Dos inúmeros temas tratados ao longo da Crónica de el-rei Dom Pedro I ou Crónica de Dom Pedro, destaca-se
a Justiça a que dedicou o Prólogo,
para a explicitação do conceito e, pelo menos, mais 5 dos 44 capítulos, para a descrição
de casos específicos
da aplicação da Justiça.
Na verdade, Fernão
Lopes quis dar de Dom Pedro a imagem do rei preocupado com a Justiça, a
justificar a razão por que recebeu o cognome de Justiceiro ou Justiçoso, ou de Cruel,
neste caso pelo tipo de castigos sentenciados e que executou ou mandou executar
mesmo na sua presença.
Acerca da
importância da Justiça no governo do reino, escreve Fernão Lopes no Prólogo:
“Justiça
é uma virtude que é chamada toda virtude, assim que qualquer que é justo, este
cumpre toda a virtude, porque a justiça, assim como a lei de Deus, defende que
não forniques nem sejas gargantão e, isto guardando, se cumpre a virtude da
castidade e da temperança. E assim podeis entender dos outros vícios e
virtudes.”.
É de registar
o conceito globalizante que a Justiça assume compendiando todas as virtudes (de que é a rainha), à semelhança do que a Bíblia
perfila para o homem justo. Por outro lado, este conceito fernandino de justiça
privilegia algumas virtudes: a castidade, contra a luxúria (fornicação); a temperança, contra a gula; e a
humildade/discrição, contra a soberba. Tal conceito, sem o negar, ultrapassa o
conceito simplista e redutor da justiça pela qual se castigam os maus e se
deixam os bons viver em paz.
Porém, o
rei-centro desta crónica não é lá muito exemplo naquelas matérias setoriais da
justiça. Lopes diz de Dom Pedro que era guloso (viandeiro), contrariando a moderação e temperança. Só não terá sido tão
gargantão por ser gago, mas não se livra da fama de rispidez e sobranceria para
com os prevaricadores, excedendo-se na ira e na determinação da crueldade, a
executar por si ou por outrem. E, quanto à castidade, soube bem, valendo-se da
condição de príncipe e de soberano “filhar” as damas por quem se deixava
seduzir. E mesmo a relação com outros homens não era tão sadia como seria de
esperar do rei. O cronista não se coíbe de afirmar que a um determinado pajem o
rei “amava-o mais do que devia”.
Relativamente
à noção da Justiça enquanto “virtude que
é toda a virtude”, provavelmente Lopes terá conhecido os textos de Aristóteles,
que, na Ética a Nicómaco, cita um
provérbio grego com uma ideia da qual muito se aproxima o cronista: “A justiça contém todas as outras virtudes”.
***
No âmbito
da incumbência de contar a vida ou, melhor, o reinado dos reis, Lopes, no Prólogo da Crónica de Dom Pedro, revela
uma outra finalidade da sua escrita. Munido de grande domínio retórico, reflete
sobre a justiça, as virtudes, os vícios, o papel do rei e o papel do povo.
“Esta
virtude é mui necessária ao rei e isso mesmo aos seus súbditos, porque havendo
no rei virtude de justiça fará leis por que todos vivam direitamente e em paz.
E os seus sujeitos, sendo justos, cumprirão as leis que ele puser e,
cumprindo-as, não farão cousa injusta contra ninguém, e tal virtude como esta
pode cada um ganhar por obra de bom entendimento.”.
Assim, na
conceção do cronista, a justiça entende-se em duas dimensões: no soberano e nos
súbditos. Se o soberano está imbuído do sentido da justiça, produzirá leis justas,
que darão paz à comunidade; e, se os súbditos forem justos, cumprirão as leis
que o soberano estabelecer e as relações entre os súbditos serão sadias e
exemplares. Sem a justiça, a aplicar aos súbditos e aos de fora, o Reino
desconjunta-se tal como acontece ao corpo quando a alma dele se aparta. É a
justiça que faz a coesão do povo e o mantém no rumo certo, promovendo assim o
bem comum.
Porém, a
questão da justiça não está só do lado da produção da lei e do espírito do
legislador. Está também e, sobretudo, na aplicação da lei quando as atitudes e
comportamentos dos súbditos indiciam a transgressão da lei. O juiz eivado do
sentido de justiça aprecia as condições da prática do crime e julga segundo a
lei e não segundo os estados de alma ou o acinte pessoal. Por outro lado, pune
de modo equitativo e respeitando o princípio da proporcionalidade e tendo em
vista o bem comum. O que Dom Pedro muitas vezes não fez.
É certo que o Justiceiro nunca julgou sem a lei do
seu lado, mas, sentindo-se acima da lei e não sujeito à lei (havia até o princípio de que o legislador
não estava sujeito à lei e é por isso que o legislador moderno é um coletivo,
sendo que, por não ser a lei emanada de um indivíduo, nenhum se pode considerar
fora da alçada porque nenhum é legislador). Aliás, o Prólogo afirma a proeminência do rei:
“Porque se a lei é regra do que se há de fazer, muito mais o deve de ser
o rei que a põe e o juiz que a há de encaminhar, porque a lei é príncipe sem
alma, como dissemos, e o príncipe é lei e regra da justiça com alma […] Quanto
a cousa com alma tem melhoria sobre outra sem alma, tanto o rei deve ter
excelência sobre as leis.”.
Nos cinco
capítulos da crónica que tratam de casos específicos de justiça, capítulos 6 a
10, um descreve o roubo e assassínio de um judeu (cap. 6), que Dom Pedro castiga porque os cristãos não têm o
direito de matar nem perseguir por motivos religiosos, sendo os restantes
quatro casos de adultério. Em dois dos cinco casos referidos, o caso dum bispo
(alto clero, cap. 7) e outro do almirante do reino (alta nobreza, cap. 10), os castigos decididos numa
primeira fase pelo rei acabaram por não ser aplicados face aos pedidos de
clemência por parte de pessoas influentes.
Por outro
lado, foi extremamente duro, cruel sanguinário no castigo que mandou infligir
aos carrascos que liquidaram Inês de Castro, não tendo em conta que obedeceram
a ordens régias ou que aconselharam o monarca reinante em função do que
entendiam como interesse do Reino. Contudo, apercebendo-se, no leito da morte
de que um dos algozes, que não fora morto por ter fugido, mas a quem confiscara
os bens, era inocente, arrependeu-se e determinou o perdão com a devolução dos
bens.
***
Noutro lugar
do Prólogo, Lopes declara que “el Rei Dom Pedro, cujo reinado se segue, usou da
justiça de que a Deus mais praz”. O cronista é explícito na intenção que tem na
crónica, o de responder ao desejo de saber dos outros: “alguns desejam saber que virtude é esta, e pois é necessária ao Rei, se
o é assim ao povo”. Por isso, pode concluir-se que pretende, através da
exposição dos feitos do rei – justo ou não tanto assim – provocar o
fortalecimento das virtudes no povo português, fortalecimento que ocasiona a “formosura
do espírito”, mais importante que a do corpo. E reitera, ao final do Prólogo,
que “desta virtude da justiça, que poucos
acha que a queiram por hóspeda, […] usou muito el Rei Dom Pedro”.
Percebe-se
que o supremo ideal cristão terá guiado a vida do rei e a composição da
história de Lopes. O Cristianismo sai enfatizado ao declarar que o rei “de cuidar é que houve o galardão da justiça,
cuja folha e fruto é: honrada fama neste mundo e perdurável folgança no outro”.
Porém, surpreendentemente
a crónica desnuda o rei, evidenciando os hábitos e caraterísticas pessoais do
rei, até pela forma como o faz. São disto exemplos: “este Rei Dom Pedro era
muito gago”; “ele era muito viandeiro sem ser comedor mais que outro homem”,
“este Rei não quis casar depois da morte de Dona Inês […] mas houve amigas com
quem dormiu”.
O tempo verbal
do pretérito e a pretensa omnisciência do narrador, resultante de pesquisas em
diversas fontes, parecem remeter para a caraterização duma personagem fictícia.
Recordem-se, a este respeito, outras passagens como: “não fazemos mais longo
processo por não sabermos quanto prazeriam aos que as ouvissem”; “foram armados
outros cavaleiros cujos nomes não curamos dizer”; “não curamos de dizer mais,
por não sair fora de propósito”. Estes segmentos revelam o processo de seleção
dos factos para garantir a verosimilhança interna ou do projeto
historiográfico. Longe de querer desqualificar a escrita fernandina, o escopo é
perceber como um modelo historiográfico interessado na escrita da verdade, transmissor
da totalidade dos factos ou da verdade sem mescla, assume a sua incapacidade de
representar a realidade na sua totalidade. Contudo, isto não abala propriamente
a verdade, mas a reconstituição das falas das personagens históricas, como
atesta a seguinte:
“–
Crede-me de conselho e ser-vos-á proveitoso; apartai-vos dos vossos e vamos a um
vale não longe daqui, e ali vos direi a maneira como vos ponhais em salvo”.
Esta fala
é dum manco. E é o que sabemos desta personagem. Parece que a sua inserção na
história, para dar conta da fuga de Diogo Lopez, como esta amostra do seu
discurso parecem fruto da criatividade, que não de fontes históricas. Este e outros
casos geram a dúvida se Lopes estava mais preocupado com a transmissão da
verdade factual ou com a sensação de verdade através da linguagem. Torquato de
Sousa Soares (in Fernão Lopes.
Crónica de D. Pedro I: Trechos Escolhidos. Lisboa: Clássica, 1963), diz:
“Fernão Lopes não se limita a seriar os factos já descritos: toma uma
atitude crítica que lhe impõe desde logo um primeiro postulado – a certidam da
verdade, que é ‘fruito prinçipal da alma... pela qual todallas cousas estam em
sua firmeza’, e que, por isso, ‘há de ser clara e nom fingida’. Ele próprio o
afirma […] dizendo que todo o seu desejo foi ‘escrepver verdade, sem outra
mestura, leixamdo nos boõs aqueeçimentos todo fimgido louvor, e nuamente
mostrar ao poboo, quaaes quer comtrairas cousas, da guisa que aveherom’.”
(SOARES, 1963, pgs. 26-27).
Das duas,
uma: ou Lopes age contrariando o seu plano; ou o que chama “verdade
correspondia” à investigação das mentalidades epocais (assim,
a antecipação da nova história não seria tão forçada ou audaz) a um trabalho levantador das
possibilidades de realização dos factos. Torquato Soares (1963,
p.36) sustenta uma
conceção estética à historiografia de Fernão Lopes, caraterizando-a pela
capacidade de fazer renascer a cena histórica a partir da organização linguística.
É curioso registar que Dom Pedro, prestes a morrer, segundo o cronista, “lembrou-se como, depois da morte d’Alvoro Gonçalves
e Pero Coelho, ele fora certo que Diego Lopez não fora em culpa da morte de
Dona Inês”. E, mesmo que a devolução dos bens ateste o arrependimento do
rei, a construção da sentença aponta para a intromissão do narrador no
pensamento do moribundo (focalização interna) – procedimento que manifesta a
dimensão de causa-efeito na História, em que supostamente repousam as decisões
dos grandes líderes, cujos atos – legislativos, executivos moderadores ou
justiceiros – são sempre eminentemente políticos enquanto perseguem o bem
comum, a causa pública e a tranquilidade na ordem e no progresso.
(cf
também Thiago da Camara Figueredo,
Na Fronteira entre os
discursos histórico e literário; facto e ficção m Amadis de Gaula e na Crónica
de El-rei Dom Pedro I,
http://www.assis.unesp.br/Home/PosGraduacao/Letras/RevistaMiscelanea/Artigo23-Thiago_da_Camara_Figueredo.pdf)
***
Aqui se
transcreve, para ilustração do que foi referido e como joia histórico-político-literária
o Prólogo, com atualização da grafia.
“Deixados os modos e definições da justiça, que, por desvairadas guisas,
muitos em seus livros escrevem, somente daquela para que o real poderio foi
estabelecido, que é por serem os maus castigados e os bons viverem em paz, é
nossa intenção, neste prólogo, muito curtamente falar, não como buscador de
novas razões, por própria invenção achadas, mas como ajuntador, em um breve
molho, dos ditos de alguns que nos aprouveram. À uma, por espertar os que
ouvirem, que entendam parte do que fala a história; à outra, por seguirmos
inteiramente a ordem do nosso arrazoado, no primeiro prólogo já tangida.
E
porquanto el-rei Dom Pedro, cujo reinado se segue, usou da justiça, de que a
Deus mais praz que cousa boa que o rei possa fazer, segundo os santos escrevem,
e alguns desejam saber que virtude é esta, e pois é necessária ao rei, se o é
assim ao povo: vós, naquele estilo que o simplesmente apanhámos, o podeis ler
por esta maneira.
Justiça
é uma virtude, que é chamada toda virtude; assim que qualquer que é justo, este
cumpre toda virtude; porque a justiça, assim como lei de Deus, defende que não
forniques nem sejas gargantão e, isto guardando, se cumpre a virtude da
castidade e da temperança, e assim podeis entender dos outros vícios e
virtudes.
Esta
virtude é mui necessária ao rei, e isso mesmo aos seus sujeitos, porque,
havendo no rei virtude de justiça, fará leis por que todos vivam direitamente e
em paz, e os seus sujeitos sendo justos, cumprirão as leis que ele puser, e
cumprindo-as não farão cousa injusta contra nenhum. E tal virtude, como esta,
pode cada um ganhar por obra de bom entendimento, e às vezes nascem alguns
assim naturalmente a ela dispostos, que com grande zelo a executam, posto que a
alguns vícios sejam inclinados.
A
razão por que esta virtude é necessária nos súbditos, é por cumprirem as leis
do príncipe, que sempre devem de ser ordenadas para todo bem, e quem tais leis
cumprir sempre bem obrará, cá as leis são regra do que os sujeitos hão de
fazer, e são chamadas príncipe não animado, e o rei é príncipe animado, porque
elas representam, com vozes mortas, o que o rei diz por sua voz viva: e porém a
justiça é muito necessária, assim no povo como no rei, porque sem ela nenhuma
cidade nem reino pode estar em sossego. Assim, que o reino, onde todo o povo é
mau, não se pode suportar muito tempo, porque, como a alma suporta o corpo e
partindo-se dele, o corpo se perde, assim a justiça suporta os reinos e
partindo-se deles perecem de todo.
Ora,
se a virtude da justiça é necessária ao povo, muito mais o é ao rei; porque se
a lei é regra do que se há de fazer, muito mais o deve de ser o rei que a põe e
o juiz que a há de encaminhar, porque a lei é príncipe sem alma, como dissemos,
e o príncipe é lei e regra da justiça com alma. Pois quanto a cousa com alma
tem melhoria sobre outra sem alma, tanto o rei deve ter excelência sobre as
leis: cá o rei deve de ser de tanta justiça e direito, que cumpridamente dê às
leis a execução; de outra guisa, mostrar-se-ia seu reino cheio de boas leis e
maus costumes, que era cousa torpe de ver. Pois duvidar se o rei há de ser
justiçoso, não é outra cousa senão duvidar se a regra há de ser direita, a
qual, se em direitura desfalece, nenhuma cousa direita se pode por ela fazer.
Outra
razão por que a justiça é muito necessária ao rei, assim é porque a justiça não
tão somente aformoseia os reis de virtude corporal, mas ainda espiritual, pois
quanto a formosura do espírito tem avantagem da do corpo, tanta a justiça no
rei é mais necessária que outra formosura.
A
terceira razão se mostra da perfeição da bondade, porque então dizemos alguma
cousa ser perfeita, quando fazer pode alguma semelhante a si, e portanto se
chama uma cousa boa, quando sua bondade se pode estender a outros, ao menos,
sequer por exemplo, e então se mostra, por prática, quanto cada um é bom,
quando é posto em senhorio.
Porém,
cumpre aos reis ser justiçosos por a todos seus sujeitos poder vir bem, e a
nenhum o contrário, trabalhando que a justiça seja guardada, não somente aos naturais
de seu reino, mas ainda aos de fora dele, porque, negada a justiça a alguma
pessoa, grande injúria é feita ao príncipe e a toda sua terra.
Desta
virtude da justiça, que poucos acha que a queiram por hospeda, posto que rainha
e senhora seja das outras virtudes, segundo diz Túlio, usou muito el-rei Dom
Pedro, segundo ver podem os que desejam de o saber, lendo parte de sua
história.
E
pois que ele, com bom desejo, por natural inclinação, refreou os males, regendo
bem seu reino, ainda que outras mínguas por ele passassem, de que penitencia
podia fazer, de cuidar é, que houve o galardão da justiça, cuja folha e fruto é
honrada fama neste mundo e perdurável folgança no outro.”.
2018.01.27 –
Louro de Carvalho
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