terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Louvor, lamento e testemunho de esperança solidária

O Papa, no âmbito da sua 6.ª viagem apostólica à América Latina, permaneceu 3 dias no Peru. Das suas múltiplas intervenções destaco as atinentes ao encontro com os povos da Amazónia, ao encontro com a população e ao encontro com as Autoridades, a Sociedade civil e o Corpo Diplomático – subordinando o seu conteúdo ao título vertido em epígrafe.
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Aos povos da Amazónia
No encontro com os povos da Amazónia em Puerto Maldonado – Coliseu Madre de Dios, o Pontífice apoiou-se no cântico de São Francisco “Louvado sejais, meu Senhor”, para valorizar esta oportunidade em que escutou os testemunhos de autóctones em representação de todos os que vieram dos “diferentes povos originários da Amazónia”, bem como muitos elementos dos povos originariamente andinos “que chegaram à floresta e se fizeram amazónicos”.
Depois, sublinhou a pluralidade e variedade do rosto amazónico, “de enorme riqueza biológica, cultural e espiritual”, portadora duma sabedoria e conhecimento bem úteis para os que não habitam aquelas regiões, para poderem “penetrar – sem o destruir – no tesouro que encerra esta região, ouvindo ressoar as palavras do Senhor a Moisés: ‘Tira as tuas sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é uma terra santa’ (Ex 3,5).”.
Todavia, considerou que o cântico franciscano de louvor se esboroa ante “as feridas profundas que carregam consigo a Amazónia e os seus povos”. Por isso, a visita papal representa o ato de solidariedade, no coração da Igreja, para com os desafios que se colocam àqueles povos hoje, bem como a reafirmação duma “opção sincera em prol da defesa da vida, defesa da terra e defesa das culturas” visto que, “provavelmente, nunca os povos originários amazónicos estiveram tão ameaçados nos seus territórios como o estão agora”. Cruzam-se aqui duas frentes de ameaça: a nova ideologia extrativa e a forte pressão de grandes interesses económicos em torno do petróleo, gás, madeira, ouro e monoculturas agroindustriais; e a perversão de certas políticas promotoras da conservação da natureza sem o respeito pelo ser humano. Neste sentido, o Pontífice proclamou: “Devemos romper com o paradigma histórico que considera a Amazónia como uma despensa inesgotável dos Estados, sem ter em conta os seus habitantes”.
Para isso, é imprescindível que um projeto que mexa com aqueles territórios seja concertado no diálogo com os guardiões naturais da Amazónia e que haja alguma reversão do proveito de tais iniciativas em prol daqueles povos, contrariando as categorias da exploração e da discriminação.
E, na apologia do “bom agir”, que está em sintonia com as práticas do “bom viver”, que se descobre na sabedoria dos povos, disse o Papa:
Seja-me permitido dizer que se, para alguns, sois considerados um obstáculo ou um ‘estorvo’, a verdade é que vós, com a vossa vida, sois um grito lançado à consciência dum estilo de vida que não consegue medir os custos do mesmo. Vós sois memória viva da missão que Deus nos confiou a todos: cuidar da Casa Comum.”.
Sustentando que “a defesa da terra” tem por fim “a defesa da vida”, Francisco disse conhecer o sofrimento que suportam alguns por causa de derrames de hidrocarbonetos que ameaçam seriamente a vida das famílias e poluem o ambiente natural. Mas foi mais longe na denúncia:
Há outra devastação da vida que está associada com esta poluição ambiental causada pela extração ilegal. Refiro-me ao tráfico de pessoas: o trabalho escravo e o abuso sexual. A violência contra os adolescentes e contra as mulheres é um grito que chega ao céu. ‘Sempre me angustiou a situação das pessoas que são objeto das diferentes formas de tráfico”. Quem dera que se ouvisse o grito de Deus, perguntando a todos nós: ‘Onde está o teu irmão?’ (Gn 4,9). Onde está o teu irmão escravo? (…) Não nos façamos de distraídos [olhando para o ouro lado]! Há muita cumplicidade... A pergunta é para todos.
Fez a seguinte referência aos “Povos Indígenas em Isolamento Voluntário” (PIAV):
A herança de épocas passadas obrigou-os a isolar-se até das suas próprias etnias, começando uma história de reclusão nos lugares mais inacessíveis da floresta para poderem viver em liberdade. […]. A sua presença recorda-nos que não podemos dispor dos bens comuns ao ritmo da avidez e do consumo. É necessário haver limites que nos ajudem a defender-nos de toda a tentativa de destruição maciça do habitat que nos constitui.”.
Chegou à ilação de que “o reconhecimento destes povos – que não podem jamais ser considerados uma minoria, mas autênticos interlocutores –, bem como de todos os povos indígenas, lembra-nos que não somos os donos absolutos da criação”. E discorreu:
É urgente acolher o contributo essencial que oferecem à sociedade inteira, não fazer das suas culturas uma idealização dum estado natural nem uma espécie de museu dum estilo de vida de outrora. A sua visão do mundo, a sua sabedoria têm muito para nos ensinar a nós que não pertencemos à sua cultura.”.
E na perspetiva do esforço nunca demasiado em prol da melhoria de vida destes povos, Francisco pediu aos Estados a implementação de “políticas de saúde interculturais, que tenham em conta a realidade e a cosmovisão dos povos, formando profissionais da sua própria etnia que saibam enfrentar a doença a partir da sua visão do cosmos” e que se acabem com as políticas de esterilização sobre as populações aborígenes.
Depois, além de elevar a Amazónia a “reserva da biodiversidade”, apresenta-a como “reserva cultural” a preservar “face aos novos colonialismos”, sendo que a família é e sempre foi “a instituição social que mais contribuiu para manter vivas as nossas culturas”. Com efeito, “em períodos de crises passadas, face aos diferentes imperialismos, a família dos povos indígenas foi a melhor defesa da vida”.
A seguir, falou da educação como ajuda “a lançar pontes e a gerar uma cultura do encontro”, pelo que “a escola e a educação dos povos nativos devem ser uma prioridade e um compromisso do Estado”, um “compromisso integrador e inculturado que assuma, respeite e integre como um bem de toda a nação a sua sabedoria ancestral”.
Salientou o papel dos jovens e dos artistas dos “povos nativos que se esforçam por elaborar, do seu próprio ponto de vista, uma nova antropologia e trabalham por reler a história dos seus povos a partir da sua perspetiva”. E disse que é preciso escutá-los.
Por fim, fez jus ao trabalho dos missionários e missionárias que se comprometeram com estes povos e culturas, inspirados no Evangelho. Com efeito, Cristo encarnou-Se “numa cultura, a hebraica”, a partir da qual Se ofereceu como “novidade a todos os povos, para que cada um, a partir da respetiva identidade, se sinta autoafirmado n’Ele”. Pediu que não sucumbissem “às tentativas” para desarraigar a fé católica destes povos, pois “cada cultura e cada cosmovisão que recebe o Evangelho enriquece a Igreja com a visão duma nova faceta do rosto de Cristo”. E, com o apelo a que ajudassem os bispos, os missionários e as missionárias a fazerem-se um só com o povo, com vista a plasmar “uma Igreja com rosto amazónico e uma Igreja com rosto indígena”, revelou que foi com este espírito que convocou Sínodo para a Amazónia no ano de 2019, cuja primeira reunião do Conselho Pré-Sinodal se iria realizar, ali, naquele dia de tarde.
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À população provinda de muitos e diversos lugares
No Encontro com a população em Puerto Maldonado, no Instituto Jorge Basadre, enalteceu a variedade de proveniências dos presentes, que torna linda “a imagem da Igreja que não conhece fronteiras e onde todos os povos podem encontrar o seu espaço”. E ouviu os testemunhos de quem lhe disse que visitava uma “terra tão esquecida, ferida e marginalizada”, mas que “não somos terra de ninguém”. E reforçou: “É algo que é preciso dizer com força: vós não sois terra de ninguém. Esta terra tem nomes, tem rostos: tem-vos a vós.”.
Sendo a região designada com o nome de “Madre de Dios”, o Papa enalteceu Maria, “jovem mulher que vivia numa aldeia remota, perdida, considerada também por muitos como terra de ninguém”. Mas ali Ela recebeu “o convite maior que uma pessoa possa experimentar: ser a Mãe de Deus”. De facto, “há alegrias que só as podem escutar os pequeninos”.
Por isso, Maria não é “só uma testemunha para quem olhar, mas uma Mãe”. E, onde há mãe, não existe o mal de “sentir que não pertencemos a ninguém”, sentimento que nasce quando desaparece a certeza da pertença “a uma família, a um povo, a uma terra, ao nosso Deus”. Ora, se há mãe, há filhos, família e comunidade. E, assim, “os problemas poderão não desaparecer, mas certamente encontra-se força para os enfrentar de maneira diferente”. E, se alguém quiser fazer desta “uma terra anónima, sem filhos, uma terra infecunda” ou “um lugar que se deixe facilmente vender e explorar”, é preciso repetir: “Esta não é uma terra órfã! Tem uma Mãe!”.
Depois, o Papa escalpelizou a cultura do descarte, que “não se contenta apenas com excluir” mas que silencia, ignora e rejeita “tudo o que não serve aos seus interesses” – “uma cultura anónima, sem laços, nem rostos”: as florestas, os rios e as torrentes são aproveitados, utilizados até ao último recurso e, depois, deixados como baldios e inúteis; as pessoas são usadas até ao exaurimento e, depois, deixadas como inúteis. Descartam-se as crianças, descartam-se os idosos.
A seguir frisou que, ao chegar a Puerto Maldonado, viu no aeroporto um cartaz que o impressionou: “Atenção ao tráfico de pessoas”. E comentou apontando as diversas escravaturas:
É sinal de que se está a tomar consciência. Mas, na realidade, deveríamos falar de escravatura: escravatura laboral, escravatura sexual, escravatura para fim de lucro. É triste constatar como, nesta terra que está sob a proteção da Mãe de Deus, muitas mulheres sejam tão desvalorizadas, desprezadas e sujeitas a violências sem fim.”.
Na cruzada contra a violência, discorreu:
Não podemos olhar como normal a violência, tomá-la como uma coisa natural. Não, não se considere normal a violência contra as mulheres, mantendo uma cultura machista que não aceita o papel de protagonista da mulher nas nossas comunidades. Não nos é lícito virar a cara para o outro lado, irmãos, e deixar que tantas mulheres, especialmente adolescentes, sejam espezinhadas na sua dignidade.”.
Não esquecendo as várias pessoas que “emigraram para a Amazónia à procura de teto, terra e trabalho, sublinhou:
Vieram à procura dum futuro melhor para elas mesmas e sua família. Abandonaram a sua vida humilde, pobre, mas digna. Muitas delas, com a promessa de que certos trabalhos poriam termo a situações precárias, basearam-se no brilho promissor da extração do ouro. Mas não esqueçamos que o ouro se pode tornar num falso deus, que pretende sacrifícios humanos.”.
Sob o signo dos “falsos deuses”, falou da corrupção:
Corrompem tudo. Corrompem a pessoa e as instituições; e destroem também a floresta. Jesus dizia que há demónios que, para serem expulsos, se requer muita oração. Este é um deles.”.
Por conseguinte, exortou a que continuassem a organizar-se em movimentos e comunidades para superar estas situações; e a organizar-se, a partir da fé, como comunidades eclesiais ao redor de Jesus. Na verdade, “a partir da oração sincera e do encontro cheio de esperança com Cristo, poderemos obter a conversão que nos faça descobrir a vida verdadeira”. Com efeito, Jesus prometeu-nos a vida: verdadeira, autêntica, eterna; e não uma vida fictícia, como as falsas promessas que encandeiam e que, prometendo vida, acabam por levar à morte.
E, frisando que a salvação não é abstrata, disse que o Pai “vê pessoas concretas”; e que “todas as comunidades cristãs devem ser reflexo deste olhar de Deus, desta presença que cria laços, gera família e comunidade” – um modo de “tornar visível o Reino dos Céus”, comunidade onde cada um se sente participante, chamado pelo nome e incentivado a ser artífice de vida para os outros.
Considerando haver ali tantas crianças, disse que “onde há crianças, há esperança”. E confessou ter esperança naquela gente, “no coração de tantas pessoas que desejam uma vida abençoada”. E, uma vez que vieram procurar tal vida abençoada nesta terra, “onde se encontra uma das explosões de vida mais exuberantes do planeta”, exortou a que a amassem e a sentissem como sua, odorando-a, ouvindo-a, maravilhando-se com ela e comprometendo-se a salvaguardá-la, a defendê-la. E apelou:
Não a useis como mero objeto que se pode descartar, mas como um verdadeiro tesouro a desfrutar, fazer crescer e transmitir aos vossos filhos”.
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Às Autoridades, a Sociedade civil e o Corpo Diplomático
E, no encontro com as Autoridades, a Sociedade civil e o Corpo Diplomático, no Palácio do Governo, fez uma saudação aos presentes, mas extensiva “a cada um dos filhos e filhas deste povo que soube conservar e enriquecer, no decurso dos tempos, a sua sabedoria ancestral” que é “um dos seus principais patrimónios”. E frisou que, tendo vindo ao Peru sob o lema “unidos na esperança”, sublinhou que olhar esta terra é, por si, um motivo de esperança.
Reiterou o enaltecimento à Amazónia, de que uma parte integra o território peruano, e que, “na sua totalidade, constitui a maior floresta tropical e o sistema fluvial mais extenso do planeta”, sendo este ‘pulmão’ do Planeta “uma das áreas de grande biodiversidade no mundo, porque abriga as espécies mais variadas”.
A seguir, focou a rica pluralidade cultural, cada vez mais interativa, que constitui a alma deste povo, com valores ancestrais como “a hospitalidade, a estima do outro, o respeito e a gratidão pela mãe-terra e a criatividade para novos projetos, bem como a responsabilidade comunitária pelo progresso”, que se faz solidariedade, tantas vezes demonstrada nas várias catástrofes experimentadas”. E, neste contexto, falou dos jovens, “o presente mais vital” desta sociedade, pois, “com o seu dinamismo e entusiasmo, prometem e convidam a sonhar um futuro de esperança que nasce do encontro entre o cúmulo da sabedoria ancestral e os novos olhos com que nos presenteia a juventude”.
Depois vincou o rosto de santidade que marca a esperança nesta terra, pois “o Peru gerou Santos que abriram caminhos de fé para todo o continente americano”. E exemplificou com Martinho de Porres, filho de duas culturas, que “mostrou a força e a riqueza que nascem nas pessoas quando colocam o amor no centro da sua vida”. E, reafirmando que esta “é terra de esperança”, a convidar e desafiar para a unidade de todo o seu povo, considerou que “este povo tem a responsabilidade de permanecer unido, para, entre outras coisas, defender precisamente todos estes motivos de esperança”. É que, “sobre esta esperança”, levanta-se uma ameaça: despoja-se a terra dos seus recursos, sem os quais nenhuma forma de vida é possível. De facto, a perda de florestas e bosques supõe o desaparecimento de espécies, que significariam no futuro recursos extremamente importantes, e a perda de relações vitais que acabam por alterar o ecossistema.
Assim, “unidos para defender a esperança” significa desenvolver uma ecologia integral como alternativa a um modelo de progresso ultrapassado, que produz degradação humana, social e ambiental – o que exige “escutar, reconhecer e respeitar as pessoas e os povos locais como válidos interlocutores”, que “mantêm uma ligação direta com o território, conhecem os seus tempos e processos e, por conseguinte, sabem os efeitos catastróficos que, em nome do progresso, provocam muitas iniciativas ao alterar todo o tecido vital que constitui a nação”. Depois, a degradação do meio ambiente está intimamente ligada à degradação moral das nossas comunidades. O Papa explicou exemplificando:
Por exemplo, as extrações mineiras irregulares tornaram-se um perigo que destrói a vida das pessoas; as florestas e os rios são devastados com toda a sua riqueza. Este processo de degradação envolve e favorece a organizações fora das estruturas legais, que degradam tantos dos nossos irmãos e irmãs, submetendo-os ao tráfico de seres humanos – nova forma de escravatura –, ao trabalho irregular, à delinquência... e outros males que afetam gravemente a sua dignidade e, ao mesmo tempo, a dignidade da nação.”.
Disse que “trabalhar unidos para defender a esperança” requer estar muito atentos a outra forma – muitas vezes subtil – de degradação ambiental que contamina progressivamente todo o tecido vital: a corrupção. E vitupera o flagelo:
Quanto mal faz aos nossos povos latino-americanos e às democracias deste abençoado continente este ‘vírus’ social! É um fenómeno que tudo infeta, sendo os pobres e a mãe-terra os mais prejudicados. Tudo o que se puder fazer para lutar contra este flagelo social merece a maior das considerações e cooperações; e esta luta envolve-nos a todos.”.

Contra este mal, propõe “maior cultura da transparência entre entidades públicas, setor privado e sociedade civil”, não excluindo “as organizações eclesiais”, pois “ninguém pode ficar alheio a este processo; a corrupção é evitável e exige o compromisso de todos”.
E àqueles que ocupam cargos de responsabilidade encoraja-os e exorta-os a comprometerem-se para oferecerem ao povo e à terra “a segurança que nasce da convicção de que o Peru é um espaço de esperança e oportunidades... mas para todos, não para poucos”. Na verdade, importa que “todo o peruano e toda a peruana possam sentir que este país é seu, não de outrem, e nele podem estabelecer relações de fraternidade e equidade com o seu próximo e ajudar o outro quando precisar; uma terra onde possa realizar o seu próprio futuro”.
Por fim, renovou “o compromisso da Igreja Católica, que acompanhou a vida desta Nação, neste esforço conjunto de trabalhar para que o Peru continue a ser uma terra de esperança, e pediu a intercessão de Santa Rosa de Lima por cada um dos presentes e por esta abençoada nação.
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Foi o tempo do louvor à Deus e ao povo, o lamento e denúncia de males e a solidariedade expressa na proximidade, na oração e no compromisso. É a hora da nova Esperança!
2018.01.23 – Louro de Carvalho

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