sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A partir duma inscrição na igreja do Alandroal

O Diário de Notícias de hoje publica uma referência de Manuel Carlos Freire sob o título Lápide em igreja desvenda mistério sobre o cronista Fernão Lopes”.
Atribui ao acaso o facto de o investigador João Torcato ter reparado, há dois anos, na inscrição tumular existente à entrada da igreja matriz do Alandroal, vindo agora a publicar, com o historiador José d’Encarnação, os fundamentos da tese que lhes parece resolver um enigma histórico. Com efeito, ninguém tem sabido dizer ao certo onde nasceu e onde está sepultado o cronista. E querem dizer-nos que este “mistério com mais de 500 anos na História de Portugal, sobre quem foi o cronista Fernão Lopes, pode ter chegado ao fim com a descoberta desse nome numa lápide à entrada da Igreja Matriz do Alandroal, vila do distrito de Évora”.
João Torcato, investigador que trocou a vida na capital pelo regresso ao Alandroal, disse ao DN:
Acho que é uma contribuição definitiva para estudar um homem sobre cuja vida não se sabe nada, terra pequena e perdida no meio da planície alentejana onde esta descoberta é uma mais-valia em termos culturais e turísticos”.
A descoberta será, pelos vistos, publicada amanhã na edição online da revista especializada Al-Madan, em artigo coassinado por Torcato e por José d’Encarnação, contactado pelo primeiro enquanto especialista em epigrafia para analisar as inscrições naquela pedra mármore.
Encarnação, por seu turno, declarou ao DN que “nunca se tinha pensado nem se sabia onde Fernão Lopes estava sepultado”. Agora, embora com as reservas naturais dos investigadores, justifica a conclusão de os restos mortais do 4.º Guarda-Mor da Torre do Tombo estarem na Igreja de Nossa Senhora da Graça com o conjunto de factos que até aqui não tinham explicação.
Apontam os dois especialistas para a hipótese de ser o cronista por terem “uma explicação para o privilégio, para a importância dada a essa zona” por Fernão Lopes nos textos que escreveu, sendo que Torcato evoca os 9 capítulos da Crónica de Dom João, “o da Boa Memória” que o autor dedica ao Alandroal numa época – a crise de 1383-1385 – em que ali “praticamente não houve nada de relevante” e quando “o país estava num estado de guerra absoluto”. E aduz como exemplos as batalhas dos Atoleiros, Trancoso, Aljubarrota e Valverde.
Para Fernão Lopes, considerado o fundador da historiografia portuguesa, apontava-se até agora para Lisboa como local de nascimento (entre 1380 e 1390) e morte (cerca de 1460), já depois de se confessar “velho e flaco”. Além de responsável pelos arquivos da Torre do Tombo, foi o autor das crónicas sobre os reis Dom João I, Dom Pedro e Dom Fernando, bem como de outros monarcas cujos textos terão desaparecido. A sua escrita, que era marcada por uma objetividade excecionalmente fundamentada para a época, revestida dum realismo descritivo invejável e, por vezes, marcada pela alternância entre a descrição estática e o movimento, com uma indizível veia narrativa, rompia com as tradições da época onde, como lembra João Torcato, os membros do povo – sobretudo na sua componente de arraia-miúda – passaram a ser protagonistas muitas vezes. Era o escritor “cuidadoso e meticuloso”, que procurava escrever pautado só pela “certidão da verdade”, pelo que parece “estranho” falar tanto do Alandroal naquele período crítico da independência face a Castela, insiste o artista plástico.
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Diz o aludido articulista que João Torcato, presidente da cooperativa sociocultural Mouro M’Fez, reparou, por acaso na inscrição ainda legível naquela pedra tumular “quando ia a sair da igreja, que estava fechada para limpezas. Tendo já estudado várias coisas sobre Fernão Lopes, percebera que havia um vazio tão grande sobre a vida dele, o que era estranho, pelo que terá começado “a estudar a questão com mais profundidade”.
Refere que o caso “tem sido um processo de reflexão” com algum secretismo, começando a fazer sentido o que ia lendo à luz daquela hipótese. E explica o “facto de ainda ninguém ter identificado a tumba” com a inscrição “Fernão Lopez” por a porta tapar o nome quando se “abre para a direita” – o que “também terá garantido a legibilidade daquela primeira linha de texto na pedra tumular, quando a generalidade das outras inscrições quase desapareceu devido ao repisar dos crentes desde os meados do século XV”.
José d’Encarnação perfilha essa hipótese sobre o “porque é que nunca se tinha visto a inscrição” que, segundo os investigadores, “corresponde ao formulário habitual do século XV” e em que o apelido “Lopes” se grafava “com Z, como era normal na época”. E até agora, “não havia nada escrito sobre a existência da lápide” com o nome do cronista naquela igreja matriz.
Segundo Encarnação, é legítimo questionar se aquele nome pode corresponder a outra personagem que não o famoso cronista. Todavia os elementos informativos existentes levam a concluir que só pode ser o autor da Crónica de Dom João I.
Com efeito, além de o cronista referir exaustivamente a vila do Alandroal, a única vila do Alentejo cujo brasão de armas é semelhante ao da Casa de Avis (dominante naquela zona fronteiriça), existia um convento que funcionava como escola – o que explicará a sua erudição e terá permitido a alguém de origem humilde chegar a Guarda-Mor da Torre do Tombo – e o tornou conhecido pelos responsáveis da Ordem de Avis.
Para João Torcato acresce o pormenor de as pessoas nessa época “serem sepultadas na terra natal” para reforçar a tese de que Fernão Lopes era natural da vila do Alandroal. Porém, o investigador diz estar “fora de questão” requerer o levantamento da urna para investigar se ainda ali estão algumas ossadas e a quem pertencem, embora admita essa possibilidade se a iniciativa “partir do mundo académico”, pois, segundo Torcato, “o facto de a igreja matriz do Alandroal ter sofrido várias obras de remodelação ao longo destes séculos e de a própria pedra tumular estar partida não dá garantias de que ainda haja algo por baixo”.
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Fernão Lopes, embora não abandone o conceito providencialista da História (v.g: diz que as tribulações de Lisboa cercada não foram piores e mais duradouras porque aprouve a Deus apressar os acontecimentos), na atividade historiográfica redimensiona o género cronístico limitando as narrativas tradicionais panegíricas. Graças à crise dos valores, emergente na revolução de Avis, Lopes desvia-se das formas tradicionais da crónica, por as achar insuficientes “para explicitar uma nova ordem distinta da senhorial vigente”, e abre espaço de autonomia à narrativa histórica com uma metodologia em que seja viável chegar à “verdade nua”. Assume a posição de autoridade, de distanciamento e isenção, atributos capazes de detetar e controlar as subjetividades do discurso (mundanall afeiçom) e chegar à “certidão da verdade”. E estabelece uma hierarquia de relevância nos factos, discernindo o que é de narrar e privilegiando a descrição do que torna a história mais ordenada e inteligível, sem distrativas minúcias e detalhes. Contudo, mais do que a busca da verdade – relevando o testemunho documental – põe-se na posição de intérprete dos acontecimentos, tentando desfazer as contradições entre as fontes e esclarecer para a posteridade o sentido e propósito do encadeamento dos factos históricos, descartando como mentirosas, parciais ou fantasiosas as versões divergentes da sua.
Apesar de designado oficialmente para compor uma história portuguesa, a sua historiografia não é meramente regiocêntrica. Mesmo que ponha o rei no centro da história, a sua narrativa evidencia genuíno interesse pelo povo, colocando-o como importante protagonista nas transformações sociais, para lá de burilar de forma inédita aspetos psicológicos, económicos e humanistas que influem nos agentes e rumos da História. O grande espaço que deu ao povo nas crónicas, muitas vezes identificando-se com ele e considerando-o a expressão do mais lídimo espírito português, reflete-se no estilo, enraizando a sua escrita na expressão oral em jeito coloquial e no universo do agir popular. Privilegiou e prestigiou o vernáculo quando a maioria dos eruditos produzia textos em latim e foi um representante do saber popular. No entanto, o cronista foi um dos primeiros cultores em Portugal dum novo tipo de saber de cunho humanista, universalista, classicizante, que estava então a surgir.
Tão grande é a preocupação pela imparcialidade que assegura expressamente não se topar nas suas páginas a formosura das palavras, mas a nudez da verdade. Mesmo assim, a prosa direta, desembaraçada e cheia de charme, o magistral domínio das técnicas narrativas, os originais modos de estabelecer significados por via indireta, a capacidade de evocar cenas complexas, movimentadas e eivadas de dramatismo, prendendo a atenção do leitor, a compreensão do drama humano, entre outros predicados, tornam as suas crónicas as maiores obras-primas da nossa literatura medieval, que, apesar da distância dos séculos, continuam a exercer fascínio sobre leigos e especialistas. Segundo António José Saraiva, a prosa fernandina “conserva o tom ‘falado’ dos romances de cavalaria”, mas enditado por vocabulário e imagens reveladores de grande sentido do concreto, e “com os recursos da oratória clerical, tocada oportunamente por um arrepio de solenidade bíblica, como quando fala da boa e mansa oliveira portuguesa”. O tom é repassado de emoção, que não exclui a ironia, como se verifica na descrição do cerco de Lisboa. O dito popular, a anedota e a majestade de tom adequado aos grandes momentos sucedem-se naturalmente, sem eclipsar o tecnicismo retórico epocal, que magistralmente dominava. E parece desprender-se das suas palavras uma poderosa voz, que ora troa de indignação, ora se espraia com solenidade, ora graceja – mas sempre anímica e de longo fôlego.  
Porém, embora o seu tributo primeiro seja à verdade, não pôde furtar-se, em certo modo, a cair no erro que apontou a outros. Se, como dizia, os afetos (mundanall afeiçom, ampla categoria onde incluía as predisposições e condicionamentos psicológicos, sociais e políticos do homem) levavam os historiadores a legar visões parciais e erróneas da História, ele quis assumir o ónus de remediar aquela tendência e a não rara confusão existente entre as fontes, pretendendo deixar a versão verdadeira, isenta e definitiva dos factos, o que tornou canónica a sua obra. Todavia, o compromisso com a verdade nua foi relativizado em vários momentos. Fernão Lopes criou um discurso hegemónico e comprometido com o sistema, de que surge como influente legitimador e quase como juiz. Sendo um alto oficial do Reino, esperava-se que tecesse a narrativa histórica com exaltações dos feitos da realeza, como era costume. Porém, tais loas, longas e prolixas nas crónicas anteriores, são muito económicas na sua obra, considerando-as retóricas e alheias à tarefa do bom historiador, que deve focar-se no essencial.
Ademais, reconhecia que tais loas eram exageradas não apenas na linguagem, mas também no conteúdo. Por isso, se escusou a apontar, por exemplo, as insuficiências do Mestre de Avis, a quem se confiou, um pouco por acaso, o governo do Reino, embora em muitas passagens a sua apreciação do rei fosse simpática e compassiva, considerando-o como mais uma peça, presa e limitada em vários sentidos, na grande engrenagem do Destino, como todos os outros homens. 
As numerosas situações em que o rei revela pusilanimidade, calculismo, falta de eficácia na guerra e de capacidade de decisão durante a crise, displicência mal disfarçada ante os pequenos, não se incluem no cômputo dos grandes feitos ou das grandes virtudes. São traços da construção da personagem que o cronista vai construindo através da sua escrita inquieta, incluindo vários outros traços a completar-lhe a verosimilhança realista, “como a inteireza da amizade, a camaradagem afetuosa, a pertinácia perante os desaires, a prodigalidade na distribuição das mercês”, como refere Teresa Amado. E a narrativa passa da admiração ao enternecimento e deste à ironia ou à censura.
Não obstante, Dom João terá sido um bom rei, mas o herói da guerra foi o Condestável, como o herói do levantamento popular foi o povo de Lisboa. O Mestre de Avis transita neste período turbulento cumprindo as funções que lhe foram confiadas, com uma certa dignidade, com cuidado em não arriscar demasiado e, sobretudo, com o mérito de saber escolher os seus colaboradores diretos, nomeadamente João das Regras e Nun’Álvares. No entanto, a crónica, dá ao rei uma relação privilegiada com o autor, que tanto absorve o sentimento popular pelo rei que era ‘tão amado do povo’, como o analisa com o seu sólido bom senso e a sua lucidez plebeia.
E há passagens em que o cronista aborda valores do código de ética ideal dos cavaleiros e cortesãos, aproveitando para criticar vícios da aristocracia, como a vanglória, a inveja, a avareza e a gula. A sua descrição histórica era tingida também dum claro posicionamento político e social e dum propósito moralizante. Segundo Teresa Amado, o seu “fracasso” essencial em construir uma narrativa inteiramente “verdadeira” e a contradição entre a teoria e a prática provam-se no confronto entre o que os documentos efetivamente atestam e a narrativa que ele deixou. Assim, se fôramos a selecionar os factos certificáveis, não obteríamos a crónica, mas uma pouco extensa lista de nomes, datas, parentescos e acontecimentos públicos. Ora, porque ele foi um homem ente os homens, sucumbe aos desvios inevitáveis provocados pela mundanall afeiçom, mesmo que tenha porfiado repetidas vezes a sua própria isenção.
Apesar da parcialidade inevitável em todo o historiador, da qual se quis livrar, conseguiu, na sua obra, um controlo muito maior sobre as variáveis que os seus antecessores, revelando uma façanha historiográfica e um enorme pioneirismo em termos de metodologia e de credibilidade. 
Testemunha dum período de transição política e de afirmação da nacionalidade, soube trazê-lo até aos nossos dias e, em hipotipose, pôr-nos diante dos olhos os factos que desencadearam inúmeras transformações em Portugal e no mundo. Não importando se a sua palavra é histórica ou literária, importa saber que permanece. E foi a partir dela que vimos evidenciar-se a ideia da nacionalidade, da identidade coletiva verdadeiramente portuguesa. Teresa Amado diz que as suas crónicas “são atípicas” pela novidade face à evolução e pelo talento, inteligência e subtileza da compreensão “que não se reproduziram nos cronistas que se lhe seguiram”.
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Por tudo isto, é justo que o enigma de Alandroal se desvende e o cronista seja mais estudado e apreciado!

2018.01.26 – Louro de Carvalho

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