família e da criança nos tribunais da relação e a especialização dos tribunais superiores na área da família e da criança. 
Sustenta-se que a generalidade dos cidadãos deve ter acesso direto às plataformas informáticas do sistema de justiça para consulta dos dados processuais que lhes digam respeito. 
Para tanto, os agentes da Justiça defendem a necessidade de manter e desenvolver o sistema informático CITIUS, que serve os tribunais, até ao “limite das suas capacidades”, não considerando necessária a sua substituição no curto médio prazo.
Por outro lado, pretendem os subscritores a criação de gabinetes de comunicação nas comarcas, estruturados a partir dum gabinete central nos conselhos superiores.
Ainda em matéria de comunicação com a sociedade, os juízes-presidentes deveriam ter, em todas as instâncias, assessoria de imprensa disponível a tempo inteiro, para garantir a comunicação de informação jurisdicional.
O sistema eletrónico deveria ainda ser “multiplataforma” e, em matéria de atos eletrónicos, e-government e funcionalidades, ser criado um serviço eletrónico de contagem automática de prazos integrado nas diversas plataformas e a criação de um domicílio digital pelo cidadão, para efeitos de comunicação com a justiça.
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No acesso ao direito, pretende-se a redução generalizada de taxas e custas processuais  para que nenhum cidadão se sinta coibido, por razões financeiras, de pedir a avaliação da Justiça para o seu caso. E propõe-se a dispensa de taxas para os trabalhadores em processo de impugnação de despedimento e isenção de custas em ações por acidente de trabalho.
O documento denuncia, aqui, “uma grave distorção do sistema”, que devia proteger os mais desfavorecidos economicamente. Isto é, “no atual sistema, apenas têm verdadeiramente assegurado o acesso ao direito os indigentes ou próximos de tal estado e as classes mais elevadas em termos económicos, fruto de um ‘tudo ou nada’ do sistema de proteção jurídica”.
Por isso, os operadores da Justiça pretendem a redução generalizada das taxas e custas processuais e a revogação do pagamento faseado das taxas, que não resolve as distorções. Em substituição, propõem a criação de escalões que, face ao diferente grau de carência económica, permita o pagamento duma proporcional percentagem da taxa de justiça e das custas, em função da situação económica do beneficiário.
Nos casos em que haja lugar a isenção de taxas, defendem a definição de três escalões -- 25%, 50% e 75% da taxa - indexados à situação económica do requerente – e a criação de um número único de proteção jurídica que evite a multiplicação de pedidos consecutivos.
Porém, nos processos tutelares cíveis, defendem o fim da dispensa de pagamento prévio da taxa inicial em ação da jurisdição de família. 
Propõem o pagamento prévio da taxa de justiça, restringindo-se a dispensa apenas às situações em que esteja em causa a “premente e urgente” salvaguarda dos interesses dos menores.
No atinente a contraordenações, os agentes da justiça lamentam que não haja distinção entre os casos simples e os processos complexos, “designadamente quando estejam em causa contraordenações no âmbito do direito bancário, financeiro, do mercado de valores mobiliários ou transfronteiriço”. E, como estes últimos são, ainda, “insuficientemente tributados” em custas, propõem, um aumento do valor das custas nos processos de contraordenação em função do valor da coima aplicada em concreto pela autoridade administrativa e da complexidade da ação. 

Por outro lado, a taxa seria reduzida quando a decisão judicial fosse proferida por simples despacho e sem julgamento. 

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No quadro da justiça económica, o Pacto recomenda da a criação de um sistema de informação e alerta sobre situação jurídica de sociedades, para gerar transparência e induzir credibilidade nos negócios, sem pôr em causa dados protegidos.
Sublinha-se que este tipo de serviço já é prestado em algumas plataformas privadas, mas em condições pouco transparentes, pelo que se justifica que o sistema público de justiça assuma essa tarefa. Com a iniciativa sistematiza-se a informação sobre as sociedades, tornando-a acessível aos interessados e fornecendo dados sobre propositura de processos cíveis, de insolvência ou de recuperação de empresas, bem como alterações da situação de registo e outros. 
Propõe-se também a criação do guia do investidor, um guia prático, em português e inglês, que explique aos investidores nacionais e internacionais, de forma clara, simples e acessível o sistema de cobrança de dívidas português e o que do mesmo podem esperar.
Para a regulação do tecido económico, o pacto avança a inibição dos administradores, gerentes e sócios maioritários de sociedades que não se apresentem à insolvência ou que tenham sido liquidadas administrativamente, ficando aqueles proibidos de constituir ou participar em novas sociedades por um período de cinco anos. (Esta proposta constitui um pressuposto básico de controlo geral ao incumprimento de obrigações).
Outra medida aponta para a adoção de regras de dissolução administrativa de sociedades, com o argumento de que “o tecido económico deve ser expurgado, de forma rápida e eficaz, das empresas que não reúnam requisitos de funcionamento”.
Os subscritores do pacto rejeitam qualquer modelo legal de `cobranças difíceis, fora do quadro dos agentes do sistema da justiça, e a possibilidade de legalização de formas de atuação, formais ou informais, que não realizadas a coberto de mandato pelos agentes da justiça. Com efeito, “o facto de existirem múltiplos comportamentos desviantes no mercado deve impor aumento de regulação e não promover a desregulação e a desproteção dos cidadãos nesta área”. 
Quanto à regulamentação especial de dívidas, propõe-se que passe a ser documento obrigatório na escritura de compra e venda de imóvel declaração da administração de condomínio relativa às dívidas de condomínio existentes (ou não) e declaração do seu valor.
Defende-se ainda que a regulamentação específica da responsabilidade pelas dívidas de condomínio e a clarificação legal das dívidas passíveis de execução (cobrança) com base na ata de condomínio.
No âmbito das execuções fiscais, o Pacto da Justiça pretende suspender as diligências de cobrança em execução fiscal no caso de haver penhora anterior em execução civil. 
A intenção é equiparar a regra das execuções fiscais à das execuções civis e evitar a duplicação de diligências, uma vez que os créditos públicos estão sempre salvaguardados com a reclamação na execução civil.
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No âmbito do combate à criminalidade económica e corrupção, propõem-se:
Em termos organizativos e de recursos, o preenchimento dos quadros de magistrados judiciais e do Ministério Público, bem como de funcionários judiciais; a instalação dos gabinetes de assessoria técnica em todas as comarcas; a criação de equipas multidisciplinares periciais junto do DCIAP e DIAP Distritais; a definição dum regime legal que articule a prestação de perícias por entidades públicas com o DCIAP; e a criação em comarcas, ou agrupamento de comarcas, de equipas com competências para colaborar no processamento de instrumentos de cooperação judiciária internacional, incluindo competência linguística para tradução.
Em termos de crimes e sanções, pretende-se a definição do catálogo de crimes integrantes do conceito de criminalidade económico-financeira, reunindo os que já existem no Código Penal, legislação extravagante e alargando-o às novas realidades económicas; a equiparação da moldura penal do crime de infidelidade ao crime de administração danosa; e a instituição de sanções acessórias de inibição de candidatura a concursos públicos por parte de pessoas coletivas ou singulares condenadas por sentença transitada em julgado por crimes deste catálogo e a instituição de sanções com impacto económico direto nos participantes no crime como forma de aumentar a eficácia preventiva da resposta criminal.
No âmbito das normas processuais, é proposta; a suspensão do prazo de inquérito enquanto se encontrar pendente a resposta a cartas rogatórias, passando a suspensão a coincidir com o prazo máximo de inquérito; a duplicação do prazo de interposição de recursos e respostas nos processos criminais de excecional complexidade (proposta que se destina a reforçar o direito dos arguidos ao recurso, reconhecendo a dificuldade da sua apresentação nos processos da natureza em causa); e s obrigatoriedade de, nas ações executivas, da junção de prova do titular da conta, sempre que seja indicado IBAN para transferência de valores apurados no processo – uma regra de transparência e de prevenção de comportamentos de fraude fiscal ou branqueamento de capitais com utilização do próprio sistema judicial.
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Todavia, ficam de fora do Pacto temas importantes, como a delação premiada, o enriquecimento ilícito, e o empreendedorismo. E, se Marcelo elogiou o Pacto de Justiça, nem todos se lhe juntam ao aplauso. Os empresários portugueses estão divididos e temem, sobretudo, que as propostas se fiquem pela retórica.
Se uns dizem que “é altamente positivo” ou que “é naturalmente muito bem aceite”, outros consideram que “as propostas não têm qualquer cabimento”. 
Parece que o Pacto quer desmentir a usual e, muitas vezes, ligeira forma de “apontar o sistema de justiça como sendo um dos maiores entraves ao desenvolvimento económico e à competitividade do país”.
Mas alguns sustentam que a responsabilidade de ponderar “se a prática da justiça está a ser justa, célere e benéfica para a economia” é do Governo e não dos agentes judiciais, não sendo “aos próprios executores que cabe propor orientações políticas sobre esta matéria”.
E, dos que aceitam e elogiam as medidas propostas, alguns entendem que estas 89 medidas podem ficar apenas pela retórica e pelo papel.
Os partidos já prometeram vir a analisar com cuidado o documento. Porém, alguns já alertaram para a necessidade de alterar a Constituição para que seja possível levar a cabo algumas das medidas propostas, por exemplo, no atinente à unificação das jurisdições. E não se vê que esteja no horizonte político uma revisão constitucional. Por outro lado, são necessárias mais formas de cooperação internacional, o que requer mais negociação. E não são os operadores da Justiça que a efetivam. E, ainda, torna-se necessária uma grande mobilização de meios. E esse é busílis das reformas. E é por isso que a educação e a saúde são deficitárias e não por falta de pacto, como parece Marcelo querer concluir.
Porém, o Pacto constitui um sinal e um sério aviso aos partidos de que podem e devem legislar – o que a eles compete, por sua iniciativa ou por iniciativa do Governo. Resta aos operadores da Justiça que, a seu tempo, deem pronto e sábio parecer sobre as iniciativas legislativas que forem desencadeadas.

2018.01.18 – Louro de Carvalho

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