O Papa
esteve no Chile numa visita oficial de três dias antes de visitar o Peru. O
evento ficou marcado por protestos devido a abusos sexuais na igreja (são
indiciados de abuso sexual infantil cerca de 80 membros do clero chileno) e aos direitos dos indígenas.
Segundo um
estudo, os chilenos atribuíram a Francisco a pontuação de 5,3, numa escala de 0
a 10, enquanto a confiança na Igreja ficou apenas nos 36%, a mais baixa da
América Latina. E, dias antes da chegada papal, vários templos tinham sido
atacados e vandalizados.
Porém, à
chegada, o Pontífice quebrou o protocolo e dirigiu-se aos fiéis que o esperavam
nas ruas. E manifestou o seu pesar afirmando sentir vergonha pelo dano
irreparável causado a crianças por parte de ministros da igreja.
No dia 17,
reuniu-se na cidade de Temuco com representantes da etnia Mapuche, que estão em
pé de guerra contra o Chile e a Argentina para reivindicar a soberania de
terras que lhes foram retiradas no século XIX.
***
No
encontro
com as Autoridades, com a Sociedade Civil e com o Corpo Diplomático,
frisou o desenvolvimento da democracia, nos últimos decénios, que potenciou “um
notável progresso”, a marcar o destino do Chile “como povo, baseado na
liberdade e no direito”, que soube enfrentar e superar “vários períodos
turbulentos”. A este respeito retomou as palavras do Cardeal Silva Henríquez,
num Te Deum:
“Nós – todos – somos construtores da
obra mais bela: a pátria. A pátria terrena que prefigura e prepara a pátria sem
fronteiras. Esta pátria não começa hoje, connosco; mas não pode crescer nem frutificar
sem nós. Por isso, a recebemos com respeito, com gratidão, como uma tarefa
iniciada há muitos anos, como uma herança que nos orgulha e simultaneamente nos
compromete.”.
Depois,
sustentou que “cada geração deve fazer suas as lutas e as conquistas das
gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas”, não se podendo
contentar com o que se obteve no passado como se “esta situação nos levasse a
ignorar que muitos dos nossos irmãos ainda sofrem situações de injustiça que
nos interpelam a todos”. Com efeito, este povo tem pela frente o desafio grande
e apaixonante de “continuar a trabalhar para que a democracia” não se limite
aos aspetos formais, mas seja “verdadeiramente um lugar de encontro para
todos”, sem exceção, construírem casa, família e nação.
Para tanto,
segundo Francisco, é preciso apurar o sentido da escuta: povo e autoridades –
capacidade que “adquire um grande valor nesta nação, onde a pluralidade étnica,
cultural e histórica exige ser protegida de qualquer tentativa feita de
parcialidade ou supremacia e que coloca em jogo a capacidade de deixar cair
dogmatismos exclusivistas numa sã abertura ao bem comum”. Assim, sustenta o
Papa:
“É indispensável escutar: ouvir os
desempregados, que não podem sustentar o presente e menos ainda o futuro das
suas famílias; ouvir os povos nativos, muitas vezes esquecidos e cujos direitos
necessitam de ser atendidos e a sua cultura protegida, para que não se perca
uma parte da identidade e riqueza desta nação. Ouvir os migrantes, que batem às
portas deste país à procura duma vida melhor e, por sua vez, com a força e a
esperança de querer construir um futuro melhor para todos. Ouvir os jovens, na
sua ânsia de ter maiores oportunidades, especialmente no plano educativo, e
assim sentir-se protagonistas do Chile que sonham, protegendo-os ativamente do
flagelo da droga que lhes rouba o melhor das suas vidas. Ouvir os idosos, com a
sua sabedoria tão necessária e a carga da sua fragilidade. Não podemos
abandoná-los. Ouvir as crianças, que assomam ao mundo com os seus olhos cheios
de deslumbramento e inocência e esperam de nós respostas reais para um futuro
de dignidade.”.
E não deixou de
sublinhar como resultado desta escuta a atenção preferencial à nossa Casa Comum, promovendo uma cultura que
saiba cuidar da terra, não nos contentando com oferecer respostas pontuais aos
graves problemas ecológicos e ambientais que se apresentem”. Pretende o Papa “a
ousadia de oferecer ‘um olhar diferente, um pensamento, uma política, um
programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham
resistência ao avanço do paradigma tecnocrático’, que privilegia a
irrupção do poder económico em prejuízo dos ecossistemas naturais e,
consequentemente, do bem comum dos nossos povos”. E porfia que “o Chile possui,
nas suas raízes, uma sabedoria capaz de ajudar a transcender a conceção
meramente consumista da existência para adquirir uma atitude sapiencial em
relação ao futuro”.
***
Na celebração da Eucaristia “Pela
Paz e Justiça”, em Santiago, no Parque
O’Higgins,
comentou o Evangelho das Bem-aventuranças, nomeadamente as que se referem à Paz
e à Justiça, pondo o acento na necessidade de olhar para as pessoas como fez
Jesus e referindo que a bem-aventurança da paz nos faz entrar na condição de
filhos de Deus e a da justiça nos faz arrebatar o Reino dos Céus. E o Pontífice
ensina:
“As
Bem-aventuranças são aquele novo dia para quantos continuam a
apostar no futuro, continuam a sonhar, continuam a deixar-se tocar e impelir
pelo Espírito de Deus”.
Interpreta o discurso da Montanha
como a pedra de toque para o compromisso em prol da reconciliação:
“Felizes
aqueles que são capazes de sujar as mãos e trabalhar para que outros vivam em
paz. Felizes aqueles que se esforçam por não semear divisão. […] Queres
felicidade? Felizes aqueles que trabalham para que outros possam ter uma vida
ditosa. Queres paz? Trabalha pela paz.”.
Recordando palavras do já mencionado
Cardeal Henriquez – “se alguém nos perguntar: ‘Que é a justiça?’ ou se
porventura consiste apenas em ‘não roubar’, dir-lhe-emos que existe outra
justiça: a que exige que todo o homem seja tratado como homem” – Francisco
sustenta:
“Semear
a paz à força de proximidade, de vizinhança; à força de sair de casa e observar
os rostos, de ir ao encontro de quem se encontra em dificuldade, de quem não
foi tratado como pessoa, como um digno filho desta terra. Esta é a única
maneira que temos para tecer um futuro de paz, para tecer de novo uma realidade
sempre passível de se desfiar.”.
Na celebração
da Eucaristia “Pelo Progresso dos Povos”, em Temuco, no Aeródromo de Maquehue, Francisco
partiu da hipótese da aproximação do solo a quem ouviremos cantar a pena que
não pode calar, a das “injustiças de séculos que todos veem aplicar”,
sendo “neste contexto de ação de graças por esta terra e pelo seu povo, mas
também de tristeza e dor, que celebramos a Eucaristia”. Neste aeródromo,
verificaram-se “graves violações de direitos humanos”, pelo que esta celebração
é oferecida pelas “pessoas que sofreram e foram mortas e pelas que diariamente
carregam aos ombros o peso de tantas injustiças”, recordando o sacrifício de
Jesus na cruz repleto do pecado e do sofrimento dos nossos povos, “um
sofrimento a ser resgatado”.
Depois,
dissertou em torno do versículo evangélico “que
todos sejam um só” (Jo 17,21), como
Jesus pediu ao Pai numa hora crucial da sua vida, sabendo que “uma das piores
ameaças que atinge, e atingirá, o seu povo e toda a humanidade será a divisão e
o conflito, a subjugação de uns pelos outros”. E esta unidade “é um dom que
devemos pedir insistentemente pelo bem da nossa terra e seus filhos”, estando
com atenção a tentações que possam aparecer e contaminar pela raiz este dom com
que Deus nos quer presentear. Entre tais tentações, contam-se os falsos
sinónimos e as equivocas armas da unidade.
Assim, unidade
não é sinónima de uniformidade, que silencia as diferenças. Ao invés, “a riqueza
duma terra nasce precisamente do facto de cada parte saber partilhar a sua
sabedoria com as outras”. Nestes termos, segundo o Pontífice, “a unidade é uma
diversidade reconciliada, porque não tolera que, em seu nome, se legitimem as
injustiças pessoais ou comunitárias”.
Quanto às armas da unidade, construída no reconhecimento e na
solidariedade, não se pode aceitar qualquer meio. Por exemplo, os acordos
“lindos” que não se concretizam frustram a esperança. Depois, a violência e a
destruição que podem ceifar vidas humanas nunca produzem unidade, mas acabam por tornar falsa a causa mais
justa. São “como lava de vulcão que tudo destrói, tudo queima, deixando atrás
de si apenas esterilidade e desolação”.
Em vez disso,
exorta o Papa: “procuremos e não nos cansemos de procurar o diálogo para a
unidade”, rezando: “Senhor, fazei-nos
artesãos de unidade”.
***
Na missa da “Virgem
do Carmo e de Oração pelo Chile”, em Iquique – Campus Lobito, o Papa desenvolveu a pregação em torno do
versículo joânico “Em Caná da
Galileia, Jesus realizou o primeiro dos seus sinais miraculosos” (Jo 2,11), numa festa, a instâncias de sua
Mãe. E sublinhou o ambiente de festa como ambiente do Evangelho, boa nova da
alegria, “uma alegria que se propaga de geração em geração e da qual somos
herdeiros”, porque “somos cristãos”.
Assumindo-se
como peregrino a celebrar com o Chile a maneira linda de viver a fé, frisou:
“As
vossas festas patronais, as vossas danças religiosas (que chegam a durar uma
semana), a vossa música, os vossos vestidos fazem desta região um santuário de
piedade e de espiritualidade popular. De facto, não é uma festa que fica
fechada dentro do templo, mas conseguis vestir de festa toda a aldeia. Sabeis
celebrar cantando e dançando ‘a paternidade, a providência, a presença amorosa
e constante de Deus’; e, deste modo, gerais atitudes interiores que raramente
se observam no mesmo grau em quem não possui esta religiosidade: paciência,
sentido da cruz na vida quotidiana, desapego, aceitação dos outros, dedicação,
devoção.”.
A seguir,
apresentou a ação de Maria, para que, no ambiente de festa, a alegria prevaleça.
Atenta a tudo o que sucede ao seu redor e, como boa mãe, consegue dar-se conta
de que, na festa, na alegria geral, algo estava para arruinar a festa. E,
aproximando-Se do Filho, diz: “Não têm
vinho” (Jo 2,3).
Também agora Maria
vai pelas nossas aldeias, ruas, praças, casas, hospitais. É “a Virgem da
Tirana, a Virgem Ayquina em Calama, a Virgem das Penhas em Arica, que passa por
todos os nossos problemas familiares, aqueles que parecem sufocar-nos o
coração, para Se aproximar de Jesus e dizer-Lhe ao ouvido: Olha! Não têm vinho”. E, como então se aproximou dos que serviam na
festa a dizer-lhes “Fazei o que Ele vos
disser” (Jo 2,5), também agora esta mulher de poucas
palavras, mas muito concreta, se aproxima de cada um de nós para nos dizer: “Fazei o que Ele vos disser”. E é por
esta via que vira o milagre.
Disse o Papa
argentino que “o milagre começa quando os serventes aproximam as vasilhas de
pedra com água que se destinavam à purificação”, pelo que “também cada um de
nós pode começar o milagre” e “cada um de nós é convidado a participar do milagre
para os outros”.
E Francisco
passou a apontar Iquique, “terra de sonhos”, como palco do milagre para os
outros:
“Uma
terra que soube albergar pessoas de diferentes povos e culturas, pessoas que
tiveram de deixar os seus queridos e partir. Uma marcha sempre baseada na
esperança de obter uma vida melhor, mas sabemos que sempre se faz acompanhar
por bagagens carregadas de medo e incerteza pelo que virá.”.
Esta região
de imigrantes mostra “a grandeza de homens e mulheres, de famílias inteiras
que, perante a adversidade, não se dão por vencidas, mas se mexem à procura de
vida”, quais “ícones da Sagrada Família, que teve de atravessar desertos para
poder continuar a viver”.
Assim, o
Pontífice quer que esta é terra de sonhos “continue a ser também terra de
hospitalidade” e de hospitalidade festiva, pois “não há alegria cristã, quando
se fecham as portas; não há alegria cristã, quando se faz sentir aos outros que
estão a mais ou que não têm lugar no nosso meio” (cf Lc 16,19-31).
Pretende que,
tal como Maria em Caná, estejamos atentos nas praças e aldeias e reconhecer os
“que têm a vida ‘arruinada’, que perderam – ou lhes roubaram – as razões para
fazer festa”. E as nossas vozes a dizer ‘Não
têm vinho’ serão “o grito do povo de Deus, o grito do pobre, que tem forma
de oração e alarga o coração, e nos ensina a estar atentos”. Por isso, apela:
“Estejamos
atentos a todas as situações de injustiça e às novas formas de exploração que
fazem tantos irmãos perder a alegria da festa. Estejamos atentos à situação de
precariedade do trabalho que destrói vidas e famílias. Estejamos atentos a quem
se aproveita da irregularidade de muitos migrantes porque não conhecem a língua
ou não têm os documentos em ‘regra’.”.
Mas também –
ensina – como os serventes da festa, traremos o que temos, por pouco que
pareça, de modo que “a nossa solidariedade e o nosso compromisso em prol da
justiça sejam parte da dança ou do cântico que hoje podemos entoar a Nosso
Senhor”, deixando-nos “impregnar pelos valores, a sabedoria e a fé que os
migrantes trazem consigo, sem nos fecharmos a essas ‘vasilhas’ cheias de
sabedoria e história que trazem quantos continuam a chegar a estas terras”, e
não nos privando “de todo o bem que eles têm para oferecer”.
Depois, exorta
o Santo Padre:
“Deixemos
que Jesus possa completar o milagre, transformando as nossas comunidades e os
nossos corações em sinal vivo da sua presença, que é jubilosa e festiva porque
experimentamos que Deus está connosco, porque aprendemos a hospedá-Lo no meio
de nós, no nosso coração”.
***
O Papa teve ainda, no Chile,
encontros com o Centro Penitenciário Feminino de Santiago, com os Sacerdotes,
Consagrados e Seminaristas, com os Bispos, com os jovens; e almoçou com alguns habitantes de Araucanía.
A caminho para a missa em Iquique,
desfilou no Papamóvel pelas ruas saudando fiéis. No trajeto, desceu do
Papamóvel para ajudar uma policial que caiu do cavalo em que estava quando
passou ao lado do Pontífice.
***
Mais de meio milhão de estrangeiros
vive, atualmente, no Chile em situação legal, segundo dados oficiais, ou seja,
3% da população de 17,5 milhões. De acordo com números divulgados pela imprensa
local, apenas no ano passado cerca de 105 mil haitianos e mais de 100 mil
venezuelanos chegaram ao território.
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