quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

“Não estamos a tratar com um angolano qualquer”

A asserção é de António Marinho e Pinto sobre o caso Manuel Vicente e surge em entrevista a Eunice Lourenço (Rádio Renascença) e David Dinis (Público).
Se bem entendo o que pretende dizer o antigo bastonário da Ordem dos Advogados (entre 2008 e 2013) e atual eurodeputado, devo reconhecer, no entanto, que se trata de uma declaração chocante, a contrariar aparentemente os princípios da igualdade e da justiça.
O antigo jornalista, que se tornou advogado e, depois, trocou a área da justiça pela da política, continua a olhar para a Justiça portuguesa de forma crítica e a acusar o poder político “de não ter coragem para fazer as reformas necessárias”.
Sobre os dois casos polémicos que se inter-relacionam na abertura do Ano Judicial, Marinho e Pinto emite opinião aparentemente contraditória. Sustenta que o ex-vice-presidente de Angola deveria ser julgado em Angola; e elogia a Procuradora-Geral da República, mas defendendo a sua saída em outubro, no final do mandato.
Em relação ao Pacto da Justiça, que está na mesa da discussão, rotula-o de “corporativo”.
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Confrontado com o facto de a abertura do Ano Judicial estar muito marcada pela polémica sobre o julgamento em Lisboa do ex-vice-presidente angolano Manuel Vicente, podendo, devendo (ou não) o seu processo ser transferido para Luanda, refere não lhe repugnar “a possibilidade de um determinado país julgar no seu território, na sua ordem jurídica, os nacionais do seu país que tenham cometido crimes no estrangeiro”. Com efeito, “o Código Penal português prevê essa possibilidade para cidadãos portugueses”, devendo aceitar-se “que outros países queiram a mesma prerrogativa”.
Chamando a atenção para a “dimensão política e diplomática muito forte” aqui existente, que, a seu ver, “deveria ter sido tratada de outra maneira pelas autoridades portuguesas, incluindo as judiciárias”, aduz que “não devia ter sido tratada da forma negligente como, desde o início, o foi pelas autoridades diplomáticas e políticas portuguesas”. E, argumentando que, de facto, “Portugal tem centenas de milhares de cidadãos que vivem e trabalham em Angola”, entende que “a primeira obrigação dos políticos é defender os interesses nacionais em qualquer parte do mundo em que estejam portugueses”.
À insinuação de que a política poderia influir na questão judicial, esclarece a sua posição:
Não se trata de uma influência ou de interferência com o funcionamento do sistema judicial. Eu lembro que o Ministério Público não é uma magistratura independente, é um braço do Estado para perseguir a criminalidade. O Procurador-Geral da República é nomeado pelos órgãos políticos. Em alguns momentos tem que se articular o princípio da legalidade, ou seja, a subordinação total à lei, com princípios de oportunidade política – quando estão em causa interesses do próprio Estado que podem sobrepor-se ao interesse do Estado em punir determinados crimes.”.
Além de frisar que o Ministério Público (MP) não é uma magistratura independente, mas autónoma – a magistratura judicial e que é independente – refere que o MP representa o Estado na perseguição da criminalidade. Não se trata de interferência do Governo ou do Presidente em área que não é da sua competência, pois, a cabeça do MP é nomeada por órgãos do poder político qua tali. E o MP tem de ser solidário com esses órgãos quando estão em causa interesses do Estado que podem “sobrepor-se ao interesse do Estado em punir”. É o que eu chamo o primado da diplomacia quando se trata da relação entre países.
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Os entrevistadores questionaram Marinho e Pinto se, no atinente às recusas das autoridades angolanas em dar informação ao nosso MP, face à imunidade que o ex-vice de Angola alegadamente possa ter, é legítimo esperar um julgamento justo em Luanda.
A isto, o entrevistado defende que “O MP não tem que fazer esse tipo de considerações ou apreciações”, pois, no âmbito dos seus “objetivos específicos” não cabem lhe “valorizações dessa ordem”. Por outro lado, “nem compete ao MP determinar se certa pessoa deve ou não ser julgada”; pelo menos, isso “não compete aos magistrados diretamente ligados à investigação criminal”.
Ao perguntarem-lhe a quem compete tal decisão, o entrevistado dá uma resposta ambígua, confusa. Poderia ter dito que isso, levar alguém a julgamento, compete ao juiz (de instrução criminal), tendo em conta as circunstâncias. Porém, Marinho e Pinto diz: “Ao próprio Estado”. E a questão que se impunha seria: “E quem é o Estado” ou “Quem age em nome dele?”.
No que diz a seguir tem razão:
A administração da Justiça não tem que se sobrepor a outros interesses do Estado. Por exemplo, à democracia, à liberdade de imprensa... deixe-me dizer-lhe: os nossos governantes têm um regime jurídico especial no caso de serem demandados. O próprio Presidente da República, se cometer um crime no exercício de funções, só pode ser julgado depois de deixar de ser Presidente da República. Há regimes especiais que, por razões de Estado, se sobrepõem ao próprio interesse da administração da Justiça que, em determinadas circunstâncias, podem e devem prevalecer.”.
Confessa que, no complexo caso em apreço, “precisava de ter outros elementos” que não tem. Mas assegura que “as coisas não são tão lineares como isso”. E é neste contexto que declara: “Não estamos a tratar com um angolano qualquer, estamos a tratar com um vice-presidente de Angola”. E acrescenta: “Não é de repugnar que se atribua a esse titular do órgão de soberania de Angola o que se atribui a cargos idênticos em Portugal”.
Se na primeira das asserções tem a sua razão – dando prioridade à diplomacia e ao interesse superior do Estado, não sendo legítimo invocar a desconfiança na justiça de outro país (podendo ser invocadas outras razões: complexidade, empenho coletivo no crime, prática de crimes no nosso território…), até por haver acordo de extradição entre os países da CPLP – na segunda asserção já não lhe assiste razão. Com efeito, em Portugal, não há regime especial para ex-titulares de órgãos de soberania. E Manuel Vicente já não é titular de órgão soberania.
Por mim, lamento que os órgãos de poder não se tenham entendido sobre o caso – notificação atempada, utilização da via diplomática em vez dos comunicados de imprensa, negociação dos termos e lugar de julgamento… – e fiquem em perigo as exportações portuguesas, sejam preteridas as empesas portuguesas em concursos e até na permanência e na atividade em Angola. Os portugueses residentes em Angola mereceriam mais atenção. 
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Sobre o caso de Joana Marques Vidal, acha que não houve um anúncio prévio de que a PGR não vai ter o seu mandato prolongado nem que haja relação com o caso de Manuel Vicente. Pensa, antes, que “a Ministra da Justiça deu uma opinião perante uma pergunta que lhe foi feita”. Referindo que “ela não é uma pessoa com grande trajeto político, respondeu com aquela simplicidade que um político profissional talvez não respondesse”. E opina que se está “a fazer uma tempestade num copo de água”.
Quanto à questão da unicidade de mandato, sustenta que sempre defendeu “que na Justiça e em cargos de regulação, onde se exige grande independência das pessoas, deve ser um mandato único”, pois “um mandato que possa ser renovado vai diminuir necessariamente as condições de independência”, já que “grande parte do tempo vai ser ocupado a fazer coisas para merecer a graça de voltar a ser nomeado”.
Faz “um balanço muito positivo” do mandato da atual PGR. Assegura que ela “teve noção dos limites da sua função, dos equilíbrios que é necessário ponderar”. Porém, considera que “não devia ser renovado, devia abrir-se a outro”, já que, ao invés do que outros agora afirmam, “foi isso que esteve no espírito do aumento do prazo de duração do mandato para seis anos”.
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Para uma pergunta tão simples, os entrevistadores fizeram os seguintes rodeios:
Houve várias polémicas ao longo deste mandato porque houve muitos processos envolvendo personalidades importantes, como José Sócrates. No Pacto da Justiça, a que chegaram os agentes do setor, há uma proposta para aumentar os prazos dos inquéritos quando estão pendentes respostas a cartas rogatórias. Acha bem, face às críticas do que demorou a acusação a Sócrates?”.
E Marinho e Pinto pronuncia-se criticamente sobre o Pacto da Justiça e sobre a Justiça:
O Pacto da Justiça é uma ideia muito antiga. Visa mais confederar os interesses egoístas, profissionais das várias corporações que atuam na área da Justiça do que avançar com objetivos concretos que modernizem a Justiça e a coloquem ao serviço dos cidadãos, da economia, do desenvolvimento do país. Infelizmente, a Justiça tem funcionado mais ao serviço dos interesses corporativos dominantes – da magistratura judicial e da magistratura do Ministério Público.”.
Diz que este Pacto “não é muito diferente de outros que se tentaram”. Não fala “da bondade das proclamações que se fazem”, mas entende que o Pacto “visa confederar os interesses mais ou menos conflituantes das várias corporações que atuam no sistema judicial”.
Apesar de o Pacto ter sido desencadeado por um apelo do Presidente da República, acha que se trata de “proclamações”, que os partidos devem analisar. E lamenta:
Não tem havido vontade política desde o 25 de Abril. Tudo mudou em Portugal a partir do 25 de Abril. Mudaram os militares, as empresas, a Igreja Católica. Mas, se entrar num tribunal, as coisas passam-se lá dentro como se passavam há décadas, até há séculos. Ali nada muda, aquilo é graniticamente corporativo...”.
E, sobre a razão da não mudança, atira:
Porque os magistrados não querem mudar - sentem-se bem assim porque são reis e senhores absolutos da sala dos tribunais, da Justiça. E o poder político não tem coragem para fazer as reformas que deviam ser feitas. Se o Marquês de Pombal ressuscitasse, ele caía para o lado com as mudanças ocorridas, mas, se o levássemos para a sala de audiências de um tribunal, ele sentava-se e assistia a tranquilamente a um julgamento como se fosse no seu tempo. A Justiça não pode existir para ser permanentemente glorificada, entronizada, tratada como se fosse de Deuses e divindades. Se qualquer de vocês entrar num tribunal tem que se dirigir a um juiz da forma como um servo na antiguidade se dirigia ao seu senhor. Qualquer um de nós fala mais à vontade com o Presidente da República do que fala com um juiz: é ilustríssimo, é venerando, é ilustríssimo, tudo é superlativamente oco e balofo no nosso sistema judicial.”.
E aponta a solução:
Fazendo leis. Punindo os atrasos. Criando incentivos para os magistrados trabalharem. O que eles têm é desincentivos – sentem-se prejudicados se trabalharem, porque comparam-se com os do lado... Eu cheguei a ver: havia um juiz que fazia o quíntuplo dos julgamentos do que o outro, mas ganhavam o mesmo. E foram promovidos ao mesmo tempo.”.
Por fim, sobre o aperto que os partidos estão a preparar às incompatibilidades de deputados que sejam advogados, entende que “só peca por ser tarde demais e por serem tímidas demais”. E lembra que sempre defendeu que “quem está no Parlamento a fazer leis não pode estar num gabinete a receber como cliente alguns dos beneficiários dessas leis – e a cobrarem por isso”. E diz que “a Assembleia da República era uma plataforma giratória de interesses promíscuos, sobretudo de grandes sociedades de Lisboa e do Porto”.
E mantém-se como sempre: sem papas na língua, embora não tenha razão em tudo. Diz estar no seu limite, pois, “somos como os iogurtes, temos também um prazo de validade”. E pensa que o seu prazo “está a chegar ao fim”.

2018.01.18 – Louro de Carvalho

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