terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Desviante formação e significado de algumas palavras

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 Já em tempos me referi à maneira desviante de formação de algumas palavras e do significado que lhes é atribuído. Recordo que, por motivos então explicados, o “oftalmologista” deveria ser “oftalmiatra” ou “oftalmoterapeuta” porque, mais do que perceber de olhos, ele trata dos olhos ou cura (tenta curar) as doenças oftálmicas (em grego, “ophthalmós” significa “olho”, e iatréuô e terapéuô significam “curo, trato de”) das pessoas; e que o “ginecologista” devia ser “giniatra” ou ginoterapeuta porque, mais do que perceber de mulheres, trata de doenças de senhoras ou tenta curá-las (em grego,günê, günaicós” significa “senhora, mulher”). Aliás, nós temos bons casos de vocábulos bem formados, tais como: geriatra e geriatria, pediatra e pediatria, terapia e terapeuta.
Recordo que a ortopedia e o ortopedista, que hoje tratam sobretudo problemas de ossos, tendões e articulações, originariamente tratavam dessas coisas nas crianças (em grego, “ortós” quer dizer “direito”, “reto”; e “pais, paidós” significa “criança, menino, menina”). É que, segundo a filosofia popular, “de pequenino se torce o pepino”; e estas correções, dantes, se fossem feitas na idade adulta, dificilmente teriam sucesso. Por outro lado, a idade do “pais, paidós” ia até aos 12 anos de idade. Em Roma, os equivalentes “puer” e “puella” iam até aos 17/18 anos.  
Também é detestável o significado atribuído a alguns vocábulos, longe do significado originário. Recordo o caso da “pedofilia” (“filía”, em grego, significa amizade, amor, atração). Não deveria ter o significado que lhe dá o uso, que, depois de consolidado, é a máxima lei de fixação da língua. Já estão bem formadas palavras como “necrofilia”, atração sexual por cadáveres (do grego “νεκρός”, “cadáver” ou “morto”; e “φιλία”,  “amor” ou “atração”); e “coprofilia”, em biologia, a condição do microrganismo que vive nas fezes, ou, em psicologia a excitação erótica motivada pelo cheiro, visão ou contacto com excrementos humanos, que pode chegar à “coprofagia” (do grego “cópros”, “excremento, sujidade” e “phagéo” e “phágomai”, “como”).
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Ainda agora, a propósito das vítimas mortais do acidente de Vila Nova da Rainha, Tondela, falou-se de “autópsia”. Ora, esta palavra formou-se a partir dos elementos gregos “autós” (o mesmo, ele próprio) e o verbo “oráô” (ver, observar, examinar). Porém, nenhum morto consegue ver-se ou examinar-se a si próprio por fora, através dum espelho ou objeto similar, muito menos por dentro. Então o que deveria chamar-se a esse exame que os médicos legistas ou os médicos patologistas são chamados a fazer era a “necropsia”.
Por isso, modernamente, criou-se a sinonímia por “necropsia”, composta de “νεκρός” (nekrós, “morto”) e “ὄψις” (ópsis, “visão”) e por necrocirugia (de “queir, quirós”, mão), que significa cirurgia praticada num cadáver – para evitar que o nome “autópsia” gere confusão, por poder ser entendido, equivocadamente, como “exame de si mesmo”. Porém, diz-se normalmente “autopsia” (em espanhol e italiano), autopsie (em francês) e autopsy (em inglês), pois o termo permanece válido, segundo alguns, enquanto envolve o examinador para ver pelos seus próprios olhos as causas da morte.
Há dois tipos de necropsias: a forense, realizada por razões médico-legais, que normalmente é falada na comunicação social, feita por médicos especializados (médicos-legistas), solicitada pelas autoridades judiciárias e não impugnável pelos familiares, por morte de acidente, morte desconhecida, morte súbita ou morte por suspeita de crime; e a clínica de anatomia patológica, normalmente realizada por médicos patologistas (patologista é o médico que estuda as diversas patologias), com fins de estudo e pesquisa, para determinar, não só a causa da morte, que, em muitos casos, é conhecida, mas todos os processos patológicos que afetam o indivíduo. 
Dois grandes pesquisadores na medicina do século XIX, Rudolf Virchow e Carl von Rokitansky, que realizou 30.000 autópsias, trabalharam na base o legado do Renascimento para forjar as duas técnicas distintas de autópsia que ainda levam os seus nomes. A sua demonstração da relação entre condições patológicas em corpos mortos e sintomas e doenças em seres vivos abriu o caminho para uma forma diferente de pensar sobre as doenças e seus tratamentos.
Podia chamar-se “endoscopia”, exame por dentro (do grego, “endon”, dentro de, e “scopéô”, observo, examino). Mas o vocábulo está cativo por outra atividade. Com efeito endoscopia, que significa o olhar para dentro do paciente, é uma especialidade médica que se ocupa de obter imagens médicas diagnósticas utilizando um endoscópio. O endoscópio é um aparelho que consta basicamente de uma fonte de luz e alguma forma de visualização da imagem para dentro, que pode ser dada por via anal, ventricular ou gastrointestinal. É conhecida a prática colonoscópica.
E, quando se certifica o óbito apenas pelo mero exame exterior, fala-se do simples exame “anatomotanatológico” (comboio de palavras gregas: anatomia – de “ἀνατέμνω, anatemnō” – cortar em partes, “thánatos”, morte; e “logos” com o sufixo -ia – palavra, tratado, estudo). Foi este o único exame que as autoridades vaticanas autorizaram por ocasião do óbito do Papa João Paulo I.
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Há dias, ia a passar na rua e vi um painel a anunciar “Osteopata…”. E eu pensei: “um doente não faz propaganda de si próprio. Há de haver aqui algum equívoco.”, pois, “osteopata” vem dos termos gregos “osteon (ὀστέον), “osso” e “pathos” (πάθὀσ), “doença”. Portanto, deve ser uma pessoa que sofre dos ossos. Também psicopata é o doente de comportamento antissocial, diminuição da capacidade de empatia/remorso e baixo controlo comportamental ou com a presença de atitudes de dominância desmedida, a que vem associado comportamento agonista conexo com a ocorrência de delinquência, crime, falta de remorso e dominância, mas também é associado com competência social e liderança. E o sociopata é o indivíduo com transtorno de personalidade caraterizado por um egocentrismo exacerbado, que leva a uma desconsideração em relação aos sentimentos e opiniões dos outros.
Porém, depois de ler tudo, verifiquei que estava mal enganado. Afinal, a osteopatia – criada, em 1874, pelo médico estadunidense Andrew Taylor Still – é tida como uma prática de medicina alternativa que consiste na utilização de técnicas de mobilização e manipulação articular, bem como de tecidos moles.  Os osteopatas creem que esses procedimentos ajudam o corpo a curar-se sozinho.
Há muito pouca evidência de que a “osteopatia” sirva de alguma ajuda no tratamento de qualquer condição médica, já que não há estudos que comprovem a eficácia desse tipo de tratamento. Os seus praticantes são considerados osteopatias, quando o deviam ser os doentes. Em sentido literal, osteopatia significa doença dos ossos. Por isso, esta prática deveria, pelo menos, à primeira vista, chamar-se osteoterapia ou osteopatoterapia e os seus praticantes de osteoterapeutas ou osteopatoterapeutas, como temos a psicopatologia e o psicopatologista. Mas nem isso, como se verá adiante.
A prática osteopática baseia-se na convicção de que todos os sistemas do corpo estão relacionados, o que é verdade. Assim, qualquer disfunção em um sistema afeta todos os outros. Além disso, crê que o corpo tem total capacidade de se curar sozinho, desde que todas as suas estruturas estejam equilibradas, o que é difícil.
Em Portugal, a prática da osteopatia é uma profissão de saúde, autónoma (em diagnóstico e terapêutica), sendo classificada no âmbito das terapêuticas não convencionais (acupuntura, fitoterapia, homeopatia, medicina tradicional chinesa, naturopatia, osteopatia, e quiropraxia) e regulamentada como tal pelas Leis n.os 45/2003, de 22 de outubro, e 71/2013, de 2 setembro, sendo o título de osteopata protegido por lei. Atualmente, em Portugal, existem cinco faculdades que ensinam o curso de quatro anos com atribuição do grau de licenciado em osteopatia. As consultas e tratamentos de osteopatia, tal como as restantes terapêuticas não convencionais já mencionadas, passaram a estar isentas do IVA (imposto de valor acrescentado), desde janeiro de 2017 pela Lei n.º 1/2007, de 16 de janeiro, à semelhanças dos restantes profissionais paramédicos.
No seu livro Filosofia da Osteopatia, o predito cientista Still enuncia os quatro grandes princípios em que repousa a filosofia osteopática:
- A determinação da função pela estrutura. Com efeito, apesar de o ser humano ser um todo indivisível, as suas estruturas são as diferentes partes do seu corpo (ossos, músculos, pele, glândulas, etc.) e a função é a atividade de cada uma das partes (respiratória, cardíaca, digestiva, etc.). Todas as partes do corpo têm uma estreita relação entre estrutura e função. Para Still, se a estrutura está em harmonia e equilíbrio, não pode haver doença. Toda a doença se origina num distúrbio na harmonia da estrutura. E, se como dizia Darwin, a função cria o órgão, também o preserva e mantém na sua vitalidade.
- A unidade do corpo. O corpo humano tem a capacidade de se autorregular, reencontrando a harmonia e o equilíbrio nas suas estruturas. Para se referir a essa capacidade, Still usa o termo homeostasia (a partir dos termos gregos “hómeo”, “similar” ou “igual”; e “stasis”, “estático”), situando-a no que ele chama de sistema miofascioesquelético. Tal sistema teria a capacidade de guardar “na memória” qualquer trauma físico sofrido.
- A Autocura. Still afirma que o corpo tem em si mesmo tudo o que é necessário para curar e evitar as doenças. Porém, é necessário que não haja obstruções nos canais nervosos, linfáticos e vasculares, além da necessidade de nutrição celular e de eliminação de dejetos.
- O caráter absoluto da regra da artéria. Segundo Still, sendo o mecanismo de envio de nutrientes para as células, a função arterial é primordial. Se as artérias não funcionarem corretamente, o sistema venoso será mais lento, o que fará acumular toxinas, gerando doenças.
Como se vê, a osteopatia tem muito pouco a ver com ossos, a não ser como um dos suportes estruturais das terapias. Poderia muito bem designar-se esta atividade por outros termos como hemopatia (de “haima, háimatos”, sangue), terapia holística, (de “hólos”, todo), dermatoterapia (de “derma, dérmatos”, pele), mioteapia (de “müs, müós”, músculo), adenoterapia (de “adên, adénos”, glândula).
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Estas imprecisões de nomenclatura não aconteceriam se houvesse sempre o espírito de cooperação na comunidade científica, devendo, a solicitação dos cientistas, os linguistas e filólogos contribuir para a fixação da terminologia científica – para bem da ciência e para bem das línguas.
2018.01.16 – Louro de Carvalho

1 comentário:

  1. Estava em busca de outra informação e deparo_me com esse seu verdadeiro tratado etimológico, acredito ser este o termo, em relação à medicina que é considerada como ápice do conhecimento, por guardar e usar os segredos da continuidade da existência... tão falha no uso dos próprios termos. Fiquei até aliviada com o meu desconhecimento das coisas. Seu estudo é fantástico e rigorosamente apaziguador das "nossas ignorâncias" como pessoas leigas na língua e no resto. Obrigada. Ser "doutor" é muito mais.

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