quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

O tema da continuidade ou não da Procuradora-Geral da República existe!

O Presidente da República pode não querer falar do assunto neste momento, porque uma decisão de exonerar Joana Marques Vidal só se colocaria em outubro, mas não pode dizer que isto não é tema. Talvez não o devesse ser. Contudo, depois de a Ministra da Justiça ter respondido, ao ser questionada numa entrevista, que o mandato do Procurador-Geral da República é, segundo a Constituição, um mandato longo e único, o tema está na ordem do dia para discussão, mesmo que meramente académica.
Mais. Não me parece que o Presidente deva dirigir a este propósito recados ao Governo ou que deixe transparecer que é a ele que a decisão compete. Com efeito, segundo a alínea m) do art.º 133.º da CRP, no quadro da competência do Presidente “quanto a outros órgãos”, compete-lhe “nomear e exonerar, sob proposta do Governo, o presidente do Tribunal de Contas e o Procurador-Geral da República”. Ora, se é sob proposta do Governo que o Presidente nomeia e exonera o Procurador-Geral da República, não lhe cabe a iniciativa da escolha, mas somente a aceitação ou não de proposta do Governo, tal como não lhe cabe a escolha e ministros nem a iniciativa da sua exoneração.
Os constitucionalistas que se pronunciam favoravelmente sobre a possibilidade da continuidade da atual PGR, entendem que a CRP e, consequentemente, a Lei, ao não proibirem a renovação do mandato, legitimam a mesma renovação; e aqueles que se pronunciam pela impossibilidade da renovação, escudam-se no n.º 3 do art.º 220.º, que estabelece: “O mandato do Procurador-Geral da República tem a duração de seis anos, sem prejuízo do disposto na alínea m) do artigo 133.º”. Nestes termos, o mandato não seria renovável, embora o seu termo não fosse automático: teria de haver decreto de exoneração de um titular e de nomeação de outro, nos termos do artigo que define as competências do Presidente “quanto a outros órgãos”.  
Ademais, a nomeação e a exoneração do Procurador-Geral da República são atos de nomeação política, embora o mandato seja para cumprir, mas não confere ao seu titular direitos ou deveres de vinculação inerentes à manutenção do cargo. Nem vale a pena comparar com o caso dos juízes do Tribunal Constitucional (com mandato de 9 anos não renovável), que não resultam de nomeação, mas de eleição por parte da Assembleia da República ou de cooptação por parte do coletivo, que pode funcionar havendo lugares vagos. Não é este o caso da PGR.
***
Do meu ponto de vista, a Ministra da Justiça deveria ter ladeado a questão da entrevista, remetendo-a para as calendas de outubro e ter-se abstido de emitir uma opinião técnico-jurídica sobre o caso, visto que a sua declaração estava a ocorrer em cima dum diferendo com a República Popular de Angola. O sistema judicial português tinha acabado de concluir pela pronúncia de julgamento do antigo vice-presidente de Angola por relação de influência sobre um procurador português e pela necessidade de o julgamento se fazer em Portugal. A Ministra, que desempenha um cargo político, deveria ter sido mais ponderada e não precisar duma meia defesa da parte do Primeiro-Ministro no Parlamento. Aliás, foi só meia defesa, pois, ficou-se pela interpretação jurídica pessoal da jurista, com a qual António Costa até disse concordar, mas avançou, de imediato, que o Governo não tinha ainda tomado qualquer decisão política. E é óbvio que a proposta do Governo a apresentar ao Presidente da República há de ter a mão da Ministra da Justiça.
Sobre o caso de Angola, devo dizer que os angolanos não têm razão na substância. Porém, a justiça e, sobretudo, a diplomacia vivem muito dos aspetos formais. Tanto assim é que os vícios de forma, muitas vezes, inviabilizam uma conclusão justa. E não posso esquecer que já o Ministério dos Negócios Estrangeiros dirigido por Rui Machete teve de se haver com a diplomacia angolana sob a égide da mesma Procuradora-Geral. Parece-me que, estando em causa um processo criminal em que é (era) indiciada uma autoridade estrangeira esse indiciamento e a pronúncia deviam ser dados a conhecer por via diplomática, quando, pelos vistos, o caso foi conhecido através de comunicado distribuído à comunicação social.
E, se bem me recordo, os filhos do embaixador do Iraque foram apanhados em situação de maus tratos a um jovem português e não conseguiu o MEN o levantamento da imunidade dos jovens iraquianos. Nem por isso caiu o Carmo e a Trindade, apesar das justas críticas vindas de todos os lados. E o caso foi resolvido por indemnização extrajudicial.
Manuel Vicente, de momento não goza de imunidade, mas ao tempo do indiciamento gozava.  
***
Depois, a Ministra devia antever que o caso seria explorado politicamente. E, enquanto a esquerda diz “nim”, ou seja, que não é um caso a debater agora, a direita esgrime armas em defesa de Joana Marques Vidal em nome da sua suposta competência e isenção e alegando um pretenso acordo entre PS e PSD sobre a não unicidade do mandato da PGR. Ora, se assim foi, deveria ter havido a coragem de colocar na CRP e na Lei um texto que não deixasse margem para dúvidas. Sou, a este respeito, contra a tendência de se entender a necessidade da pesquisa das circunstâncias do debate da produção da lei para perceber a intenção do legislador. Esta deve deduzir-se do texto da lei publicada no boletim oficial e deve a aplicação da Lei ser ponderada com base no próprio texto da lei e na jurisprudência. Penso mesmo ser abusivo vir argumentar especialmente com a posição de A ou de B porque um é o pai da Constituição ou porque outro é o pai da Lei X ou Y. A paternidade da Constituição é da Assembleia Constituinte (ou do Parlamento quando assume poderes constituintes) e a da Lei é o Parlamento ou o Governo no caso de Decreto-lei.
As circunstâncias do debate sobre a produção da Constituição e suas alterações ou da Lei interessam aos historiadores e aos cientistas políticos para que, de futuro, não se cometam os mesmos erros e se aprenda com as circunstâncias de um determinado tempo.
A competência da atual PGR é apreciada conforme as posições de cada apreciador. É certo que, sob a sua égide, foi apanhado muito peixe graúdo nas malhas da Justiça. Porém, pelo menos do ponto de vista formal, fugas de informação, demoras processuais, incumprimento de prazos, atropelo às garantias – muito tem falhado, sendo que a atual PGR se pronuncia demasiado sobre os processos em curso. E parece que alguns, como, por exemplo, o da Tecnoforma terão apodrecido na gaveta. Por outro lado, não foram cuidados os aspetos diplomáticos mais relevantes, a não ser os atinentes às cartas rogatórias. Salva-se a sua grande preocupação pela formação dos magistrados e funcionários do Ministério Público.
Nestes aspetos de apanhar grandes e pequenos, sob outros PGR também houve apanha de peixe graúdo, mas nem todos foram pronunciados, julgados e condenados. É certo que terá havido proteção de alguns dos apanhados grandes. E houve respostas que ficaram por dar por não haver tempo de formular as questões. E houve escutas que foram destruídas. Só que tal destruição não foi ordenada pelo PGR de então, mas pelo Presidente do STJ.
Não haja dúvida de que os magistrados atiram tendencialmente culpas para o políticos, mas também eles tendem a marcar a agenda política, através da construção ou do aproveitamento das coincidências, sobretudo pelo uso da comunicação social, vindo-se raramente a saber da origem das fugas de informação ou da autoria das coincidências. Mas notam-se casos de protagonismo.
***
Enfim, trapalhadas na Justiça como trapalhadas nos Governos ou no Parlamento!
E, a propósito de trapalhadas, digam, se souberem, qual o Governo, a Presidência da República ou a Legislatura que não foi palco de trapalhadas.
A própria PGR disse em tempos que o seu mandato era único. Manterá a mesma posição hoje?

2018.01.10 – Louro de Carvalho 

Sem comentários:

Enviar um comentário