Quem o afirma é François
Reynaert, jornalista e escritor, colunista na revista L’ Obs no seu livro “A Grande História do Mundo”, uma obra
cujo título se revela francamente ambicioso, da parte dum autor que “já
escreveu sobre os gauleses, também sobre os árabes” e agora se aventurou num
livro desta grandeza e abrangência, para facilitar a compreensão da
globalização.
A propósito
deste seu livro de divulgação histórica recentemente traduzido para português,
prestou pertinentes declarações ao Diário
de Notícias, hoje dadas à estampa na edição on line e em que ressalta a sua
afirmação: “Dando a Portugal um lugar de honra no meu livro não fiz mais do que
prestar-lhe justiça”.
E justifica
dizendo que, devido a Cristóvão Colombo, “a maioria dos europeus e dos
americanos pensam que foi a Espanha que esteve na origem da expansão marítima
europeia do século XVI”, quando, na verdade, “esta expansão deve tudo a
Portugal e, em particular, ao famoso infante Dom Henrique, aquele a quem
chamamos em francês Henri, le Navigateur, e que foi o primeiro a enviar os seus
navios ao longo da costa africana, a partir dos anos 1420-1430”.
Depois, considera
a índole extraordinária dos factos que levaram a que, “passado pouco mais de um
século, os portugueses estavam na Índia, controlavam o estreito de Malaca (hoje, na Malásia), esperavam instalar-se na China e tinham-se estabelecido
no Japão”.
***
A seguir, faz justa referência ao papel de Vasco da Gama e de Fernão de
Magalhães, que, segundo alguns, “merecem ser considerados heróis da humanidade”:
“Vasco de Gama foi o primeiro europeu a chegar à Índia (em 1498) por via
marítima. Fernão de Magalhães – Magellan, como nós dizemos em francês – teve um
destino mais trágico, porque foi o primeiro ser humano a tentar uma viagem à
volta do mundo, mas não regressou (foi morto
numa ilha do Pacífico). O
primeiro colocou a primeira pedra do fabuloso império português […]; o segundo –
português, mas trabalhando por conta da coroa de Espanha – permitiu aos
espanhóis instalarem-se no Pacífico (e
conquistarem as Filipinas).”.
Assegura que
“podem sem dúvida ser considerados heróis por estes dois países”. Porém, não
tem a certeza de que possam ser considerados heróis da humanidade, porquanto,
diz Reynaert:
“Não tenho a certeza de que os indianos ou os filipinos pensem que sim.
Para eles, a chegada dos europeus não representou de maneira nenhuma um
progresso, antes marcou o começo de séculos de opressão e de colonização.”.
E tira daqui
uma poderosa ilação:
“Eis aqui o que há de interessante na história do mundo: obriga-nos
constantemente a sair do nosso ponto de vista e a encarar o ponto de vista dos
outros, muitas vezes contraditório com o nosso”.
***
Após estas considerações sobre o papel de Portugal na expansão europeia,
abordou outras questões sugeridas pelo DN.
Quando o entrevistador lhe perguntava por que é que que, no atinente aos
impérios, dos três – Alexandre Magno, Gengis Khan ou a rainha Vitória – foi esta,
que nunca combateu, quem reinou sobre territórios onde o Sol brilhava sempre,
respondeu que esta abordagem, apesar de “interessante”, é “enganadora”. Na verdade,
como explica:
“Alexandre Magno e Gengis Khan são dois conquistadores que construíram,
eles próprios, impérios incríveis. O grego, partindo da Macedónia, fez cair o
Império Persa, o maior da sua época; conduziu os seus exércitos até ao rio
Indo; e, a acreditar na tradição, apenas voltou para trás porque os seus
soldados, esgotados, não quiseram segui-lo mais além. No início do século XIII,
Gengis Khan, depois de ter conseguido
congregar sob o seu nome as diversas tribos mongóis, levou a cabo também ele
conquistas deslumbrantes. Esmagou o poderoso exército chinês, tomou Pequim,
voltou-se para a Ásia Central e desencadeou um movimento como houve poucos na
história. Duas gerações depois dele, os mongóis dominavam quase toda a Ásia.
Apenas a URSS, no século XX, se estenderia por uma área superior à das suas
conquistas.”.
Quanto à
rainha Vitória, depois imperatriz, a situação é muito diferente:
“Vitória
foi rainha, depois imperatriz (o título de
imperatriz das Índias foi-lhe conferido em 1876), mas não
uma conquistadora. Reinou sobre um império que continuou a expandir-se durante
os seus 63 anos no poder, mas que foi em grande medida constituído antes dela.
Não foi um chefe de guerra, nunca dirigiu um exército em campanha. Acontece
apenas que foi a rainha de um país que era, na época, a primeira potência
mundial e conseguiu impor-se ao mundo inteiro graças à riqueza e poderio que
lhe foram dados pela Revolução Industrial, que se operou na Grã-Bretanha a
partir de meados do século XVIII, com algumas décadas de avanço sobre os outros
grandes países europeus.”.
Em relação à Reforma protestante, à Revolução Francesa e à Revolução
Soviética, consideradas como os momentos capitais da história europeia nos
últimos 500 anos, pensa que efetivamente “são
momentos capitais da história europeia, mas entende que “há muitos outros que
são igualmente essenciais”. E dá como exemplo “aquilo que os historiadores chamam
a ‘revolução científica’, ou seja, o extraordinário movimento intelectual que,
a partir do século XVI, graças a alguns gigantes como o polaco Copérnico, o
italiano Galileu, o francês Descartes, o inglês Newton, permitiu ao pensamento
científico tornar-se completamente autónomo e deixar de estar submetido à
religião”. E discorre:
“Antes deles, não havia um pensamento científico propriamente dito – um
pensamento que raciocina por si mesmo e que conta unicamente consigo mesmo para
estudar os factos e os verificar através da experimentação –, dado que todo o
conhecimento tinha obrigatoriamente de se confrontar com as verdades impostas
pelos dogmas religiosos. Depois deles, a ciência pôde desenvolver-se. É uma
rutura essencial na história do mundo. E foi feita na Europa, por esses grandes
europeus que acabo de citar.”.
***
Todavia, a obra de François
Reynaert constitui um trabalho dum europeu avesso ao eurocentrismo da História,
pois a Europa não é o centro do mundo. E, a este respeito responde à pergunta
do entrevistador “Como combateu, quando escrevia, a tentação eurocentrista?”, nos termos seguintes, finalizando também com
uma pergunta:
“Antes de escrever este livro, procurei viajar pela
maior parte dos países de que falo, para visitar os seus museus, estudar os
seus monumentos, conhecer os seus heróis e compreender de que maneira eles
próprios encaram o seu passado. Como poderia pretender escrever uma história do
mundo tomando em consideração apenas o seu umbigo?”.
Nesta linha
longínqua do eurocentrismo, fala da China e da Índia e das condições de que
estes países dispõem para se tornarem
as potências dominantes do século XXI. Diz o autor do livro:
“Se houvesse apenas uma ilação a tirar do meu livro, seria essa. Um
estudo recente acaba de o demonstrar: a Índia deveria, em 2018, ultrapassar a
França e o Reino Unido e tornar-se a quinta potência económica mundial. A China
só tem uma obsessão: ultrapassar os Estados Unidos para se tornar a primeira
potência. Todos os dias as notícias nos dizem que estes países – e sobretudo a
China – aumentam o seu poderio. É por isso que, do meu ponto de vista, é
urgente conhecer a sua história.”.
E, quanto à formação e à personalidade dos Estados Unidos, feitas de
contradições, refere:
“Desde a sua independência, em finais do século XVIII,
esta nação assentou em imensas contradições. Ao mesmo tempo, criou a primeira
democracia moderna; defendeu, na Proclamação de Independência (1776) a ideia
incrivelmente nova de que o objetivo da humanidade é a procura da felicidade (the pursuit of happiness) e, na sua Constituição, garante todas as liberdades.
Ao mesmo tempo, a economia de metade do país baseava-se na escravatura e a sua
expansão territorial assentou no massacre dos índios, que viviam lá havia
séculos.”.
Sobre a África, berço de grandes civilizações como o Egito ou o Grande
Zimbabwe, tenta explicar como foi tão facilmente dividida pelas potências
europeias do século XIX.
Antes de
mais, frisa que “a África não é esse ‘continente primitivo’, ‘acabado de sair
da idade da pedra’, que os ocidentais descreveram durante muito tempo”, pois, “em
numerosos períodos da história, existiram grandes reinos, grandes civilizações
africanas”. Todavia, sucede que “a África nunca esteve unida e há vários
séculos que foi enfraquecida pelo comércio esclavagista, o ‘trato’, controlado
pelos árabes no que se refere ao Leste e ao Norte do continente e, mais tarde (a partir do
século XVI) pelos europeus, no que se refere
ao Ocidente”. Assim, sublinha:
“No século XIX, a África negra estava exangue e, além disso, não
conheceu nenhuma das revoluções tecnológicas que deram força aos ocidentais.
Por esta razão, não conseguiu contrariar o domínio destes últimos.”.
Relativamente à pretensa existência, na história do islão, de algo que
origine um choque de civilizações com o Ocidente, assente que “muitos
ocidentais acreditam que sim”. No entanto, julga que “estão enganados e que esta falsa análise os induz em erro”.
Reconhece que
é evidente “a existência do terrorismo islamista, que, com efeito, odeia o
Ocidente e os seus valores e que, como está demonstrado pelos numerosos
atentados, não hesita em lhe causar grandes danos”. Porém, não crê que se deva “pensar,
por isso, que estes terroristas islamistas representam o islão e que, como eles
próprios querem acreditar, vão conseguir empurrar todo o islão para uma guerra
com o Ocidente”. E dá as seguintes razões:
“Primeiro, a maioria dos muçulmanos não deseja isso de forma nenhuma.
Depois, ao contrário da China, por exemplo, que é uma verdadeira superpotência,
nenhum país muçulmano é suficientemente forte para entrar num embate frontal
com o Ocidente. Por último e principalmente, como nos provam os conflitos do
Médio Oriente, a grande guerra muçulmana do momento trava-se no interior do
próprio islão, entre o mundo xiita, representado pelo Irão, e o mundo sunita,
que a Arábia Saudita pretende liderar. Para cada um destes dois campos, é muito
mais importante esmagar o outro campo do que entrar em conflito com a Europa.”.
Finalmente e de forma surpreendente, ao contrário do pensava o Padre António
Vieira e os portugueses do século XVII, Reynaert sublinha
o papel da Holanda, quando lhe perguntam que país ou que povo o surpreendeu mais quando escreveu esta história do
mundo:
“Tantos!” – diz ele – “Falámos do incrível Império Mongol, constituído
por Gengis Khan, que subverteu toda a história da Ásia no século XIII. Já
falámos de Portugal, muito pouco conhecido. Na história da Europa, podemos
citar outro pequeno país de grande destino: os
Países Baixos ou Holanda. Quando
se chamavam ‘províncias unidas’, nos
séculos XVII e XVIII, lançaram-se também nos oceanos para constituir um império
impressionante (pense-se na
dimensão das imensas ‘Índias Holandesas’, atual Indonésia, em comparação com a
superfície deste pequeno país) e, durante
esta idade de ouro, deram à Europa lições de liberdade e tolerância acolhendo
os proscritos e permitindo a publicação de todas as obras proibidas noutros
lugares.”.
***
E,
assim, num livro de História do Mundo, destaca-se o Papel de Portugal, algo
subestimado, mas sem esquecer o papel de tantos outros países. Ora, como diz
José Tadeu Soares, segundo os japoneses, Portugal, tendo poucos homens, pôde
fazer um império e pôde, como dizemos nós, operar o encontro de culturas, a Holanda,
por sua vez, logrou apadrinhar a tolerância e a liberdade de expressão.
2018.01.02 –
Louro de Carvalho
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