Já se deduzia e suspeitava, mas agora é claro. O
Ministério Público português assume não confiar na Justiça angolana. E é por
isso que está contra o envio para Angola dos
factos do processo judicial onde o antigo vice-presidente angolano Manuel
Vicente é acusado de corromper um magistrado português.
Com efeito o procurador português que acompanha o processo respondeu à defesa angolana com o argumento de
que as autoridades judiciais
daquele país não dariam “prosseguimento ao processo ou, pelo menos, não
dão garantias de que o fariam”.
Esta argumentação encontra-se numa resposta ao recurso da defesa de Manuel
Vicente que o Expresso (acesso pago) revela
hoje, dia 13, e onde o procurador do Ministério Público português duvida da “boa administração da Justiça” angolana em relação
ao caso.
O procurador refere que três cartas enviadas por Angola em resposta aos
pedidos das autoridades portuguesas são a demonstração de que, se o caso fosse enviado para lá, o antigo vice-presidente de José
Eduardo dos Santos nunca seria julgado e muito menos condenado.
O referido semanário cita a primeira carta, de finais de 2016, onde Angola
nega a possibilidade de “audição e constituição como arguido de Manuel Vicente,
uma vez que goza de imunidade pelo facto de ter sido vice-presidente de
Angola”. Na carta seguinte, Angola diz que as acusações contra Vicente estariam
abrangidas por uma amnistia, mas volta atrás nesta consideração já na terceira
carta que envia para Portugal, referindo que, não tendo conhecimento dos factos,
não pode dizer se gozam ou não de amnistia.
No processo “Operação Fizz”, Manuel Vicente é acusado de ter pago 760 mil
euros a Orlando Figueira, quando este era procurador no DCIAP (Departamento
Central de Investigação e Ação Penal) para obter
decisões favoráveis”.
O início do julgamento está marcado para 22 de janeiro, em Lisboa, estando
Manuel Vicente pronunciado por corrupção ativa em coautoria com Paulo Blanco e
Armindo Pires, branqueamento de capitais, em coautoria com Paulo Blanco,
Armindo Pires e Orlando Figueira e falsificação de documento, com os mesmos
arguidos.
Por seu turno, o procurador Orlando Figueira, que chegou a estar preso
preventivamente, está pronunciado por corrupção passiva, branqueamento de
capitais, violação de segredo de justiça e falsificação de documentos, o
advogado Paulo Blanco por corrupção ativa em coautoria, branqueamento também em
coautoria, violação de segredo de justiça e falsificação documento em
coautoria.
O Presidente angolano João Lourenço sustentou, no passado dia 8, na conferência de imprensa que
marca os seus primeiros 100 dias no poder, que as relações entre Portugal e
Angola vão “depender muito” da resolução deste processo no tocante a Manuel
Vicente.
Quando
Angola pediu a transferência do processo de Manuel Vicente para o
território africano, Portugal não a concedeu, alegando não confiar na justiça
Angolana. João Lourenço, na predita conferência de imprensa, aponta esta recusa
como “uma ofensa”. Disse o Presidente angolano: “Portugal, lamentavelmente, não satisfez o pedido”.
E esclarece: “Não estamos a pedir o arquivamento ou absolvição” do processo.
Todavia, refere que, apesar de lamentar a situação, as boas relações podem
ser retomadas com “apenas um gesto”:
“Se
Portugal recuar na decisão e remeter o processo para Angola”.
Depois,
afirmou:
“Temos toda a paciência deste
mundo. Vamos continuar à espera do desfecho deste caso.”.
Quanto
às medidas a tomar no caso de o Governo português não alterar a sua posição,
disse que são ainda uma incógnita, assegurando: “Não posso revelar”.
***
Já no dia 9 se podia concluir desta confiança em relação à justiça
angolana. O juiz titular do caso ‘Operação Fizz’ concordou com a posição do
Ministério Público (MP) em recusar a transferência do processo do antigo vice-presidente angolano
para Angola, decisão que foi objeto de recurso para a Relação de Lisboa.
Em resposta à agência Lusa, a
Procuradoria-Geral da República (PGR) refere que, “no essencial, o juiz titular do processo concordou com a
posição do Ministério Público, indeferindo a transmissão requerida pelo
suspeito”, mas esta decisão judicial “foi objeto de recurso para o Tribunal da
Relação de Lisboa” pela defesa de Manuel Vicente, acusado de corrupção.
A PGR explicou à Lusa que a
decisão de rejeitar a transmissão do processo para Angola se fundamentou no
facto de as autoridades angolanas terem dito “não haver qualquer possibilidade de cumprimento de eventual carta
rogatória que,
porventura, lhes fosse endereçada para audição e constituição como arguido de
Manuel Vicente, por considerar que o mesmo é detentor de imunidade”. É, de
facto estranha a imunidade após o abandono do cargo.
Baseou-se a PGR também na comunicação de que factos de que Manuel Vicente é
acusado estariam abrangidos, em Angola, pela Lei da Amnistia.
A PGR revela também que as autoridades angolanas comunicaram que “não era
possível saber, com antecedência, se se aplicaria esta ou aquela lei da ordem
jurídica angolana, quando questionadas genérica e teoricamente se a Lei da
Amnistia seria aplicável ao caso concreto”.
Na resposta à Lusa, a PGR adianta que o MP concluiu “não existir qualquer
garantia de que os factos, em caso de transmissão do processo, fossem objeto de
apreciação judicial”. O MP entendeu não se verificar o
requisito da “boa administração da justiça” e as condições para
transmissão do processo.
Para a defesa do ex-governante angolano, as questões relacionadas com
Manuel Vicente deviam ser analisadas pela justiça angolana, apontando
mecanismos previstos no Direito Internacional e nos Direitos internos em
matéria de cooperação judiciária.
A defesa colocou a questão no processo, tendo esta sido rejeitada pelo juiz
do processo, o que motivou um recurso para a Relação. O procedimento de
transmissão de processos penais está regulado pelo artigo 79.º e seguintes da
Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, e pela Convenção de Extradição entre os
Estados Membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP).
***
Por seu turno, o ex-ministro do PSD Miguel Relvas defendeu,
em Luanda, a transferência do processo para a Justiça angolana. E disse, numa
entrevista divulgada hoje, dia 13, pelo principal telejornal da TPA (Televisão
Pública de Angola):
“Não tenho razão nenhuma para não confiar na
Justiça angolana. Confio na Justiça angolana como confio na Justiça portuguesa.”.
O político, antigo Ministro-Adjunto e dos Assuntos Parlamentares e
atualmente com presença assídua em Luanda, descreve este caso, que ameaça as
relações entre os dois países, como “institucionalmente
inexplicável” e que “não é compreensível”.
“Conheço o engenheiro Manuel Vicente, conheci no passado no desempenho
de funções, e tenho a certeza que seria incapaz de cometer, como se irá provar,
muitas das acusações que lhes são imputadas”.
Todavia, tem
razão ao sublinhar que “os Estados respeitam-se” e que esta é “uma questão do
Estado português”, mesmo que na esfera do poder judicial. E apontou que a
polémica em torno deste processo “já está a causar” dificuldades às relações
bilaterais, pelo que sustentou:
“Espero que se ultrapasse, que este processo seja rápido e se conclua de
uma forma rápida e que a verdade venha ao de cima (…) Factualmente foi um não
processo.”.
***
Queiramos ou não, este caso ensombra as relações entre Angola e Portugal e
entre Angola e a CPLP, apesar de António Costa afirmar e reafirmar que há boas
relações económicas e políticas entre os dois países, embora com um problema de
justiça que não depende do poder político: Presidente da República, Governo e
Parlamento.
E o problema persiste, mesmo que o Primeiro-Ministro possa garantir que
teve uma conversa muito frutuosa com João Lourenço aquando da cimeira entre a
União Europeia e África ou que espera ter uma boa conversa com o mesmo no
âmbito do próximo encontro de Davos, na Suíça.
E, embora Santos Silva tenha referido que está em preparação a visita do
Primeiro-Ministro a Angola, o certo é que, a ser verdade o que transpira para a
comunicação social, o problema das relações com Angola será um dos que mais
ensarilham o Ministro dos Negócios Estrangeiros. E o caso não é para menos.
Recordo que já Rui Machete se viu entre a espada e a parede com as
crispações na diplomacia Angola/Portugal por causa das vicissitudes da justiça
portuguesa. E é por motivos destes que Joana Marques Vidal, PGR, e Francisca
Van Dunem, MJ, entraram em rota de colisão, a ponto de, alegadamente em nome da
Constituição e da Lei, a Ministra ter vindo a insinuar a impossibilidade de
Marques Vidal continuar como PGR a partir de outubro.
Como deixei perceber em tempos, a competência técnica da PGR é apreciada de
varias maneiras conforme a simpatia e a ideologia de quem aprecia. Penso, da
minha parte, que houve aspetos positivos e aspetos negativos na sua direção do
MP. Todavia, parece ressaltar uma certa inépcia na prestação dum serviço
judiciário que minore as complicações que podem influenciar negativamente a
diplomacia. Há efetivamente a separação de poderes, mas esta não pode ser
incompatível com a interdependência e a cooperação entre eles.
Portugal terá razão para exigir no seu território o julgamento de Manel
Vicente. Porém, em vez de invocar explícita ou implicitamente a desconfiança na
justiça angolana, deveria invocar, por exemplo, a complexidade do processo, o
interesse nacional neste julgamento dado tratar-se dum coletivo implicado no
mesmo tipo de criminalidade, em concreto. E, sobretudo, as autoridades do outro
país não deviam ter razão quando aduzem que souberam do caso pela comunicação
social. Impunha-se a via diplomática. Apanhar peixe graúdo não justifica tudo!
Ainda bem, que este Ministro dos Negócios Estrangeiros ainda não caiu na
arola de pedir desculpa aos angolanos por termos um sistema de justiça
independente dos outros poderes. No entanto, recordo que o sistema de justiça
também é poder político segundo a CRP. Com efeito, a justiça é administrada em
nome do povo e tenta sancionar as relações na pólis, tendo em tantos casos a última palavra.
2018.01.13 –
Louro de Carvalho
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