Pouco depois
de assumir a liderança do PSD, em 1996, Marcelo quis acabar com as suspeitas em
torno do financiamento partidário, tendo ao lado Rui Rio, mas acabou por perder
a batalha.
Segundo a
edição do Observador de 8 de janeiro
pp, o Expresso fazia título, a 9 de
novembro, com as intenções do líder socialdemocrata: “Marcelo quer ‘apertar o
cinto’ aos partidos”.
O agora
Chefe de Estado assumira a liderança do PSD em março e queria acabar com as “malas de dinheiro” ,
que circulavam nos corredores partidários, ou seja, pretendia mudar a filosofia
do financiamento partidário e torná-lo fundamentalmente público, para impedir a
dependência dos partidos de qualquer interesse privado. No PSD, todos sentiam a
doença do sistema, mas poucos assumiam a autoria da cura. Marques Mendes, então
líder parlamentar do PSD recordou:
“Toda a
gente tinha a sensação de que a situação estava relativamente podre. Muitos líderes partidários defendiam que
era preciso encontrar uma solução, mas só Marcelo teve coragem de procurar a
terapêutica.”.
Os partidos,
sobretudo PS e PSD, pela sua dimensão e ambição de poder, estavam cada vez
mais dependentes das empresas ou dos
empresários a título individual. Sussurrava-se que, “quando um partido
estava no poder ou na perspetiva de chegar ao poder, não tinha dificuldades
financeiras; quando caía, ficava na penúria“, como recorda Marques Mendes. E sobrava para os
intermediários: os homens do aparelho que, “a troco das portas que podiam
abrir, das decisões que podiam condicionar e das influências que podiam mover,
ficavam com o seu quinhão”.
Nos idos
anos 90, com o fim do cavaquismo e os primeiros tempos do guterrismo, na
convicção de que não há almoços grátis, a prazo, todos queriam uma contrapartida. Todos topavam o mal, mas
poucos arriscavam avançar com um diploma contra os interesses instalados nos
partidos. A lei em vigor, que fora aprovada em 1993, no consulado de Cavaco Silva, abrira, pela primeira
vez (pelo menos, formalmente), a porta a dinheiro de empresas nacionais privadas.
Um partido podia receber por ano
até (correspondente em escudos) de 236.400 euros de
empresas privadas, podendo cada
empresa entregar 23.640 euros. E uma pessoa singular podia doar 7.092 euros,
indo os donativos singulares até aos 2.364 euros, que podiam ser em dinheiro e
de forma anónima. Era, assim,
impossível detetar o rasto do financiamento partidário. Neste contexto,
Marcelo queria a mudança radical:
acabar o apoio das empresas privadas; limitar os donativos individuais; e
aumentar as subvenções públicas. A este respeito, Marques Mendes sustenta:
“O Presidente da República sempre teve este
entendimento: o financiamento
partidário deve ser essencialmente público, porque isso garante maior
transparência. A democracia tem custos e esse deve ser um custo suportado pelo
Estado. E os partidos devem impor-se limites de despesa.”.
***
Ora, quem se
der à curiosidade de analisar a mensagem que o Presidente dirigiu à Assembleia
da República, percebe que, no fundo, Marcelo mantém a mesma postura teórica,
embora se escude nas deficiências processuais que deram a ideia de uma
discussão da matéria opaca e inescrutinável, advertindo que a democracia também
postula a transparência e a publicidade.
A lei que
Marcelo vetou mais de 20 anos depois, previa, entre outros aspetos, o fim do limite
para angariação de fundos. Os tempos são outros; a exigência de rigor e de
transparência também. Mas vários especialistas notaram que o fim do limite para
as angariações de fundos abria ainda mais as portas a financiamentos encapotados
e dificultava a fiscalização. Por exemplo, Margarida Salema, ex-presidente da
Entidade das Contas e de Financiamentos Políticos, em entrevista ao Observador, sintetizava:
“No presente projeto de lei, trata-se antes
de referenciar os grandes eventos partidários em que as receitas, mesmo em
dinheiro vivo, passam a não ter limitações, o que enfraquece a necessidade de
controlo. Se não há limites legais,
para quê o controlo?”.
E, na
mensagem ao Parlamento a justificar o veto, o Presidente recorda a sua posição,
contrária ao espírito das alterações que os partidos (à exceção de
CDS e PAN) introduziam. Frisava no texto:
“Independente da minha posição
pessoal, diversa da consagrada,
como Presidente da República não posso promulgar soluções legislativas, consabidamente essenciais, sem mínimo
conhecimento da respetiva fundamentação”.
Ora, Marcelo
chegou a Belém fazendo a apologia do controlo das despesas na campanha eleitoral
e gastou apenas 179 mil euros contra os 924,7 mil de António Sampaio da Nóvoa,
o segundo candidato mais votado. De facto, o socialdemocrata tem um
entendimento sobre financiamento partidário contrário ao espírito da lei que os
partidos tentaram aprovar: mais contenção nas despesas e maior transparência. Por
isso, Marques Mendes concede poeticamente que o veto de Marcelo estivesse
escrito nas estrelas. Diz o comentador político:
“Não
sabia o que Marcelo Rebelo de Sousa ia fazer, mas conheço-o tão bem e há tanto
tempo que sabia que o Presidente da República nunca concordaria com uma solução
destas. Esta lei seria o início de um retrocesso. O fim do limite para
angariação de fundos era uma machadada
no espírito da lei atualmente em vigor: que o financiamento dos
partidos fosse tendencialmente público.”.
***
A mudança de
filosofia preconizada pelo então líder do PSD encontrou resistências no interior do partido. Aliás, a predita a
notícia do Expresso apontava noutro
sentido: num país a caminhar para a estagnação económica após os anos dourados
da entrada de Portugal na CEE, era impensável falar em aumento das subvenções
públicas para os partidos. Os correligionários que contestavam a ambição do
líder não se colocavam contra o fim da relação com os privados: receavam,
antes, o impacto dum possível aumento da despesa do Estado na opinião pública. Numa
clara referência à polémica do Totonegócio, uma fonte do PSD questionava na
altura:
“Como é
que se explicava às pessoas que,
estando nós a contestar que o Estado beneficiasse os clubes de futebol,
viéssemos propor que financiasse os partidos”?
O Expresso acusava a hesitação de Marcelo em
apresentar o projeto de lei (aliás, ele não era deputado), apesar de o ter anunciado logo após a tomada de
posse como líder. O aumento das subvenções estatais era tabu no partido, mas
eliminar (ou reduzir) os apoios
privados sem uma compensação revelava irrealismo. As propostas de Marcelo eram as ideias que acabariam “com o tráfico
de influências”. Mas tinha de se abrir e trilhar o caminho e chamar os
socialistas a jogo. O líder, entretanto, tinha em Jorge Sampaio, então Presidente da República, um aliado de peso,
que era sensível ao tema e possivelmente estaria disposto a apadrinhar a
iniciativa do PSD. Por isso, chamou Lopes Cardoso, então assessor de Sampaio e ex-secretário para as
finanças do PS, convidando-o para uma troca de impressões. Dias depois, a 26 de
novembro, o Expresso trazia novos
desenvolvimentos sobre a discussão, titulando: “PS e PSD disponíveis para acertar contas dos partidos”. Estavam lançadas as bases de um acordo de
regime, embora o acordo estivesse numa fase incipiente.
Seguiram-se meses
de debate parlamentar. Apesar da abertura do PS, as coisas complicaram-se, pois
o partido não aceitava o fim dos donativos
das empresas. Os socialistas concordavam com o reforço da fiscalização
interna e externa às contas dos partidos, mas agitavam-se com os limites
existentes para as doações para afastar qualquer alteração nessa matéria.
A ideia de Marcelo Rebelo de Sousa acabaria por ser derrotada em 1998 na
Assembleia da República. A 30 de junho,
discutiu-se a nova lei de financiamento dos partidos, que introduzia alterações
ao diploma de 1993: “criava-se um limite para os gastos feitos em campanha,
reforçavam-se os poderes e meios de fiscalização do Tribunal Constitucional,
aumentava-se o controlo judicial sobre as contas dos partidos, apertavam-se os
critérios de contabilidade interna dos partidos e criava-se a possibilidade de
os partidos terem um revisor oficial de contas”. No entanto, aos olhos do PSD, o
passo audaz não fora dado: impedir que os partidos recebessem donativos de
empresas privadas (as públicas já não estavam autorizadas a fazê-lo).
O debate do
dia teve dois intervenientes singulares: Alberto Martins, do PS, e Rui Rio, do PSD.
O então
deputado socialdemocrata dava conta da frustração nestes termos: “
“O PS entende que tudo está bem tal como
está. O PSD, ao contrário, entende que devemos criar uma nova filosofia, no que
diz respeito ao financiamento partidário, que evite a dependência dos partidos relativamente às empresas. Nós
pretendemos uma nova lei, uma lei com outra filosofia. O que esperamos é que o
Partido Socialista não venha a arrepender-se um dia, tal como noutros países
outros já se arrependeram.”.
Do lado
socialista, Alberto Martins replicava:
“Não
temos qualquer incidente de suspeição sobre as empresas privadas, como não temos nenhum incidente de
suspeição sobre os partidos e muito menos sobre o controlo que os órgãos
judiciais competentes são capazes de exprimir nesta apreciação. Por isso, não
foi em função do resultado que, de repente, como fez o PSD, resolvemos deixar
de considerar que as empresas privadas estavam isentas desta suspeição.”.
Rio resistiu
às provocações de Martins, dizendo que “a posição do PSD não tem nada a ver com
o resultado eleitoral”, pois “a sociedade é dinâmica”. E perguntava e sucessivamente
opinava:
“Qual a vantagem para a democracia portuguesa que as finanças dos
partidos dependam do financiamento das empresas e que os partidos só possam
funcionar enquanto as empresas os financiarem? De
facto, não percebo qual a vantagem disto para a democracia. Como é que o PS
evita que um partido fique totalmente, em termos financeiros, na mão de um
grupo económico? Não compreendo como é que isso se evita.”.
Martins devolveu
as críticas sem responder às questões de Rio. E rematou:
“Não percebo o facto de, repentinamente, para o PSD, as doações das
empresas privadas passarem a ser suspeitas e inquinadoras do regime
democrático. Confio
nas estruturas e nos órgãos da democracia, desde logo nos tribunais e no papel
de controlo e de fiscalização do Tribunal Constitucional.”.
Marcelo e
Guterres conseguiram vários acordos de regime. Mas, agora, o acordo não
aconteceu.
PSD, PCP e PEV
(os dois
últimos também condenavam o financiamento dos partidos por empresas privadas) ainda tentaram votar isoladamente normas que
permitiam este apoio pecuniário, impedindo que tais pontos do diploma fossem
rejeitados, mas acabaram vencidos pelos votos de PS e CDS. E a nova lei do
financiamento dos partidos, então aprovada, foi promulgada a 31 de julho de
1998.
***
Em 2003,
sendo primeiro-ministro Durão Barroso, a Assembleia da República voltou a discutir
o tema. Jorge Sampaio, desta vez, envolveu-se diretamente na discussão, pedindo
aos partidos que estudassem, entre outros aspetos, a lei do seu financiamento.
Desta feita, estiveram todos de acordo: chegavam ao fim as contribuições de
empresas privadas. Marcelo teria assim a sua pequena vitória, cinco anos depois
de ter posto o tema na agenda política.
Mesmo depois
de derrotado, Marcelo não deixou de falar do tema dos partidos, ainda que isso
fosse impopular no partido. A 3 de janeiro de 1998, precisamente 20 anos antes
do veto presidencial às alterações à lei do financiamento partidário, aproveitava
um artigo no Expresso para denunciar
o que denominava de cartelização dos partidos. O exercício teórico aprofundava conceitos
de ciência política e dirigia críticas muito concretas ao PS e avisos ao PSD: “A minha posição foi e será sempre uma
só: partido de cartel, não, muito
obrigado”. E, no aludido artigo do Expresso, em 1998, declarava:
“Enquanto é Governo, [o partido cartel]
perde a noção de serviço, e, quando passa à oposição, transita da fortuna de
milhões de contos para a pobreza de alguns milhares, e, durante longo tempo, em
vez de querer desbravar novas ideias e projetos, vive na nostalgia-ressentimento
do poder perdido. Por tudo isto, tenho sido firmemente contra a inevitabilidade
de o PSD se converter em partido de cartel, como já quase chegou a ser e como
é, por natureza, o Partido Socialista.”.
***
A semelhança
do tema de então com a atualidade reside na ação dos partidos em benefício
próprio. Para Marcelo, o partido de cartel age pondo os seus interesses, os
interesses da máquina, do aparelho, à frente dos interesses dos militantes – o
que significa “a perversão do voto e da
democracia”. Um partido assim, privilegiando o aparelho e colando-se ao
Estado, afasta a participação política e converte-se num partido conservador,
fechado sobre si. Habitua-se a viver dependente do Estado, dos subsídios, dos lugares,
do poder para distribuir por amigos e clientes. Argumentando assim, o então
líder do PSD baseava-se numa nova teoria da Ciência Política dos investigadores
Richard Katz e Peter Mair, a do conceito de partidos de cartel: aqueles que,
como o PS e o PSD, estavam dependentes dos recursos públicos e mais orientados
para os recursos do Estado do que para a mobilização da sociedade civil.
Para Marcelo,
“esta escolha tem custos”, pois “inquieta
barões sedentos de poder,
obriga a viver com poucos meios, implica moralizar comportamentos e perder maus hábitos, irrita muito o
eleitor, torna o líder antipático para um eleitorado que gosta de viver na
ilusão do consenso, das águas mornas até ao dia em que compreende que a
democracia se faz de competição de projetos e não de acordos constantes de
secretaria”.
Ora, estas
palavras do então líder partidário remetem para a argumentação do agora
Presidente da República para justificar o veto à lei em que entra,
entre outros, o mecanismo do financiamento partidário. Se antes sustentava que o partido de cartel age pondo os
seus interesses acima dos interesses dos militantes, agora lembra que matéria
fundamental no domínio do financiamento partidário não pode ser alterada “sem
que seja apresentada qualquer
justificação” – decisão só possível por cartelização dos partidos com
assento parlamentar. Se antes defendia que isto é “a perversão do voto e da democracia”,
agora recorda que a “democracia também é feita da adoção de processos
decisórios suscetíveis de serem controlados pelos cidadãos” e que “a isso se
chama publicidade e transparência“.
***
Marcelo não
pode, contudo, ajuizar pela sua campanha as questões partidárias. Nem todos têm
as possibilidades comunicacionais do atual inquilino de Belém. Por outro lado,
entendo que o financiamento dos partidos deve ser misto: público, a partir das subvenções
do Estado, dentro de critérios de parcimónia e equidade; e autónomo, a partir
da capacidade própria de angariação de fundos e da contribuição regular dos
militantes, sem limites impostos por lei, mas dentro dos limites da legalidade –
de receita e despesa – com sujeição à fiscalização das competentes entidades. No
âmbito do reembolso do IVA, devem ter as mesmas possibilidades – e só as mesmas
– que as diferentes entidades privadas de utilidade pública.
Nem vale a
pena atirar para o ar que os partidos legislam em causa própria. É óbvio que
sim, mas ninguém pode legislar contra os partidos ou à margem deles. Eles constituem
o Parlamento e é deste que emerge o Governo. Mas há entidades de controlo: Presidente
da República e Tribunal Constitucional (TC). Talvez fosse prudente uma lei destas ser sempre sujeita previamente à apreciação
do TC a pedido do Presidente, antes do veto ou da promulgação.
***
É a saúde da
democracia em termos de legalidade, transparência e eficácia!
2018.01.09 –
Louro de Carvalho
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