terça-feira, 2 de janeiro de 2018

A expansão marítima europeia do século XVI deve tudo a Portugal

Quem o afirma é François Reynaert, jornalista e escritor, colunista na revista L’ Obs no seu livro “A Grande História do Mundo”, uma obra cujo título se revela francamente ambicioso, da parte dum autor que “já escreveu sobre os gauleses, também sobre os árabes” e agora se aventurou num livro desta grandeza e abrangência, para facilitar a compreensão da globalização.
A propósito deste seu livro de divulgação histórica recentemente traduzido para português, prestou pertinentes declarações ao Diário de Notícias, hoje dadas à estampa na edição on line e em que ressalta a sua afirmação: “Dando a Portugal um lugar de honra no meu livro não fiz mais do que prestar-lhe justiça”.
E justifica dizendo que, devido a Cristóvão Colombo, “a maioria dos europeus e dos americanos pensam que foi a Espanha que esteve na origem da expansão marítima europeia do século XVI”, quando, na verdade, “esta expansão deve tudo a Portugal e, em particular, ao famoso infante Dom Henrique, aquele a quem chamamos em francês Henri, le Navigateur, e que foi o primeiro a enviar os seus navios ao longo da costa africana, a partir dos anos 1420-1430”.
Depois, considera a índole extraordinária dos factos que levaram a que, “passado pouco mais de um século, os portugueses estavam na Índia, controlavam o estreito de Malaca (hoje, na Malásia), esperavam instalar-se na China e tinham-se estabelecido no Japão”.
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A seguir, faz justa referência ao papel de Vasco da Gama e de Fernão de Magalhães, que, segundo alguns, “merecem ser considerados heróis da humanidade”:
Vasco de Gama foi o primeiro europeu a chegar à Índia (em 1498) por via marítima. Fernão de Magalhães – Magellan, como nós dizemos em francês – teve um destino mais trágico, porque foi o primeiro ser humano a tentar uma viagem à volta do mundo, mas não regressou (foi morto numa ilha do Pacífico). O primeiro colocou a primeira pedra do fabuloso império português […]; o segundo – português, mas trabalhando por conta da coroa de Espanha – permitiu aos espanhóis instalarem-se no Pacífico (e conquistarem as Filipinas).”.
Assegura que “podem sem dúvida ser considerados heróis por estes dois países”. Porém, não tem a certeza de que possam ser considerados heróis da humanidade, porquanto, diz Reynaert:
Não tenho a certeza de que os indianos ou os filipinos pensem que sim. Para eles, a chegada dos europeus não representou de maneira nenhuma um progresso, antes marcou o começo de séculos de opressão e de colonização.”.
E tira daqui uma poderosa ilação:
Eis aqui o que há de interessante na história do mundo: obriga-nos constantemente a sair do nosso ponto de vista e a encarar o ponto de vista dos outros, muitas vezes contraditório com o nosso”.
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Após estas considerações sobre o papel de Portugal na expansão europeia, abordou outras questões sugeridas pelo DN.
Quando o entrevistador lhe perguntava por que é que que, no atinente aos impérios, dos três – Alexandre Magno, Gengis Khan ou a rainha Vitória – foi esta, que nunca combateu, quem reinou sobre territórios onde o Sol brilhava sempre, respondeu que esta abordagem, apesar de “interessante”, é “enganadora”. Na verdade, como explica:
Alexandre Magno e Gengis Khan são dois conquistadores que construíram, eles próprios, impérios incríveis. O grego, partindo da Macedónia, fez cair o Império Persa, o maior da sua época; conduziu os seus exércitos até ao rio Indo; e, a acreditar na tradição, apenas voltou para trás porque os seus soldados, esgotados, não quiseram segui-lo mais além. No início do século XIII, Gengis Khan, depois de ter conseguido congregar sob o seu nome as diversas tribos mongóis, levou a cabo também ele conquistas deslumbrantes. Esmagou o poderoso exército chinês, tomou Pequim, voltou-se para a Ásia Central e desencadeou um movimento como houve poucos na história. Duas gerações depois dele, os mongóis dominavam quase toda a Ásia. Apenas a URSS, no século XX, se estenderia por uma área superior à das suas conquistas.”.
Quanto à rainha Vitória, depois imperatriz, a situação é muito diferente:
 “Vitória foi rainha, depois imperatriz (o título de imperatriz das Índias foi-lhe conferido em 1876), mas não uma conquistadora. Reinou sobre um império que continuou a expandir-se durante os seus 63 anos no poder, mas que foi em grande medida constituído antes dela. Não foi um chefe de guerra, nunca dirigiu um exército em campanha. Acontece apenas que foi a rainha de um país que era, na época, a primeira potência mundial e conseguiu impor-se ao mundo inteiro graças à riqueza e poderio que lhe foram dados pela Revolução Industrial, que se operou na Grã-Bretanha a partir de meados do século XVIII, com algumas décadas de avanço sobre os outros grandes países europeus.”.
Em relação à Reforma protestante, à Revolução Francesa e à Revolução Soviética, consideradas como os momentos capitais da história europeia nos últimos 500 anos, pensa que efetivamente “são momentos capitais da história europeia, mas entende que “há muitos outros que são igualmente essenciais”. E dá como exemplo “aquilo que os historiadores chamam a ‘revolução científica’, ou seja, o extraordinário movimento intelectual que, a partir do século XVI, graças a alguns gigantes como o polaco Copérnico, o italiano Galileu, o francês Descartes, o inglês Newton, permitiu ao pensamento científico tornar-se completamente autónomo e deixar de estar submetido à religião”. E discorre:
Antes deles, não havia um pensamento científico propriamente dito – um pensamento que raciocina por si mesmo e que conta unicamente consigo mesmo para estudar os factos e os verificar através da experimentação –, dado que todo o conhecimento tinha obrigatoriamente de se confrontar com as verdades impostas pelos dogmas religiosos. Depois deles, a ciência pôde desenvolver-se. É uma rutura essencial na história do mundo. E foi feita na Europa, por esses grandes europeus que acabo de citar.”.
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Todavia, a obra de François Reynaert constitui um trabalho dum europeu avesso ao eurocentrismo da História, pois a Europa não é o centro do mundo. E, a este respeito responde à pergunta do entrevistador “Como combateu, quando escrevia, a tentação eurocentrista?”, nos termos seguintes, finalizando também com uma pergunta:
Antes de escrever este livro, procurei viajar pela maior parte dos países de que falo, para visitar os seus museus, estudar os seus monumentos, conhecer os seus heróis e compreender de que maneira eles próprios encaram o seu passado. Como poderia pretender escrever uma história do mundo tomando em consideração apenas o seu umbigo?”.
Nesta linha longínqua do eurocentrismo, fala da China e da Índia e das condições de que estes países dispõem para se tornarem as potências dominantes do século XXI. Diz o autor do livro:
Se houvesse apenas uma ilação a tirar do meu livro, seria essa. Um estudo recente acaba de o demonstrar: a Índia deveria, em 2018, ultrapassar a França e o Reino Unido e tornar-se a quinta potência económica mundial. A China só tem uma obsessão: ultrapassar os Estados Unidos para se tornar a primeira potência. Todos os dias as notícias nos dizem que estes países – e sobretudo a China – aumentam o seu poderio. É por isso que, do meu ponto de vista, é urgente conhecer a sua história.”.
E, quanto à formação e à personalidade dos Estados Unidos, feitas de contradições, refere:
Desde a sua independência, em finais do século XVIII, esta nação assentou em imensas contradições. Ao mesmo tempo, criou a primeira democracia moderna; defendeu, na Proclamação de Independência (1776) a ideia incrivelmente nova de que o objetivo da humanidade é a procura da felicidade (the pursuit of happiness) e, na sua Constituição, garante todas as liberdades. Ao mesmo tempo, a economia de metade do país baseava-se na escravatura e a sua expansão territorial assentou no massacre dos índios, que viviam lá havia séculos.”.
Sobre a África, berço de grandes civilizações como o Egito ou o Grande Zimbabwe, tenta explicar como foi tão facilmente dividida pelas potências europeias do século XIX.
Antes de mais, frisa que “a África não é esse ‘continente primitivo’, ‘acabado de sair da idade da pedra’, que os ocidentais descreveram durante muito tempo”, pois, “em numerosos períodos da história, existiram grandes reinos, grandes civilizações africanas”. Todavia, sucede que “a África nunca esteve unida e há vários séculos que foi enfraquecida pelo comércio esclavagista, o ‘trato’, controlado pelos árabes no que se refere ao Leste e ao Norte do continente e, mais tarde (a partir do século XVI) pelos europeus, no que se refere ao Ocidente”. Assim, sublinha:
No século XIX, a África negra estava exangue e, além disso, não conheceu nenhuma das revoluções tecnológicas que deram força aos ocidentais. Por esta razão, não conseguiu contrariar o domínio destes últimos.”.
Relativamente à pretensa existência, na história do islão, de algo que origine um choque de civilizações com o Ocidente, assente que “muitos ocidentais acreditam que sim”. No entanto, julga que “estão enganados e que esta falsa análise os induz em erro”.
Reconhece que é evidente “a existência do terrorismo islamista, que, com efeito, odeia o Ocidente e os seus valores e que, como está demonstrado pelos numerosos atentados, não hesita em lhe causar grandes danos”. Porém, não crê que se deva “pensar, por isso, que estes terroristas islamistas representam o islão e que, como eles próprios querem acreditar, vão conseguir empurrar todo o islão para uma guerra com o Ocidente”. E dá as seguintes razões:
Primeiro, a maioria dos muçulmanos não deseja isso de forma nenhuma. Depois, ao contrário da China, por exemplo, que é uma verdadeira superpotência, nenhum país muçulmano é suficientemente forte para entrar num embate frontal com o Ocidente. Por último e principalmente, como nos provam os conflitos do Médio Oriente, a grande guerra muçulmana do momento trava-se no interior do próprio islão, entre o mundo xiita, representado pelo Irão, e o mundo sunita, que a Arábia Saudita pretende liderar. Para cada um destes dois campos, é muito mais importante esmagar o outro campo do que entrar em conflito com a Europa.”.
Finalmente e de forma surpreendente, ao contrário do pensava o Padre António Vieira e os portugueses do século XVII, Reynaert sublinha o papel da Holanda, quando lhe perguntam que país ou que povo o surpreendeu mais quando escreveu esta história do mundo:
Tantos!” – diz ele – “Falámos do incrível Império Mongol, constituído por Gengis Khan, que subverteu toda a história da Ásia no século XIII. Já falámos de Portugal, muito pouco conhecido. Na história da Europa, podemos citar outro pequeno país de grande destino: os Países Baixos ou Holanda. Quando se chamavam ‘províncias unidas’, nos séculos XVII e XVIII, lançaram-se também nos oceanos para constituir um império impressionante (pense-se na dimensão das imensas ‘Índias Holandesas’, atual Indonésia, em comparação com a superfície deste pequeno país) e, durante esta idade de ouro, deram à Europa lições de liberdade e tolerância acolhendo os proscritos e permitindo a publicação de todas as obras proibidas noutros lugares.”.
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E, assim, num livro de História do Mundo, destaca-se o Papel de Portugal, algo subestimado, mas sem esquecer o papel de tantos outros países. Ora, como diz José Tadeu Soares, segundo os japoneses, Portugal, tendo poucos homens, pôde fazer um império e pôde, como dizemos nós, operar o encontro de culturas, a Holanda, por sua vez, logrou apadrinhar a tolerância e a liberdade de expressão.

2018.01.02 – Louro de Carvalho

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