sábado, 27 de janeiro de 2018

A Justiça em Dom Pedro I segundo o cronista

Dos inúmeros temas tratados ao longo da Crónica de el-rei Dom Pedro I ou Crónica de Dom Pedro, destaca-se a Justiça a que dedicou o Prólogo, para a explicitação do conceito e, pelo menos, mais 5 dos 44 capítulos, para a descrição de casos específicos da aplicação da Justiça.
Na verdade, Fernão Lopes quis dar de Dom Pedro a imagem do rei preocupado com a Justiça, a justificar a razão por que recebeu o cognome de Justiceiro ou Justiçoso, ou de Cruel, neste caso pelo tipo de castigos sentenciados e que executou ou mandou executar mesmo na sua presença.  
Acerca da importância da Justiça no governo do reino, escreve Fernão Lopes no Prólogo:
Justiça é uma virtude que é chamada toda virtude, assim que qualquer que é justo, este cumpre toda a virtude, porque a justiça, assim como a lei de Deus, defende que não forniques nem sejas gargantão e, isto guardando, se cumpre a virtude da castidade e da temperança. E assim podeis entender dos outros vícios e virtudes.”.
É de registar o conceito globalizante que a Justiça assume compendiando todas as virtudes (de que é a rainha), à semelhança do que a Bíblia perfila para o homem justo. Por outro lado, este conceito fernandino de justiça privilegia algumas virtudes: a castidade, contra a luxúria (fornicação); a temperança, contra a gula; e a humildade/discrição, contra a soberba. Tal conceito, sem o negar, ultrapassa o conceito simplista e redutor da justiça pela qual se castigam os maus e se deixam os bons viver em paz.
Porém, o rei-centro desta crónica não é lá muito exemplo naquelas matérias setoriais da justiça. Lopes diz de Dom Pedro que era guloso (viandeiro), contrariando a moderação e temperança. Só não terá sido tão gargantão por ser gago, mas não se livra da fama de rispidez e sobranceria para com os prevaricadores, excedendo-se na ira e na determinação da crueldade, a executar por si ou por outrem. E, quanto à castidade, soube bem, valendo-se da condição de príncipe e de soberano “filhar” as damas por quem se deixava seduzir. E mesmo a relação com outros homens não era tão sadia como seria de esperar do rei. O cronista não se coíbe de afirmar que a um determinado pajem o rei “amava-o mais do que devia”.
Relativamente à noção da Justiça enquanto “virtude que é toda a virtude”, provavelmente Lopes terá conhecido os textos de Aristóteles, que, na Ética a Nicómaco, cita um provérbio grego com uma ideia da qual muito se aproxima o cronista: “A justiça contém todas as outras virtudes”.
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No âmbito da incumbência de contar a vida ou, melhor, o reinado dos reis, Lopes, no Prólogo da Crónica de Dom Pedro, revela uma outra finalidade da sua escrita. Munido de grande domínio retórico, reflete sobre a justiça, as virtudes, os vícios, o papel do rei e o papel do povo.
 “Esta virtude é mui necessária ao rei e isso mesmo aos seus súbditos, porque havendo no rei virtude de justiça fará leis por que todos vivam direitamente e em paz. E os seus sujeitos, sendo justos, cumprirão as leis que ele puser e, cumprindo-as, não farão cousa injusta contra ninguém, e tal virtude como esta pode cada um ganhar por obra de bom entendimento.”.
Assim, na conceção do cronista, a justiça entende-se em duas dimensões: no soberano e nos súbditos. Se o soberano está imbuído do sentido da justiça, produzirá leis justas, que darão paz à comunidade; e, se os súbditos forem justos, cumprirão as leis que o soberano estabelecer e as relações entre os súbditos serão sadias e exemplares. Sem a justiça, a aplicar aos súbditos e aos de fora, o Reino desconjunta-se tal como acontece ao corpo quando a alma dele se aparta. É a justiça que faz a coesão do povo e o mantém no rumo certo, promovendo assim o bem comum.
Porém, a questão da justiça não está só do lado da produção da lei e do espírito do legislador. Está também e, sobretudo, na aplicação da lei quando as atitudes e comportamentos dos súbditos indiciam a transgressão da lei. O juiz eivado do sentido de justiça aprecia as condições da prática do crime e julga segundo a lei e não segundo os estados de alma ou o acinte pessoal. Por outro lado, pune de modo equitativo e respeitando o princípio da proporcionalidade e tendo em vista o bem comum. O que Dom Pedro muitas vezes não fez.
É certo que o Justiceiro nunca julgou sem a lei do seu lado, mas, sentindo-se acima da lei e não sujeito à lei (havia até o princípio de que o legislador não estava sujeito à lei e é por isso que o legislador moderno é um coletivo, sendo que, por não ser a lei emanada de um indivíduo, nenhum se pode considerar fora da alçada porque nenhum é legislador). Aliás, o Prólogo afirma a proeminência do rei:
“Porque se a lei é regra do que se há de fazer, muito mais o deve de ser o rei que a põe e o juiz que a há de encaminhar, porque a lei é príncipe sem alma, como dissemos, e o príncipe é lei e regra da justiça com alma […] Quanto a cousa com alma tem melhoria sobre outra sem alma, tanto o rei deve ter excelência sobre as leis.”.
Nos cinco capítulos da crónica que tratam de casos específicos de justiça, capítulos 6 a 10, um descreve o roubo e assassínio de um judeu (cap. 6), que Dom Pedro castiga porque os cristãos não têm o direito de matar nem perseguir por motivos religiosos, sendo os restantes quatro casos de adultério. Em dois dos cinco casos referidos, o caso dum bispo (alto clero, cap. 7) e outro do almirante do reino (alta nobreza, cap. 10), os castigos decididos numa primeira fase pelo rei acabaram por não ser aplicados face aos pedidos de clemência por parte de pessoas influentes.
Por outro lado, foi extremamente duro, cruel sanguinário no castigo que mandou infligir aos carrascos que liquidaram Inês de Castro, não tendo em conta que obedeceram a ordens régias ou que aconselharam o monarca reinante em função do que entendiam como interesse do Reino. Contudo, apercebendo-se, no leito da morte de que um dos algozes, que não fora morto por ter fugido, mas a quem confiscara os bens, era inocente, arrependeu-se e determinou o perdão com a devolução dos bens.
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Noutro lugar do Prólogo, Lopes declara que “el Rei Dom Pedro, cujo reinado se segue, usou da justiça de que a Deus mais praz”. O cronista é explícito na intenção que tem na crónica, o de responder ao desejo de saber dos outros: “alguns desejam saber que virtude é esta, e pois é necessária ao Rei, se o é assim ao povo”. Por isso, pode concluir-se que pretende, através da exposição dos feitos do rei – justo ou não tanto assim – provocar o fortalecimento das virtudes no povo português, fortalecimento que ocasiona a “formosura do espírito”, mais importante que a do corpo. E reitera, ao final do Prólogo, que “desta virtude da justiça, que poucos acha que a queiram por hóspeda, […] usou muito el Rei Dom Pedro”.
Percebe-se que o supremo ideal cristão terá guiado a vida do rei e a composição da história de Lopes. O Cristianismo sai enfatizado ao declarar que o rei “de cuidar é que houve o galardão da justiça, cuja folha e fruto é: honrada fama neste mundo e perdurável folgança no outro”.
Porém, surpreendentemente a crónica desnuda o rei, evidenciando os hábitos e caraterísticas pessoais do rei, até pela forma como o faz. São disto exemplos: “este Rei Dom Pedro era muito gago”; “ele era muito viandeiro sem ser comedor mais que outro homem”, “este Rei não quis casar depois da morte de Dona Inês […] mas houve amigas com quem dormiu”.
O tempo verbal do pretérito e a pretensa omnisciência do narrador, resultante de pesquisas em diversas fontes, parecem remeter para a caraterização duma personagem fictícia. Recordem-se, a este respeito, outras passagens como: “não fazemos mais longo processo por não sabermos quanto prazeriam aos que as ouvissem”; “foram armados outros cavaleiros cujos nomes não curamos dizer”; “não curamos de dizer mais, por não sair fora de propósito”. Estes segmentos revelam o processo de seleção dos factos para garantir a verosimilhança interna ou do projeto historiográfico. Longe de querer desqualificar a escrita fernandina, o escopo é perceber como um modelo historiográfico interessado na escrita da verdade, transmissor da totalidade dos factos ou da verdade sem mescla, assume a sua incapacidade de representar a realidade na sua totalidade. Contudo, isto não abala propriamente a verdade, mas a reconstituição das falas das personagens históricas, como atesta a seguinte:
“– Crede-me de conselho e ser-vos-á proveitoso; apartai-vos dos vossos e vamos a um vale não longe daqui, e ali vos direi a maneira como vos ponhais em salvo”.
Esta fala é dum manco. E é o que sabemos desta personagem. Parece que a sua inserção na história, para dar conta da fuga de Diogo Lopez, como esta amostra do seu discurso parecem fruto da criatividade, que não de fontes históricas. Este e outros casos geram a dúvida se Lopes estava mais preocupado com a transmissão da verdade factual ou com a sensação de verdade através da linguagem. Torquato de Sousa Soares (in Fernão Lopes. Crónica de D. Pedro I: Trechos Escolhidos. Lisboa: Clássica, 1963), diz:
Fernão Lopes não se limita a seriar os factos já descritos: toma uma atitude crítica que lhe impõe desde logo um primeiro postulado – a certidam da verdade, que é ‘fruito prinçipal da alma... pela qual todallas cousas estam em sua firmeza’, e que, por isso, ‘há de ser clara e nom fingida’. Ele próprio o afirma […] dizendo que todo o seu desejo foi ‘escrepver verdade, sem outra mestura, leixamdo nos boõs aqueeçimentos todo fimgido louvor, e nuamente mostrar ao poboo, quaaes quer comtrairas cousas, da guisa que aveherom’.” (SOARES, 1963, pgs. 26-27).
Das duas, uma: ou Lopes age contrariando o seu plano; ou o que chama “verdade correspondia” à investigação das mentalidades epocais (assim, a antecipação da nova história não seria tão forçada ou audaz) a um trabalho levantador das possibilidades de realização dos factos. Torquato Soares (1963, p.36) sustenta uma conceção estética à historiografia de Fernão Lopes, caraterizando-a pela capacidade de fazer renascer a cena histórica a partir da organização linguística. É curioso registar que Dom Pedro, prestes a morrer, segundo o cronista, “lembrou-se como, depois da morte d’Alvoro Gonçalves e Pero Coelho, ele fora certo que Diego Lopez não fora em culpa da morte de Dona Inês”. E, mesmo que a devolução dos bens ateste o arrependimento do rei, a construção da sentença aponta para a intromissão do narrador no pensamento do moribundo (focalização interna) – procedimento que manifesta a dimensão de causa-efeito na História, em que supostamente repousam as decisões dos grandes líderes, cujos atos – legislativos, executivos moderadores ou justiceiros – são sempre eminentemente políticos enquanto perseguem o bem comum, a causa pública e a tranquilidade na ordem e no progresso.
(cf também Thiago da Camara Figueredo, Na Fronteira entre os discursos histórico e literário; facto e ficção m Amadis de Gaula e na Crónica de El-rei Dom Pedro I, http://www.assis.unesp.br/Home/PosGraduacao/Letras/RevistaMiscelanea/Artigo23-Thiago_da_Camara_Figueredo.pdf)
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Aqui se transcreve, para ilustração do que foi referido e como joia histórico-político-literária o Prólogo, com atualização da grafia.
Deixados os modos e definições da justiça, que, por desvairadas guisas, muitos em seus livros escrevem, somente daquela para que o real poderio foi estabelecido, que é por serem os maus castigados e os bons viverem em paz, é nossa intenção, neste prólogo, muito curtamente falar, não como buscador de novas razões, por própria invenção achadas, mas como ajuntador, em um breve molho, dos ditos de alguns que nos aprouveram. À uma, por espertar os que ouvirem, que entendam parte do que fala a história; à outra, por seguirmos inteiramente a ordem do nosso arrazoado, no primeiro prólogo já tangida.
E porquanto el-rei Dom Pedro, cujo reinado se segue, usou da justiça, de que a Deus mais praz que cousa boa que o rei possa fazer, segundo os santos escrevem, e alguns desejam saber que virtude é esta, e pois é necessária ao rei, se o é assim ao povo: vós, naquele estilo que o simplesmente apanhámos, o podeis ler por esta maneira.
Justiça é uma virtude, que é chamada toda virtude; assim que qualquer que é justo, este cumpre toda virtude; porque a justiça, assim como lei de Deus, defende que não forniques nem sejas gargantão e, isto guardando, se cumpre a virtude da castidade e da temperança, e assim podeis entender dos outros vícios e virtudes.
Esta virtude é mui necessária ao rei, e isso mesmo aos seus sujeitos, porque, havendo no rei virtude de justiça, fará leis por que todos vivam direitamente e em paz, e os seus sujeitos sendo justos, cumprirão as leis que ele puser, e cumprindo-as não farão cousa injusta contra nenhum. E tal virtude, como esta, pode cada um ganhar por obra de bom entendimento, e às vezes nascem alguns assim naturalmente a ela dispostos, que com grande zelo a executam, posto que a alguns vícios sejam inclinados.
A razão por que esta virtude é necessária nos súbditos, é por cumprirem as leis do príncipe, que sempre devem de ser ordenadas para todo bem, e quem tais leis cumprir sempre bem obrará, cá as leis são regra do que os sujeitos hão de fazer, e são chamadas príncipe não animado, e o rei é príncipe animado, porque elas representam, com vozes mortas, o que o rei diz por sua voz viva: e porém a justiça é muito necessária, assim no povo como no rei, porque sem ela nenhuma cidade nem reino pode estar em sossego. Assim, que o reino, onde todo o povo é mau, não se pode suportar muito tempo, porque, como a alma suporta o corpo e partindo-se dele, o corpo se perde, assim a justiça suporta os reinos e partindo-se deles perecem de todo.
Ora, se a virtude da justiça é necessária ao povo, muito mais o é ao rei; porque se a lei é regra do que se há de fazer, muito mais o deve de ser o rei que a põe e o juiz que a há de encaminhar, porque a lei é príncipe sem alma, como dissemos, e o príncipe é lei e regra da justiça com alma. Pois quanto a cousa com alma tem melhoria sobre outra sem alma, tanto o rei deve ter excelência sobre as leis: cá o rei deve de ser de tanta justiça e direito, que cumpridamente dê às leis a execução; de outra guisa, mostrar-se-ia seu reino cheio de boas leis e maus costumes, que era cousa torpe de ver. Pois duvidar se o rei há de ser justiçoso, não é outra cousa senão duvidar se a regra há de ser direita, a qual, se em direitura desfalece, nenhuma cousa direita se pode por ela fazer.
Outra razão por que a justiça é muito necessária ao rei, assim é porque a justiça não tão somente aformoseia os reis de virtude corporal, mas ainda espiritual, pois quanto a formosura do espírito tem avantagem da do corpo, tanta a justiça no rei é mais necessária que outra formosura.
A terceira razão se mostra da perfeição da bondade, porque então dizemos alguma cousa ser perfeita, quando fazer pode alguma semelhante a si, e portanto se chama uma cousa boa, quando sua bondade se pode estender a outros, ao menos, sequer por exemplo, e então se mostra, por prática, quanto cada um é bom, quando é posto em senhorio.
Porém, cumpre aos reis ser justiçosos por a todos seus sujeitos poder vir bem, e a nenhum o contrário, trabalhando que a justiça seja guardada, não somente aos naturais de seu reino, mas ainda aos de fora dele, porque, negada a justiça a alguma pessoa, grande injúria é feita ao príncipe e a toda sua terra.
Desta virtude da justiça, que poucos acha que a queiram por hospeda, posto que rainha e senhora seja das outras virtudes, segundo diz Túlio, usou muito el-rei Dom Pedro, segundo ver podem os que desejam de o saber, lendo parte de sua história.
E pois que ele, com bom desejo, por natural inclinação, refreou os males, regendo bem seu reino, ainda que outras mínguas por ele passassem, de que penitencia podia fazer, de cuidar é, que houve o galardão da justiça, cuja folha e fruto é honrada fama neste mundo e perdurável folgança no outro.”.

2018.01.27 – Louro de Carvalho

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