A asserção é de António Marinho e Pinto sobre o
caso Manuel Vicente e surge em entrevista a Eunice Lourenço (Rádio Renascença) e David Dinis (Público).
Se bem
entendo o que pretende dizer o antigo bastonário da Ordem dos Advogados (entre 2008 e
2013) e atual eurodeputado, devo
reconhecer, no entanto, que se trata de uma declaração chocante, a contrariar aparentemente
os princípios da igualdade e da justiça.
O antigo
jornalista, que se tornou advogado e, depois, trocou a área da justiça pela da
política, continua a olhar para a Justiça portuguesa de forma crítica e a
acusar o poder político “de não ter coragem para fazer as reformas necessárias”.
Sobre os
dois casos polémicos que se inter-relacionam na abertura do Ano Judicial, Marinho e Pinto emite
opinião aparentemente contraditória. Sustenta que o ex-vice-presidente de Angola
deveria ser julgado em Angola; e elogia a Procuradora-Geral da República, mas
defendendo a sua saída em outubro, no final do mandato.
Em relação
ao Pacto da Justiça, que está na mesa da discussão, rotula-o de “corporativo”.
***
Confrontado
com o facto de a abertura do Ano Judicial estar muito marcada pela
polémica sobre o julgamento em Lisboa do ex-vice-presidente angolano Manuel
Vicente, podendo, devendo (ou não) o seu processo ser
transferido para Luanda, refere não lhe
repugnar “a possibilidade de um determinado país julgar no seu território, na
sua ordem jurídica, os nacionais do seu país que tenham cometido crimes no
estrangeiro”. Com efeito, “o Código Penal português prevê essa possibilidade
para cidadãos portugueses”, devendo aceitar-se “que outros países queiram a
mesma prerrogativa”.
Chamando a
atenção para a “dimensão política e diplomática muito forte” aqui existente,
que, a seu ver, “deveria ter sido tratada de outra maneira pelas autoridades
portuguesas, incluindo as judiciárias”, aduz que “não devia ter sido tratada da
forma negligente como, desde o início, o foi pelas autoridades diplomáticas e
políticas portuguesas”. E, argumentando que, de facto, “Portugal tem centenas
de milhares de cidadãos que vivem e trabalham em Angola”, entende que “a
primeira obrigação dos políticos é defender os interesses nacionais em qualquer
parte do mundo em que estejam portugueses”.
À insinuação de que a política poderia influir na questão judicial,
esclarece a sua posição:
“Não se trata de uma influência ou de interferência com o funcionamento
do sistema judicial. Eu lembro que o Ministério Público não é uma magistratura
independente, é um braço do Estado para perseguir a criminalidade. O Procurador-Geral
da República é nomeado pelos órgãos políticos. Em alguns momentos tem que se
articular o princípio da legalidade, ou seja, a subordinação total à lei, com
princípios de oportunidade política – quando estão em causa interesses do
próprio Estado que podem sobrepor-se ao interesse do Estado em punir
determinados crimes.”.
Além de frisar que o Ministério Público (MP) não é uma magistratura
independente, mas autónoma – a magistratura judicial e que é independente –
refere que o MP representa o Estado na perseguição da criminalidade. Não se
trata de interferência do Governo ou do Presidente em área que não é da sua
competência, pois, a cabeça do MP é nomeada
por órgãos do poder político qua tali.
E o MP tem de ser solidário com esses órgãos quando estão em causa interesses
do Estado que podem “sobrepor-se ao interesse do Estado em punir”. É o que eu
chamo o primado da diplomacia quando se trata da relação entre países.
***
Os entrevistadores questionaram Marinho e Pinto se, no atinente às
recusas das autoridades angolanas em dar informação ao nosso MP, face à
imunidade que o ex-vice de Angola alegadamente possa ter, é legítimo esperar um
julgamento justo em Luanda.
A isto, o
entrevistado defende que “O MP não tem que fazer esse tipo de considerações ou
apreciações”, pois, no âmbito dos seus “objetivos específicos” não cabem lhe “valorizações
dessa ordem”. Por outro lado, “nem compete ao MP determinar se certa pessoa
deve ou não ser julgada”; pelo menos, isso “não compete aos magistrados diretamente
ligados à investigação criminal”.
Ao perguntarem-lhe a quem compete tal decisão, o entrevistado dá uma
resposta ambígua, confusa. Poderia ter dito que isso, levar alguém a
julgamento, compete ao juiz (de instrução criminal), tendo em conta as
circunstâncias. Porém, Marinho e Pinto diz: “Ao próprio Estado”. E a questão que se impunha seria: “E quem é o Estado” ou “Quem age em nome dele?”.
No que diz a seguir tem razão:
“A administração da Justiça não tem que se sobrepor a outros interesses
do Estado. Por exemplo, à democracia, à liberdade de imprensa... deixe-me
dizer-lhe: os nossos governantes têm um regime jurídico especial no caso de
serem demandados. O próprio Presidente da República, se cometer um crime no
exercício de funções, só pode ser julgado depois de deixar de ser Presidente da
República. Há regimes especiais que, por razões de Estado, se sobrepõem ao
próprio interesse da administração da Justiça que, em determinadas
circunstâncias, podem e devem prevalecer.”.
Confessa que, no complexo caso em apreço, “precisava de ter outros elementos” que não tem. Mas assegura
que “as coisas não são tão lineares como isso”. E é neste contexto que declara:
“Não estamos a tratar com um angolano
qualquer, estamos a tratar com um vice-presidente de Angola”. E acrescenta:
“Não é de repugnar que se atribua a esse
titular do órgão de soberania de Angola o que se atribui a cargos idênticos em
Portugal”.
Se na
primeira das asserções tem a sua razão – dando prioridade à diplomacia e ao
interesse superior do Estado, não sendo legítimo invocar a desconfiança na
justiça de outro país (podendo ser invocadas outras razões: complexidade,
empenho coletivo no crime, prática de crimes no nosso território…), até por haver acordo de extradição entre os países
da CPLP – na segunda asserção já não lhe assiste razão. Com efeito, em
Portugal, não há regime especial para ex-titulares de órgãos de soberania. E
Manuel Vicente já não é titular de órgão soberania.
Por mim,
lamento que os órgãos de poder não se tenham entendido sobre o caso –
notificação atempada, utilização da via diplomática em vez dos comunicados de
imprensa, negociação dos termos e lugar de julgamento… – e fiquem em perigo as
exportações portuguesas, sejam preteridas as empesas portuguesas em concursos e
até na permanência e na atividade em Angola. Os portugueses residentes em
Angola mereceriam mais atenção.
***
Sobre o caso de Joana Marques Vidal, acha que não houve um anúncio prévio
de que a PGR não vai ter o seu mandato prolongado nem que haja relação com o
caso de Manuel Vicente. Pensa,
antes, que “a Ministra da Justiça deu uma opinião perante uma pergunta que lhe
foi feita”. Referindo que “ela não é uma pessoa com grande trajeto político,
respondeu com aquela simplicidade que um político profissional talvez não
respondesse”. E opina que se está “a fazer uma tempestade num copo de água”.
Quanto à questão da unicidade de mandato, sustenta que sempre defendeu “que na Justiça e em cargos de
regulação, onde se exige grande independência das pessoas, deve ser um mandato
único”, pois “um mandato que possa ser renovado vai diminuir necessariamente as
condições de independência”, já que “grande parte do tempo vai ser ocupado a
fazer coisas para merecer a graça de voltar a ser nomeado”.
Faz “um
balanço muito positivo” do mandato da atual PGR. Assegura que ela “teve noção
dos limites da sua função, dos equilíbrios que é necessário ponderar”. Porém,
considera que “não devia ser renovado, devia abrir-se a outro”, já que, ao
invés do que outros agora afirmam, “foi isso que esteve no espírito do aumento
do prazo de duração do mandato para seis anos”.
***
Para uma pergunta tão simples, os entrevistadores fizeram os seguintes
rodeios:
“Houve
várias polémicas ao longo deste mandato porque houve muitos processos
envolvendo personalidades importantes, como José Sócrates. No Pacto da Justiça,
a que chegaram os agentes do setor, há uma proposta para aumentar os prazos dos
inquéritos quando estão pendentes respostas a cartas rogatórias. Acha bem, face
às críticas do que demorou a acusação a Sócrates?”.
E Marinho e
Pinto pronuncia-se criticamente sobre o Pacto da Justiça e sobre a Justiça:
“O Pacto da Justiça é uma ideia muito antiga. Visa mais confederar os
interesses egoístas, profissionais das várias corporações que atuam na área da Justiça
do que avançar com objetivos concretos que modernizem a Justiça e a coloquem ao
serviço dos cidadãos, da economia, do desenvolvimento do país. Infelizmente, a
Justiça tem funcionado mais ao serviço dos interesses corporativos dominantes –
da magistratura judicial e da magistratura do Ministério Público.”.
Diz que este Pacto
“não é muito diferente de outros que se tentaram”. Não fala “da bondade das
proclamações que se fazem”, mas entende que o Pacto “visa confederar os interesses mais ou menos conflituantes das várias
corporações que atuam no sistema judicial”.
Apesar de o Pacto ter sido desencadeado por um apelo do Presidente da
República, acha que se trata de “proclamações”, que os partidos devem analisar.
E lamenta:
“Não tem havido vontade política desde o 25 de Abril.
Tudo mudou em Portugal a partir do 25 de Abril. Mudaram os militares, as
empresas, a Igreja Católica. Mas, se entrar num tribunal, as coisas passam-se
lá dentro como se passavam há décadas, até há séculos. Ali nada muda, aquilo é
graniticamente corporativo...”.
E, sobre a razão da não mudança, atira:
“Porque os magistrados não querem mudar - sentem-se bem assim porque são
reis e senhores absolutos da sala dos tribunais, da Justiça. E o poder político
não tem coragem para fazer as reformas que deviam ser feitas. Se o Marquês de
Pombal ressuscitasse, ele caía para o lado com as mudanças ocorridas, mas, se o
levássemos para a sala de audiências de um tribunal, ele sentava-se e assistia
a tranquilamente a um julgamento como se fosse no seu tempo. A Justiça não pode
existir para ser permanentemente glorificada, entronizada, tratada como se
fosse de Deuses e divindades. Se qualquer de vocês entrar num tribunal tem que
se dirigir a um juiz da forma como um servo na antiguidade se dirigia ao seu
senhor. Qualquer um de nós fala mais à vontade com o Presidente da República do
que fala com um juiz: é ilustríssimo, é venerando, é ilustríssimo, tudo é
superlativamente oco e balofo no nosso sistema judicial.”.
E aponta a solução:
“Fazendo leis. Punindo os atrasos. Criando incentivos para os
magistrados trabalharem. O que eles têm é desincentivos – sentem-se prejudicados
se trabalharem, porque comparam-se com os do lado... Eu cheguei a ver: havia um
juiz que fazia o quíntuplo dos julgamentos do que o outro, mas ganhavam o
mesmo. E foram promovidos ao mesmo tempo.”.
Por fim, sobre o aperto que os partidos estão a preparar às incompatibilidades
de deputados que sejam advogados, entende que “só peca por ser tarde demais e por serem tímidas demais”. E lembra que
sempre defendeu que “quem está no Parlamento a fazer leis não pode estar num
gabinete a receber como cliente alguns dos beneficiários dessas leis – e a
cobrarem por isso”. E diz que “a Assembleia da República era uma plataforma
giratória de interesses promíscuos, sobretudo de grandes sociedades de Lisboa e
do Porto”.
E mantém-se
como sempre: sem papas na língua, embora não tenha razão em tudo. Diz
estar no seu limite, pois, “somos como os iogurtes, temos também um prazo de
validade”. E pensa que o seu prazo “está a chegar ao fim”.
2018.01.18 –
Louro de Carvalho
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