O
Presidente da República pode não querer falar do assunto neste momento, porque
uma decisão de exonerar Joana Marques Vidal só se colocaria em outubro, mas não
pode dizer que isto não é tema. Talvez não o devesse ser. Contudo, depois de a
Ministra da Justiça ter respondido, ao ser questionada numa entrevista, que o mandato
do Procurador-Geral da República é,
segundo a Constituição, um mandato longo e único, o tema está na ordem do dia
para discussão, mesmo que meramente académica.
Mais. Não me parece que o
Presidente deva dirigir a este propósito recados ao Governo ou que deixe
transparecer que é a ele que a decisão compete. Com efeito, segundo a alínea m) do art.º 133.º da CRP, no quadro da
competência do Presidente “quanto a outros
órgãos”, compete-lhe “nomear e
exonerar, sob proposta do Governo, o presidente do Tribunal de Contas e o
Procurador-Geral da República”. Ora, se é sob proposta do Governo que o
Presidente nomeia e exonera o Procurador-Geral da República, não lhe cabe a
iniciativa da escolha, mas somente a aceitação ou não de proposta do Governo,
tal como não lhe cabe a escolha e ministros nem a iniciativa da sua exoneração.
Os constitucionalistas que se
pronunciam favoravelmente sobre a possibilidade da continuidade da atual PGR,
entendem que a CRP e, consequentemente, a Lei, ao não proibirem a renovação do
mandato, legitimam a mesma renovação; e aqueles que se pronunciam pela
impossibilidade da renovação, escudam-se no n.º 3 do art.º 220.º, que
estabelece: “O mandato do
Procurador-Geral da República tem a duração de seis anos, sem prejuízo do
disposto na alínea m) do artigo 133.º”. Nestes termos, o mandato não seria
renovável, embora o seu termo não fosse automático: teria de haver decreto de
exoneração de um titular e de nomeação de outro, nos termos do artigo que define
as competências do Presidente “quanto a outros
órgãos”.
Ademais, a nomeação e a
exoneração do Procurador-Geral da República são atos de nomeação política,
embora o mandato seja para cumprir, mas não confere ao seu titular direitos ou
deveres de vinculação inerentes à manutenção do cargo. Nem vale a pena comparar
com o caso dos juízes do Tribunal Constitucional (com
mandato de 9 anos não renovável),
que não resultam de nomeação, mas de eleição por parte da Assembleia da República
ou de cooptação por parte do coletivo, que pode funcionar havendo lugares
vagos. Não é este o caso da PGR.
***
Do meu ponto de vista, a Ministra
da Justiça deveria ter ladeado a questão da entrevista, remetendo-a para as
calendas de outubro e ter-se abstido de emitir uma opinião técnico-jurídica sobre
o caso, visto que a sua declaração estava a ocorrer em cima dum diferendo com a
República Popular de Angola. O sistema judicial português tinha acabado de
concluir pela pronúncia de julgamento do antigo vice-presidente de Angola por relação
de influência sobre um procurador português e pela necessidade de o julgamento se
fazer em Portugal. A Ministra, que desempenha um cargo político, deveria ter
sido mais ponderada e não precisar duma meia defesa da parte do
Primeiro-Ministro no Parlamento. Aliás, foi só meia defesa, pois, ficou-se pela
interpretação jurídica pessoal da jurista, com a qual António Costa até disse
concordar, mas avançou, de imediato, que o Governo não tinha ainda tomado
qualquer decisão política. E é óbvio que a proposta do Governo a apresentar ao Presidente
da República há de ter a mão da Ministra da Justiça.
Sobre o caso de Angola, devo
dizer que os angolanos não têm razão na substância. Porém, a justiça e,
sobretudo, a diplomacia vivem muito dos aspetos formais. Tanto assim é que os
vícios de forma, muitas vezes, inviabilizam uma conclusão justa. E não posso
esquecer que já o Ministério dos Negócios Estrangeiros dirigido por Rui Machete
teve de se haver com a diplomacia angolana sob a égide da mesma Procuradora-Geral.
Parece-me que, estando em causa um processo criminal em que é (era) indiciada uma autoridade estrangeira
esse indiciamento e a pronúncia deviam ser dados a conhecer por via diplomática,
quando, pelos vistos, o caso foi conhecido através de comunicado distribuído à
comunicação social.
E, se bem me recordo, os filhos
do embaixador do Iraque foram apanhados em situação de maus tratos a um jovem português
e não conseguiu o MEN o levantamento da imunidade dos jovens iraquianos. Nem por
isso caiu o Carmo e a Trindade, apesar das justas críticas vindas de todos os lados.
E o caso foi resolvido por indemnização extrajudicial.
Manuel Vicente, de momento não
goza de imunidade, mas ao tempo do indiciamento gozava.
***
Depois, a Ministra devia antever
que o caso seria explorado politicamente. E, enquanto a esquerda diz “nim”, ou
seja, que não é um caso a debater agora, a direita esgrime armas em defesa de
Joana Marques Vidal em nome da sua suposta competência e isenção e alegando um pretenso
acordo entre PS e PSD sobre a não unicidade do mandato da PGR. Ora, se assim
foi, deveria ter havido a coragem de colocar na CRP e na Lei um texto que não
deixasse margem para dúvidas. Sou, a este respeito, contra a tendência de se entender
a necessidade da pesquisa das circunstâncias do debate da produção da lei para
perceber a intenção do legislador. Esta deve deduzir-se do texto da lei
publicada no boletim oficial e deve a aplicação da Lei ser ponderada com base no
próprio texto da lei e na jurisprudência. Penso mesmo ser abusivo vir argumentar
especialmente com a posição de A ou de B porque um é o pai da Constituição ou
porque outro é o pai da Lei X ou Y. A paternidade da Constituição é da Assembleia
Constituinte (ou do Parlamento quando assume poderes constituintes) e a da Lei é o Parlamento ou o
Governo no caso de Decreto-lei.
As circunstâncias do debate sobre
a produção da Constituição e suas alterações ou da Lei interessam aos
historiadores e aos cientistas políticos para que, de futuro, não se cometam os
mesmos erros e se aprenda com as circunstâncias de um determinado tempo.
A competência da atual PGR é apreciada
conforme as posições de cada apreciador. É certo que, sob a sua égide, foi
apanhado muito peixe graúdo nas malhas da Justiça. Porém, pelo menos do ponto de
vista formal, fugas de informação, demoras processuais, incumprimento de prazos,
atropelo às garantias – muito tem falhado, sendo que a atual PGR se pronuncia
demasiado sobre os processos em curso. E parece que alguns, como, por exemplo, o
da Tecnoforma terão apodrecido na gaveta. Por outro lado, não foram cuidados os
aspetos diplomáticos mais relevantes, a não ser os atinentes às cartas
rogatórias. Salva-se a sua grande preocupação pela formação dos magistrados e
funcionários do Ministério Público.
Nestes aspetos de apanhar grandes
e pequenos, sob outros PGR também houve apanha de peixe graúdo, mas nem todos
foram pronunciados, julgados e condenados. É certo que terá havido proteção de
alguns dos apanhados grandes. E houve respostas que ficaram por dar por não
haver tempo de formular as questões. E houve escutas que foram destruídas. Só que
tal destruição não foi ordenada pelo PGR de então, mas pelo Presidente do STJ.
Não haja dúvida de que os
magistrados atiram tendencialmente culpas para o políticos, mas também eles
tendem a marcar a agenda política, através da construção ou do aproveitamento das
coincidências, sobretudo pelo uso da comunicação social, vindo-se raramente a
saber da origem das fugas de informação ou da autoria das coincidências. Mas notam-se
casos de protagonismo.
***
Enfim, trapalhadas na Justiça
como trapalhadas nos Governos ou no Parlamento!
E, a propósito de trapalhadas,
digam, se souberem, qual o Governo, a Presidência da República ou a Legislatura
que não foi palco de trapalhadas.
A própria PGR disse em tempos que
o seu mandato era único. Manterá a mesma posição hoje?
2018.01.10 – Louro de Carvalho
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