domingo, 7 de janeiro de 2018

Todos temos uma opinião, baseada muitas vezes em ideias ligeiras

A asserção é de Constança Urbano de Sousa, que largou a pasta da Administração Interna e “saiu do governo e da vida pública entre críticas e com má imagem mediática” e que deu uma entrevista exclusiva à revista “Notícias Magazine”, do JN e do DN, de hoje, 7 de janeiro.
Não sendo calculista e nunca tendo feito nada no “sound byte”, sabe que as mortes nos incêndios de 2017 e a falta de jeito em lidar com a Média ditaram a sua demissão. Porém, sabia ao que ia quando aceitou o convite – “uma pasta sensível e de desgaste rápido”.
Da entrevista respigam-se alguns aspetos atinentes à perceção que a académica e ex-Ministra apresenta das realidades e faz-se na convicção que foi esta injustamente a única cabeça a rolar.
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A professora da Universidade Autónoma de Lisboa, há muito da casa, está de regresso, depois dos episódios que acabaram por levar à sua demissão do Governo. A entrevistada não se recusou a falar dos incêndios e deixou perceber que “o assunto lhe pesa no pensamento”.
Constança Urbano de Sousa nasceu a 1 de abril de 1967 em Coimbra. Tem longa carreira no Direito, como professora na Autónoma de Lisboa e no Instituto de Ciências Policiais e Segurança Interna. Foi conselheira e coordenadora da Unidade Justiça e Assuntos Internos da Representação Permanente de Portugal junto da UE. Na presidência portuguesa da UE, presidiu ao CEIFA (Comité Estratégico Imigração, Fronteiras e Asilo). Filiada no PS em 2000, trabalhou com António Costa na Administração Interna (2005/2007). Nas últimas legislativas foi eleita deputada pelo círculo do Porto.
No atinente ao modo como é vista hoje pelos portugueses, refere que “a imagem da imprensa escrita e de alguns comentadores não corresponde” ao que sente, salientando o “imenso e gratificante” carinho que recebe das pessoas na rua, bem como as “palavras de apoio”. E confessa-se “tranquila, dentro das circunstâncias” e senhora da sua consciência.
Com a passagem pelo Governo, descobriu-se “ainda mais agarrada” aos seus princípios do que pensava, “incapaz de fazer cedências”, não conseguindo “ser calculista a esse ponto”. Tornou-se “ainda mais resiliente”. E confessa que, não havendo nada a aprender, perde o interesse – o que exemplifica com os 6 anos de Bruxelas, em que aprendeu muito sobre relações internacionais e tratou de dossiês muito importantes. Porém, quando já não estava a aprender, decidiu-se pelo regresso à Universidade Autónoma de Lisboa e ao Instituto de Ciências Policiais e Segurança Interna, aceitando também a assessoria jurídica da Gulbenkian.
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Provavelmente não faria hoje as declarações sobre férias no pico dos incêndios de outubro. Mas pensa que “fazer a análise no fim do jogo é bem mais fácil”. Com efeito, “somos um país de treinadores de bancada e todos temos uma opinião, baseada muitas vezes em ideias ligeiras”, pois “ir ao fundo dos problemas dá muito trabalho e exige reflexão”. Por outro lado, assume que nunca trabalhou para imprensa mas para o país, para as pessoas. Embora não tenha o hábito de ler sobre si própria, lamenta que “algumas pessoas, que tinha por sérias e inteligentes, tivessem embarcado na espiral das acusações fáceis, reduzindo todas as tragédias, fruto de uma série de fatores e de desinvestimentos de décadas”, à competência da Ministra ou falta dela. E sentiu que, “se tivesse sido um homem a passar pelas mesmas circunstâncias, talvez tivesse merecido mais respeito”, crendo que “ser mulher pesou na forma, por vezes, desrespeitosa, deselegante e malcriada como fui tratada por alguns”, nomeadamente políticos, jornalistas e aspirantes a opinadores.
A experiência mostrou-lhe, sobre Portugal e os portugueses, que o país se desenvolveu bastante nos últimos anos e que essa evolução é inegável. Porém, diz:
“Somos ainda um país que pensa pouco. Os portugueses, em regra, não pensam profunda e racionalmente na vida, nas suas opções. São sobretudo emotivos. Também eu sou emotiva, também choro com facilidade, também vivo a dor dos outros mais intensamente que a minha, também abraço e beijo. Os portugueses agem muito com a emoção, provocando um debate superficial das grandes questões que assim se perdem na espuma mediática. Em Portugal, a espuma mediática é uma coisa terrível. E leva tudo atrás, de enxurrada.”.
Diz gostar muito da política, mas detestar a politiquice, no que se reconhece germânica.
Quanto ao facto de ser criticada por chorar em público, explica-se:
A primeira vez que chorei foi no início do governo, numa homenagem a um jovem polícia abatido em serviço e ter sido notícia é, desde logo, revelador. Descobri que para alguns opinion makers uma mulher que chora é fraca. E se é fraca é incompetente, não serve. Já se um homem chora, bom, aí é sinal de grande sensibilidade. O que é uma forma absolutamente misógina e sexista de abordar a questão.”.
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Sobre o relacionamento com António Costa, diz que saiu absolutamente incólume do processo de demissão, mantendo “uma profunda relação de amizade e de admiração pelo político que é” e “pelo homem também”. E, em relação ao alegado facto de que, na carta que lhe escreveu deixou claro que “se manteve no cargo a pedido do próprio, deitando-lhe em cima essa responsabilidade”, justifica-se:
Escrevi aquela carta a António Costa e mais ninguém. Não fui eu que a publiquei, nunca o faria. A decisão de a tornar pública foi dele.”.
À questão se aceitaria uma nova experiência governativa, não disse “nunca”, mas declarou:
Esta experiência foi, apesar de tudo, positiva. Momentos que foram ainda de um confronto também muito duro com a realidade deste país, que passei a conhecer melhor. Estar em Lisboa, sentadinho num sofá a dar palpites, sem ter noção da realidade, das causas e de uma vivência no terreno é muito fácil. Mas passei também, com a terrível tragédia dos incêndios, pelos momentos mais difíceis da minha vida. Que serão para sempre extremamente duros, que irão acompanhar-me para o resto da vida, que levarei para a cova.”.
Reconhece que, da parte do Governo, nunca sentiu que “pelo facto de ser mulher merecesse menos confiança”, que teve “sempre liberdade” – recusando a vigilância discreta insinuada pela entrevistadora.
Quanto a quotas de género, diz não ser adepta, mas compreende a sua pedagogia:
Percebo que são um mal necessário quando as coisas não vão por si, mas a ideia de quotas é, em si mesma, discriminatória. O ideal seria que o género não tivesse qualquer tipo de influência na decisão de colocar alguém aqui ou ali. E para que isso possa acontecer é preciso organizar a vida de outra forma, para conciliar a vida profissional com a pessoal. Desde logo, a vida das empresas. Acabar com as reuniões às sete da tarde, por exemplo. Alguém já foi buscar os filhos à escola, alguém já foi fazer o jantar, alguém já lavou os filhos e os pôs na cama. Na política é a mesma coisa.”.
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Sobre a sua implicação partidária, foi-lhe recordado que, em 2000, chamou a atenção de Nuno Severiano Teixeira, Ministro da Administração Interna, que a convidou para a assessoria jurídica. E, quando há dois anos chegou ao Governo, alguém do partido afirmava nunca a ter visto tomar posição nas reuniões. A isto responde:
Durante muito tempo fui militante de base, só cheguei aos órgãos do partido muito mais tarde. Gosto muito da política mas detesto a politiquice. Não me perco com tricas. Afasto-me. O convite de Nuno Severiano Teixeira, que não conhecia, foi feito quando fui entregar-lhe um trabalho que tinha estado a fazer para o anterior ministro. Bom, podia ter feito o número e dito que ia para casa pensar. Mas foi instintivo. Quer o convite quer a resposta. Aceitei de imediato.”.
Foi, depois, assessora de António Costa, quando Ministro da Administração Interna (2006 e 2007). Quanto a possuir um perfil mais técnico do que político, opina do seguinte modo, formulando interrogações e tentando as respostas:
Depende do que se entender por perfil político. É trocar a realidade pela perceção da realidade? É ter um discurso redondo? É mediatizar aquilo que nem sequer deve ser mediatizado? A política vive hoje de uma relação muito íntima com a comunicação social e com o mediatismo. Uma relação em que só é aquilo que aparece. Hoje, a política é muito a gestão da perceção. Essa é uma forma de fazer política na qual não me revejo e, talvez por isso, esteja um pouco deslocada neste mundo.”.
Como pessoa de esquerda, confessa ter as seguintes ambições:
A constante procura da justiça social, da igualdade, da eliminação das discriminações económicas, sociais e culturais. A procura da igualdade de oportunidades. Tratar todos por igual, que me parece ser uma das marcas que deixei no Ministério. Ser de esquerda é procurar um certo determinismo no sentido da igualdade, que tem de ser induzida, naturalmente, através de políticas públicas que corrijam as desigualdades.”.
Sobre a gestão do seu Ministério e sobre as palavras alegadamente mais ouvidas – “Constituição” e “Direitos Humanos”, discorre: 
Sou legalista e acima de tudo gosto muito de estudar. Sou incapaz de falar sobre temas ou defender legislação sem estudar profundamente a matéria. Um exemplo: a lei das pensões dos polícias e dos militares, que conseguimos aprovar e pela qual me bati muito. Passei dias a estudar ao pormenor todo o regime jurídico, coisa que nunca tinha pensado fazer e que não é um tema muito aliciante. Gosto de ter autossuficiência. Nas reuniões, raramente me faço acompanhar de técnicos. Deve ser, por isso, que me dizem mais técnica do que política.”.
Entende que a sua maior frustração foi não ter tido capacidade para evitar as tragédias dos fogos. É algo que será sempre doloroso e a acompanhará a vida inteira. Mas aponta outras:
Por exemplo, não ter visto os primeiros frutos da lei de programação das estruturas e equipamentos, uma lei muito importante que consegui aprovar no Parlamento e que dotará as nossas forças de segurança de melhores equipamentos e infraestruturas. Não resolverá todo o problema, que é real e fruto de décadas de desinvestimento, mas trará uma imensa melhoria.”.
Todavia, sempre superou as frustrações sempre se levantando e tentando “vias alternativas” para chegar ao que tem a fazer.
Considera desesperante a burocracia com a qual se torna impaciente, por vezes, já que “a máquina burocrática é de tal forma pesada que nos consome tempo e muita energia”.
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Começou a interessar-se pela política na Alemanha (onde viveu 7 anos como estudante de Direito Europeu no Centro de Estudos Europeus da Universidade do Sarreland, Saarbrücken), na transição para Gerhard Schröder, em quem admirava a “capacidade de mobilizar e concretizar, ter visão, objetivos bem definidos e seguir os princípios em linha reta”.
Não morrendo de amores por Direito, quando jovem, não levou grandes expectativas para Coimbra (1985). Não ligava muito à vida académica, nunca usou capa e batina, nunca entrou “no espírito coimbrinha”. Tinha o seu grupo e, “sempre que tinha férias, saía”.
Passou o primeiro ano “a despachar cadeiras para dispensar das orais e entrar de férias mais cedo”. No segundo ano, porém, desafiou-se a si própria a melhorar, tendo de “trabalhar o dobro e o triplo”.
Assume ter já então “sentido de responsabilidade, de cumprimento dos deveres” e “com uma personalidade forte, algo rebelde, sempre muito opinativa, muito assertiva”.
À questão se “pode um espírito impaciente, que gosta da ação direta, ser feliz no Parlamento”, contrapõe:
Ainda é muito cedo para dizer se sou ou não feliz na Assembleia. A minha experiência é ainda muito curta, ainda não tive tempo suficiente para me integrar. Cheguei numa altura um pouco ingrata, em que tudo gira à volta do Orçamento do Estado. A partir de agora terei mais oportunidade para conhecer a atividade parlamentar.”.
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E aceitou falar dum outro assunto que passa pela Administração Interna: as migrações, frisando que felizmente, “em Portugal, as questões das migrações têm escapado à barganha política”. E diz que será bom que assim se continue.
A especialista em migrações fala à vontade, ressalvando que o problema não é exclusivo de hoje, embora tenha contornos novos. E explicita, sobre o que se mantém e sobre o que mudou:
As grandes vagas migratórias a que estamos a assistir são movimentos populacionais sul/ norte, mas também sul/sul. Antes de olharmos para o nosso umbigo convém perspetivar. A Europa recebeu cerca de um milhão de refugiados sírios, exatamente o mesmo que o Líbano. Tragédias no Mediterrâneo não são de hoje. Em 2007 participei numa audição no Parlamento Europeu sobre esse tema. Já nessa época se estimava em 15 mil o número de pessoas mortas na travessia. O que mudou? A perceção, ou seja, aquilo que sempre aconteceu acontece agora com um mediatismo nunca visto. Mas também o crescimento exponencial em termos numéricos, a dispersão geográfica, hoje muito maior, e a dimensão do negócio já que quanto maior é a procura maior é o lucro das associações criminosas que organizam as travessias.”.
Destaca assim o movimento migratório sul/norte e sul/sul, a mudança na perceção do problema, o aumento do volume migratório e o poder do negócio, com o lucro das associações criminosas.
Sem querer generalizar, encontra em Portugal ainda laivos de xenofobia e racismo. Com efeito, diz que, ao deter-se nos comentários dos jornais, lhe “salta à vista a tendência de alguns, quase sempre os mesmos, para despejarem a raiva que têm ao mundo”, havendo “comentários tremendos, que nos deixam envergonhados e a perguntar que espécie de gente é aquela”.
Quanto a eventuais declarações de pessoas com responsabilidades que poderiam ter sido ditas na Alemanha dos anos 1930 e 40, diz que isso é atroz e comenta, afastando as questões migratórias das questões de segurança:
Tem muito que ver com a forma como os media transmitem informação. No afã do sensacionalismo, alguma comunicação social perde o sentido de responsabilidade, deixa-se instrumentalizar, consciente ou inconscientemente, por projetos políticos e torna-se autêntica incendiária. Ligar as questões migratórias às da segurança, quando está cientificamente provado que não há relação, é extremamente perigoso. São associações primitivas, que geram medo nas pessoas. Em Portugal, pelo menos até agora, as questões ligadas à migração têm escapado à barganha política e espero que assim continuem.”.
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Conhecida como a “professora dos polícias”, pois leciona há 20 anos no Instituto Superior de Ciências Policiais, não deixa de se referir a esta faceta da sua situação profissional:
Já passaram por mim várias gerações de polícias. Dei Direito da União Europeia a oficiais de polícia. Este curso foi o primeiro curso superior do país com uma cadeira obrigatória de Direitos Fundamentais.”.
E, interpelada sobre se, no recurso a armas, as polícias portuguesas são de confiança, sustenta uma posição clara, mas equilibrada:
As polícias têm uma posição ingrata e são criticadas porque disparam ou porque não disparam. As nossas polícias estão sujeitas a regras muito estritas no que diz respeito ao uso de armas de fogo. Sempre que disparam são objeto de processos de averiguações que podem conduzir ou não a processo disciplinar.”.
Afasta, por outro lado, a ideia de que haja nas polícias uma reação muito corporativa, explicando:
Muitos dos casos de uso abusivo das funções são investigados dentro das próprias polícias e, muitas vezes, sob a direção do MP. Mas, como em tudo na vida, há sempre ovelhas negras no rebanho e essas é que são notícia. Temos modelos de policiamento que são exemplo em outros países. De resto, só quem não conhece a realidade lá fora não percebe que as nossas polícias têm um enorme sentido de serviço ao cidadão. E isso devia ser mais valorizado.”.
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E é isto: não se pode avaliar uma personalidade pública apenas pelo exercício de um cargo ministerial – esse é transitório. E a professora, a académica e a especialista em migrações e segurança vale bem mais que a ministra. E diga-se em abono da verdade que foi solitária e injustamente desligada da governação, quando outros tiveram igualmente responsabilidades politicas no surto incendiário. E foram poupados… Porquê?!

2018.01.07 – Louro de Carvalho 

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