sábado, 20 de janeiro de 2018

Francisco no Chile ou a mensagem papal em contexto de protesto

O Papa esteve no Chile numa visita oficial de três dias antes de visitar o Peru. O evento ficou marcado por protestos devido a abusos sexuais na igreja (são indiciados de abuso sexual infantil cerca de 80 membros do clero chileno) e aos direitos dos indígenas.
Segundo um estudo, os chilenos atribuíram a Francisco a pontuação de 5,3, numa escala de 0 a 10, enquanto a confiança na Igreja ficou apenas nos 36%, a mais baixa da América Latina. E, dias antes da chegada papal, vários templos tinham sido atacados e vandalizados. 
Porém, à chegada, o Pontífice quebrou o protocolo e dirigiu-se aos fiéis que o esperavam nas ruas. E manifestou o seu pesar afirmando sentir vergonha pelo dano irreparável causado a crianças por parte de ministros da igreja.
No dia 17, reuniu-se na cidade de Temuco com representantes da etnia Mapuche, que estão em pé de guerra contra o Chile e a Argentina para reivindicar a soberania de terras que lhes foram retiradas no século XIX.
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No encontro com as Autoridades, com a Sociedade Civil e com o Corpo Diplomático, frisou o desenvolvimento da democracia, nos últimos decénios, que potenciou “um notável progresso”, a marcar o destino do Chile “como povo, baseado na liberdade e no direito”, que soube enfrentar e superar “vários períodos turbulentos”. A este respeito retomou as palavras do Cardeal Silva Henríquez, num Te Deum:

Nós – todos – somos construtores da obra mais bela: a pátria. A pátria terrena que prefigura e prepara a pátria sem fronteiras. Esta pátria não começa hoje, connosco; mas não pode crescer nem frutificar sem nós. Por isso, a recebemos com respeito, com gratidão, como uma tarefa iniciada há muitos anos, como uma herança que nos orgulha e simultaneamente nos compromete.”.

Depois, sustentou que “cada geração deve fazer suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas”, não se podendo contentar com o que se obteve no passado como se “esta situação nos levasse a ignorar que muitos dos nossos irmãos ainda sofrem situações de injustiça que nos interpelam a todos”. Com efeito, este povo tem pela frente o desafio grande e apaixonante de “continuar a trabalhar para que a democracia” não se limite aos aspetos formais, mas seja “verdadeiramente um lugar de encontro para todos”, sem exceção, construírem casa, família e nação.

Para tanto, segundo Francisco, é preciso apurar o sentido da escuta: povo e autoridades – capacidade que “adquire um grande valor nesta nação, onde a pluralidade étnica, cultural e histórica exige ser protegida de qualquer tentativa feita de parcialidade ou supremacia e que coloca em jogo a capacidade de deixar cair dogmatismos exclusivistas numa sã abertura ao bem comum”. Assim, sustenta o Papa:

É indispensável escutar: ouvir os desempregados, que não podem sustentar o presente e menos ainda o futuro das suas famílias; ouvir os povos nativos, muitas vezes esquecidos e cujos direitos necessitam de ser atendidos e a sua cultura protegida, para que não se perca uma parte da identidade e riqueza desta nação. Ouvir os migrantes, que batem às portas deste país à procura duma vida melhor e, por sua vez, com a força e a esperança de querer construir um futuro melhor para todos. Ouvir os jovens, na sua ânsia de ter maiores oportunidades, especialmente no plano educativo, e assim sentir-se protagonistas do Chile que sonham, protegendo-os ativamente do flagelo da droga que lhes rouba o melhor das suas vidas. Ouvir os idosos, com a sua sabedoria tão necessária e a carga da sua fragilidade. Não podemos abandoná-los. Ouvir as crianças, que assomam ao mundo com os seus olhos cheios de deslumbramento e inocência e esperam de nós respostas reais para um futuro de dignidade.”.

E não deixou de sublinhar como resultado desta escuta a atenção preferencial à nossa Casa Comum, promovendo uma cultura que saiba cuidar da terra, não nos contentando com oferecer respostas pontuais aos graves problemas ecológicos e ambientais que se apresentem”. Pretende o Papa “a ousadia de oferecer ‘um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático’, que privilegia a irrupção do poder económico em prejuízo dos ecossistemas naturais e, consequentemente, do bem comum dos nossos povos”. E porfia que “o Chile possui, nas suas raízes, uma sabedoria capaz de ajudar a transcender a conceção meramente consumista da existência para adquirir uma atitude sapiencial em relação ao futuro”.

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Na celebração da Eucaristia “Pela Paz e Justiça”, em Santiago, no Parque O’Higgins, comentou o Evangelho das Bem-aventuranças, nomeadamente as que se referem à Paz e à Justiça, pondo o acento na necessidade de olhar para as pessoas como fez Jesus e referindo que a bem-aventurança da paz nos faz entrar na condição de filhos de Deus e a da justiça nos faz arrebatar o Reino dos Céus. E o Pontífice ensina:
As Bem-aventuranças são aquele novo dia para quantos continuam a apostar no futuro, continuam a sonhar, continuam a deixar-se tocar e impelir pelo Espírito de Deus”.
Interpreta o discurso da Montanha como a pedra de toque para o compromisso em prol da reconciliação:
Felizes aqueles que são capazes de sujar as mãos e trabalhar para que outros vivam em paz. Felizes aqueles que se esforçam por não semear divisão. […] Queres felicidade? Felizes aqueles que trabalham para que outros possam ter uma vida ditosa. Queres paz? Trabalha pela paz.”.
Recordando palavras do já mencionado Cardeal Henriquez – “se alguém nos perguntar: ‘Que é a justiça?’ ou se porventura consiste apenas em ‘não roubar’, dir-lhe-emos que existe outra justiça: a que exige que todo o homem seja tratado como homem” – Francisco sustenta:
Semear a paz à força de proximidade, de vizinhança; à força de sair de casa e observar os rostos, de ir ao encontro de quem se encontra em dificuldade, de quem não foi tratado como pessoa, como um digno filho desta terra. Esta é a única maneira que temos para tecer um futuro de paz, para tecer de novo uma realidade sempre passível de se desfiar.”.

Na celebração da Eucaristia “Pelo Progresso dos Povos”, em Temuco, no Aeródromo de Maquehue, Francisco partiu da hipótese da aproximação do solo a quem ouviremos cantar a pena que não pode calar, a das “injustiças de séculos que todos veem aplicar”, sendo “neste contexto de ação de graças por esta terra e pelo seu povo, mas também de tristeza e dor, que celebramos a Eucaristia”. Neste aeródromo, verificaram-se “graves violações de direitos humanos”, pelo que esta celebração é oferecida pelas “pessoas que sofreram e foram mortas e pelas que diariamente carregam aos ombros o peso de tantas injustiças”, recordando o sacrifício de Jesus na cruz repleto do pecado e do sofrimento dos nossos povos, “um sofrimento a ser resgatado”.
Depois, dissertou em torno do versículo evangélico “que todos sejam um só” (Jo 17,21), como Jesus pediu ao Pai numa hora crucial da sua vida, sabendo que “uma das piores ameaças que atinge, e atingirá, o seu povo e toda a humanidade será a divisão e o conflito, a subjugação de uns pelos outros”. E esta unidade “é um dom que devemos pedir insistentemente pelo bem da nossa terra e seus filhos”, estando com atenção a tentações que possam aparecer e contaminar pela raiz este dom com que Deus nos quer presentear. Entre tais tentações, contam-se os falsos sinónimos e as equivocas armas da unidade.
Assim, unidade não é sinónima de uniformidade, que silencia as diferenças. Ao invés, “a riqueza duma terra nasce precisamente do facto de cada parte saber partilhar a sua sabedoria com as outras”. Nestes termos, segundo o Pontífice, “a unidade é uma diversidade reconciliada, porque não tolera que, em seu nome, se legitimem as injustiças pessoais ou comunitárias”.
Quanto às armas da unidade, construída no reconhecimento e na solidariedade, não se pode aceitar qualquer meio. Por exemplo, os acordos “lindos” que não se concretizam frustram a esperança. Depois, a violência e a destruição que podem ceifar vidas humanas nunca produzem unidade, mas acabam por tornar falsa a causa mais justa. São “como lava de vulcão que tudo destrói, tudo queima, deixando atrás de si apenas esterilidade e desolação”.
Em vez disso, exorta o Papa: “procuremos e não nos cansemos de procurar o diálogo para a unidade”, rezando: “Senhor, fazei-nos artesãos de unidade”.
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Na missa da “Virgem do Carmo e de Oração pelo Chile, em Iquique – Campus Lobito, o Papa desenvolveu a pregação em torno do versículo joânico “Em Caná da Galileia, Jesus realizou o primeiro dos seus sinais miraculosos” (Jo 2,11), numa festa, a instâncias de sua Mãe. E sublinhou o ambiente de festa como ambiente do Evangelho, boa nova da alegria, “uma alegria que se propaga de geração em geração e da qual somos herdeiros”, porque “somos cristãos”.
Assumindo-se como peregrino a celebrar com o Chile a maneira linda de viver a fé, frisou:
As vossas festas patronais, as vossas danças religiosas (que chegam a durar uma semana), a vossa música, os vossos vestidos fazem desta região um santuário de piedade e de espiritualidade popular. De facto, não é uma festa que fica fechada dentro do templo, mas conseguis vestir de festa toda a aldeia. Sabeis celebrar cantando e dançando ‘a paternidade, a providência, a presença amorosa e constante de Deus’; e, deste modo, gerais atitudes interiores que raramente se observam no mesmo grau em quem não possui esta religiosidade: paciência, sentido da cruz na vida quotidiana, desapego, aceitação dos outros, dedicação, devoção.”.
A seguir, apresentou a ação de Maria, para que, no ambiente de festa, a alegria prevaleça. Atenta a tudo o que sucede ao seu redor e, como boa mãe, consegue dar-se conta de que, na festa, na alegria geral, algo estava para arruinar a festa. E, aproximando-Se do Filho, diz: “Não têm vinho” (Jo 2,3).
Também agora Maria vai pelas nossas aldeias, ruas, praças, casas, hospitais. É “a Virgem da Tirana, a Virgem Ayquina em Calama, a Virgem das Penhas em Arica, que passa por todos os nossos problemas familiares, aqueles que parecem sufocar-nos o coração, para Se aproximar de Jesus e dizer-Lhe ao ouvido: Olha! Não têm vinho”. E, como então se aproximou dos que serviam na festa a dizer-lhes “Fazei o que Ele vos disser” (Jo 2,5), também agora esta mulher de poucas palavras, mas muito concreta, se aproxima de cada um de nós para nos dizer: “Fazei o que Ele vos disser”. E é por esta via que vira o milagre.
Disse o Papa argentino que “o milagre começa quando os serventes aproximam as vasilhas de pedra com água que se destinavam à purificação”, pelo que “também cada um de nós pode começar o milagre” e “cada um de nós é convidado a participar do milagre para os outros”.
E Francisco passou a apontar Iquique, “terra de sonhos”, como palco do milagre para os outros:
Uma terra que soube albergar pessoas de diferentes povos e culturas, pessoas que tiveram de deixar os seus queridos e partir. Uma marcha sempre baseada na esperança de obter uma vida melhor, mas sabemos que sempre se faz acompanhar por bagagens carregadas de medo e incerteza pelo que virá.”.
Esta região de imigrantes mostra “a grandeza de homens e mulheres, de famílias inteiras que, perante a adversidade, não se dão por vencidas, mas se mexem à procura de vida”, quais “ícones da Sagrada Família, que teve de atravessar desertos para poder continuar a viver”.
Assim, o Pontífice quer que esta é terra de sonhos “continue a ser também terra de hospitalidade” e de hospitalidade festiva, pois “não há alegria cristã, quando se fecham as portas; não há alegria cristã, quando se faz sentir aos outros que estão a mais ou que não têm lugar no nosso meio” (cf Lc 16,19-31).
Pretende que, tal como Maria em Caná, estejamos atentos nas praças e aldeias e reconhecer os “que têm a vida ‘arruinada’, que perderam – ou lhes roubaram – as razões para fazer festa”. E as nossas vozes a dizer ‘Não têm vinho’ serão “o grito do povo de Deus, o grito do pobre, que tem forma de oração e alarga o coração, e nos ensina a estar atentos”. Por isso, apela:
Estejamos atentos a todas as situações de injustiça e às novas formas de exploração que fazem tantos irmãos perder a alegria da festa. Estejamos atentos à situação de precariedade do trabalho que destrói vidas e famílias. Estejamos atentos a quem se aproveita da irregularidade de muitos migrantes porque não conhecem a língua ou não têm os documentos em ‘regra’.”.
Mas também – ensina – como os serventes da festa, traremos o que temos, por pouco que pareça, de modo que “a nossa solidariedade e o nosso compromisso em prol da justiça sejam parte da dança ou do cântico que hoje podemos entoar a Nosso Senhor”, deixando-nos “impregnar pelos valores, a sabedoria e a fé que os migrantes trazem consigo, sem nos fecharmos a essas ‘vasilhas’ cheias de sabedoria e história que trazem quantos continuam a chegar a estas terras”, e não nos privando “de todo o bem que eles têm para oferecer”.
Depois, exorta o Santo Padre:
Deixemos que Jesus possa completar o milagre, transformando as nossas comunidades e os nossos corações em sinal vivo da sua presença, que é jubilosa e festiva porque experimentamos que Deus está connosco, porque aprendemos a hospedá-Lo no meio de nós, no nosso coração”.
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O Papa teve ainda, no Chile, encontros com o Centro Penitenciário Feminino de Santiago, com os Sacerdotes, Consagrados e Seminaristas, com os Bispos, com os jovens; e almoçou com alguns habitantes de Araucanía.
A caminho para a missa em Iquique, desfilou no Papamóvel pelas ruas saudando fiéis. No trajeto, desceu do Papamóvel para ajudar uma policial que caiu do cavalo em que estava quando passou ao lado do Pontífice.
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Mais de meio milhão de estrangeiros vive, atualmente, no Chile em situação legal, segundo dados oficiais, ou seja, 3% da população de 17,5 milhões. De acordo com números divulgados pela imprensa local, apenas no ano passado cerca de 105 mil haitianos e mais de 100 mil venezuelanos chegaram ao território.

O Papa, apesar de alguma densidade de contexto, fez passar a mensagem essencial da reconciliação, do sonho, da unidade nas diferenças, da hospitalidade, do acolhimento, da denúncia das injustiças e da alegria evangélica, mobilizando para a oração/reflexão e para ação solidária – sempre numa linha de aprendizagem e de busca de vida – implicando neste dinamismo todos: autoridades, forças vivas do povo e agentes da pastoral.

2018.01.20 – Louro de Carvalho

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