terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Agora o mais necessitado é um banco!


É a conclusão irónica a que chega Javier Martín del Barrio no seu artigo de opinião publicado a 5 de janeiro pp no El País, sob o título “Dinheiro dos pobres para salvar um banco português”, no qual acusa a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) de comprometer os seus recursos num investimento estranho e especulativo.
Diz o articulista que, se Robin dos Bosques e o seu bando de amigos levantassem hoje a cabeça, ficariam atónitos com a mudança que os tempos induziram no país. Com efeito, em vez da utilização da habilidade do arco e da flecha para roubar os nobres, agora os ricos, para dar aos pobres, utilizam-se as falas mansas e os pactos para “usar o dinheiro da caridade para salvar um banco”.  É o Robin dos Bosques (ou Robin Hood) ao contrário.
Está em causa a pressuposta e irreversível entrada da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa no capital da Caixa Económica Montepio Geral, que até agora tinha como único acionista a Associação Mutualista Montepio Geral, liderada por Tomás Correia.
A primeira e de maior vulto instituição benéfica do país vai destinar a quinta parte dos seus ativos, cerca de 200 milhões de euros, em troca de 10% do Montepio, considerado o último banco com problemas em Portugal.
Tal como o ex-ministro Bagão Félix, Javier Martín del Barrio considera este investimento estranho e especulativo e critica o silêncio ou a falta de crítica dos partidos – da direita à esquerda – que “passaram de raspão por tão delicada situação”.
Mais refere que o atual Provedor da instituição, que detém o monopólio do jogo lícito em Portugal – o colunista chama-lhe “um infinito fundo imobiliário – declara que o investimento se faz com “alguma tranquilidade” num banco que tem “alguma solidez”.
Convenha-se na ironia posta pelo articulista nas expressões “alguma tranquilidade” e “alguma solidez”: a primeira para a SCML; a segunda para o banco. Mas conclua-se pela hipocrisia. Se o banco está sólido, para que precisa dum parceiro estratégico? E como é que pode investir-se com tranquilidade um quinto do ativo duma instituição destinada a pobres para adquirir 10% do capital duma empresa sem a garantia de ter uma palavra ativa na gestão corrente e, sobretudo, sem a garantia de vir a ser uma voz de peso na direção estratégica do banco?
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Porém, ainda que a SCML estivesse a investir apenas um euro no banco ou viesse a ter as garantias de decisão ou de posição dominante, estaria na mesma a falhar no campo dos seus princípios, objetivos e meios.
Os dinheiros destinados aos carecidos não podem servir para o investimento especulativo e de risco. Pô-lo a render nas condições oferecidas aos outros não pode significar deitá-lo fora pela janela ou aproveitar para dominar instituições. É para aplicar na saúde, na educação, na ação social, na segurança, no acolhimento, no apoio, na integração e na inclusão…
Por outro lado, os dinheiros que a SCML angaria provêm-lhe de donativos de abastados e de pobres, de legados e de jogos, ou seja, de beneméritos, contribuintes, apostadores e anónimos que se supõe saberem quais os fins, objetivos e meios da SCML. Tudo isto é verdade, embora seja de criticar como é que foi concessionado o monopólio dos jogos cuja receita provém de todo o país a uma instituição que não cobre apenas um concelho, mesmo que se trate do concelho onde está sediada a capital.
Também é verdade que a SCML pode ter muito de social, mas de santa tem muito pouco; e o que ainda lhe resta perdê-lo-á se se assumir como banqueira. Servir a Deus na pessoa dos pobres e ao dinheiro na figura de banco é o absurdo denunciado pelo Evangelho (cf Lc 16,13).
Porém, o colunista do El País vê nisto uma jogada imaginativa do Governo para salvar o último banco português com problemas, na esteira do modo como este elenco governativo tem encarado a crise bancária “aplicando receitas cada vez mais rebuscadas:
Terá começado em 2015 com a venda o Banif ao Santander (por 150 milhões e as dívidas para o Estado); depois, injetou milhares de milhões na Caixa Geral de Depósitos (sem que tal contasse para o défice); depois, vendeu por 0 euros o Novo Banco a um fundo norte-americano (que deverá injetar 1000 milhões em três anos). A última ovelha negra é o Montepio, mas o Governo já não pode recorrer a mais ajudas públicas, pelo que a solução encontrada é que uma entidade supostamente independente e privada, como a Santa Casa invista num banco.”.
Não se trata apenas de constituir, por força do risco, uma operação potencialmente ruinosa, mas contrária aos fins da Santa Casa, que nasceu para ajudar os mais necessitados. E sarcasticamente o opinador conclui que “agora o mais necessitado é um banco” e pergunta: “Será que todos os pobres portugueses já têm o rim coberto?”. Ou seja, a questão é se já não há pobres em Portugal ou se eles podem esperar, contrariando, neste caso, a declaração reiterada do falecido Bispo do Porto, Dom António Francisco dos Santos, que bradava que “os pobres não podem esperar”.
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Foi a 30 de junho de 2017 que ambas as entidades interessadas assinaram o protocolo para o desenvolvimento dum banco social (Que é isso?). Lia-se no comunicado divulgado nesse dia que “o memorando agora assinado contempla a possibilidade de uma participação da SCML na CEMG”.
Porém, a decisão a tomar ainda no início do ano não é pacífica. No passado dia 5, a edição do ECO avançou que o administrador financeiro da Associação Mutualista Montepio, Miguel Coelho, votou contra a decisão de aumentar o capital da Caixa Económica em 250 milhões de euros, contrariando as recomendações do Banco de Portugal. Com efeito, foi este aumento de capital que possibilitou o embuste de o Montepio ser avaliado em mais de 2000 milhões para a SCML poder investir 200 milhões em 10% do Banco.
Depois de José Miguel Júdice e Bagão Félix terem assestado as canetas e as vozes contra a operação, PSD e CDS vieram a reboque na contestação à entrada da SCML no Montepio.
Porém, as questões colocadas versam sobretudo o processo. Quem teve a ideia: o Governo ou o Provedor da Santa Casa ou o Banco de Portugal? Que papel teve o Ministro da tutela? Que precauções tomou o Provedor? Qual a diferença de posições entre o atual Provedor e o anterior? Está ou não concluída a auditoria?

Por seu turno, os deputados da Comissão de Trabalho e Segurança Social aprovaram audição com urgência do Governo e do Provedor da Santa Casa sobre Montepio. Assim, o Ministro Vieira da Silva e o Provedor da Santa Casa, Edmundo Martinho, vão ser ouvidos no Parlamento na predita comissão.

O pedido de audição foi feito pelo CDS-PP para que prestem “todos os esclarecimentos sobre os contornos que envolvem a hipótese de a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa entrar no capital do Montepio Geral”.
À Lusa, o deputado democrata-cristão António Carlos Monteiro disse que as audições foram aprovadas “por unanimidade” entre todos os grupos parlamentares e que o presidente da comissão irá contactar os visados para que sejam agendadas as respetivas audições.
Os deputados querem saber, especificamente, se a Santa Casa vai ou não entrar no capital do Montepio, a que valor e adquirindo que participação e onde está o estudo de avaliação da operação. O CDS-PP quer ainda saber quem teve a ideia original do negócio, depois de dúvidas suscitadas pelo ex-provedor da SCML e candidato à liderança do PSD, Pedro Santana Lopes.
A imprensa tem adiantado que a SCML poderá entrar com 200 milhões de euros em troca da participação de 10% na CEMG, o que valoriza o banco em cerca de 2.000 milhões de euros.
A CEMG está num período de mudança dos estatutos (já estão aprovados) e mesmo da sua equipa de gestão, tendo a Associação Mutualista Montepio Geral (até agora o seu único acionista) anunciado a entrada de Nuno Mota Pinto para presidente do banco, lugar ocupado por Félix Morgado.
Marques Mendes, comentador da SIC e ex-presidente do PSD, declarou-se absolutamente contra qualquer tipo de negócio que envolva a Santa Casa da Misericórdia com a banca, afirmando que “meter dinheiro que é dos pobres nos bancos é uma verdadeira aventura”. Segundo Mendes, trata-se de uma aventura “própria de um investidor privado e não de uma organização social”. Marques Mendes não tem dúvidas de que, a concretizar-se, a situação “vai acabar num inquérito parlamentar e numa investigação judicial”.
No seu comentário habitual na SIC, no dia 7, o antigo líder do PSD criticou a ideia de a Santa Casa entrar no capital de um banco, mesmo um como o Montepio, que é uma associação mutualista, lembrando que “o negócio da banca é um negócio arriscado” e sublinhando que, como provaram os escândalos do BPN e do BES, nos últimos anos revelou ser “quase um suicídio”. Para Luís Marques Mendes, a situação é incompreensível. E questionou, de forma retórica e irónica: “Um Governo de esquerda autoriza isto?”.
Quanto ao valor do negócio, o comentador teve palavras ainda mais duras para se referir aos valores do negócio que têm sido mencionados na imprensa – 200 milhões de euros por 10% do capital do banco, como noticiou o Jornal Económico em dezembro.
A razão por que Marques Mendes não tem dúvidas de que a situação, a concretizar-se, “vai acabar num inquérito parlamentar e numa investigação judicial”, tem a ver com a consideração que faz sobre o valor do Montepio, que não é um valor de mercado de 2 mil milhões de euros – valor que a compra de 10% do capital por 200 milhões de euros pressupõe. E admite:
É legítimo que o dono peça, mas não é legítimo que o comprador dê 200 milhões por 10%”.
E acrescentou, de forma perentória: “Se isso acontecer, os responsáveis da Santa Casa podem ser suspeitos de gestão danosa”.
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É na gestão danosa, por um lado, e na fuga aos fins da SCML e meios para os atingir, por outro, que se deve colocar questão. Ou será que, se o Ministro e o Provedor esclarecerem tudo o que os deputados querem saber e se o CDS/PP conseguir um grupo de trabalho que acompanhe a operação e o funcionamento do Montepio acolitado pela SCML, a solução já será eticamente correta e socialmente aceitável?
Porque é que Banco de Portugal, Governo e Provedor não incomodaram, por exemplo, o Opus Dei e a Fundação da Casa de Bragança ou a SONAE, a Jerónimo Martins ou o LIDL? É que sobre a SCML, entidade privada (privada, forçosamente pública), põem os Governos a patinha, não será?!


2018.01.09 – Louro de Carvalho  

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