segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Deve rever-se a forma como Gil Vicente é mostrado nos dias de hoje

A edição de hoje, dia 15, do JN noticia que José Augusto Cardoso Bernardes – professor catedrático na Faculdade de Letras de Coimbra, membro integrado do Centro de Literatura Portuguesa, membro do Atomium Culture (desde 2009), Diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (desde 2011), membro do Conselho Nacional de Educação (desde 2011) e consultor para o ‘Programa Língua Portuguesa’ da Fundação Calouste Gulbenkian (desde (2013) – vem ao Porto proferir uma palestra sobre a obra de Gil Vicente.
Como janeiro é o mês de Gil Vicente no Teatro Nacional São João, até ao próximo domingo, dia 21, a obra vicentina está realçada na Cidade por meio de peças de teatro, leituras, oficinas e uma conferência.
O título da conferência que o renomado especialista vicentino vai concretizar hoje, segunda-feira, às 21 horas no Teatro Carlos Alberto é “Gil Vicente no seu tempo e no nosso tempo”. Para já, de acordo com uma entrevista que o professor deu ao Jornal de Notícias, sabemos que, em sua opinião, a reaproximação popular à obra de Gil Vicente só poderá acontecer com o regresso das suas peças aos palcos, novas edições – “rigorosas, sistemáticas e acessíveis” – e uma reformulação do ensino.
A aludida entrevista antecipa algumas das asserções constantes da conferência. Por isso, aqui ficam algumas linhas, necessariamente fragmentárias.
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Começa por assentir que se alimenta a ideia de que “um autor clássico mantém por norma a sua atualidade intacta”, o que, de certo modo, se aplica ao célebre dramaturgo. Mas avisa:
Por vezes, na Escola costumamos acentuar o caráter de quase adivinhação que distinguiria as grandes obras. Mas existe algo de demagógico nessa crença. Só em parte se pode dizer que a atualidade transita de umas épocas para as outras. O maior desafio que um artista enfrenta é o de corresponder aos desafios do seu próprio tempo. Perscrutar o mundo, identificando as grandes questões que o habitam em cada circunstância não é coisa pouca.”.
Com efeito, tem de entender-se, do meu ponto de vista, que um autor só conseguirá mérito como tal se conseguir penetrar nas grandes linhas problemáticas do seu tempo, mesmo que, por motivos táticos e até de fidelização ao património histórico da civilização, tenha de conferir à sua produção literária uma roupagem de tempos passado ou de premonição de tempos futuros. De facto, o presente não se entende só por si.
Quanto às asserções acima enunciadas, o especialista dá um exemplo aplicável a Vicente, o da Justiça como “um dos temas mais recorrentes nos seus autos”. Ora, tal não quer dizer que o dramaturgo tenha antecipado a relevância que a Justiça havia de vir a ter nas sociedades democráticas dos séculos XX e XXI. Simplesmente, a ordem por ele defendida e proclamada nos reinados de Dom Manuel e de Dom João III “requeria uma Justiça forte e impoluta”, pelo que o pioneiro criador de teatro e diretor de atores se empenhou “em denunciar a venalidade dos magistrados”. Tanto assim é que a sua última peça – “Floresta de enganos” – evidencia ainda a existência de um juiz corrompido.
Isto não significará que não se possa, mercê da intemporalidade da condição e do drama humanos, fazer a aproximação acomodatícia entre as realidades daquele tempo e as de hoje no que apresentam de similar, mas sem confundir as coisas e acentuando as diferenças. Assim, podemos notar claramente, por exemplo, no “Auto da Barca do Inferno”, o realce emprestado a um procurador e a um corregedor que vão parar ao Inferno pela enviesada promoção e administração da Justiça, ou a um onzeneiro (usurário ou agiota) que lá foi parar por ter enriquecido ilicitamente a emprestar dinheiro a altos juros. Ora, no lugar destes, poderemos ver agentes da justiça ou banqueiros do nosso tempo. Porém, tal não pressupõe que Gil Vicente tenha antecipado algum dos megaprocessos de hoje. Quer apenas dizer que, há quinhentos anos, já “o dramaturgo identificou a Justiça como base essencial para o funcionamento das sociedades humanas”, sendo este “um dos muitos desafios do seu tempo que, desde então, nunca mais deixou de nos interpelar”.
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Sendo assim, é natural que “um homem tão firmemente enraizado no seu tempo”, como foi Gil Vicente, assim espelhado naquilo que escreveu (conteúdo e forma), que a sua obra suscite potencialmente um enorme grau de interesse, tantos séculos depois.
Diz o entrevistado que “devemos alimentar a curiosidade por épocas diferentes daquela em que vivemos”, pois “o passado nunca está verdadeiramente passado”. Ao invés (e confirma-se o que acima afirmei), “cada época cria a necessidade de uma memória que vamos mantendo e renovando”. No entanto, em Gil Vicente, é preciso ter em conta “um fator especial”: “a sua voz vem do século XVI e os portugueses gostam (e precisam) da ampla e minuciosa ‘reportagem’ que ele lhes oferece desse tempo mítico”. Com efeito, a memória coletiva vive em muito boa parte de mitos, heróis e tempos de grandiosidade tidos como arquétipos do hoje que ora nos satisfaz ora nos insatisfaz.
Não importa muito “conhecer os acidentes particulares que encontram eco no teatro vicentino”. Até “é possível que, por exemplo, o fidalgo Dom Anrique ou o frade”, do “Auto da Barca do Inferno” se inspirem “em modelos reais, hoje desconhecidos”. Porém, para lá de tais “referências concretas, sobressai o teatro das atitudes e dos valores”. De facto, é importante conhecer o modo de ser e de estar “próprios de um período que, porventura mais do que qualquer outro, condicionou a nossa identidade”. Na verdade, “de uma maneira ou de outra, os portugueses gostam especialmente de espreitar o que se passa no primeiro terço do século XVI” – o tempo da expansão e da grandiosidade mítica do país com algum lastro real que ficou para a História a iluminar o devir do povo.
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Reconhece a dificuldade em aproximar os espectadores de hoje da arte de Gil Vicente, desde logo em ambiente escolar. O texto vicentino (e o texto literário, em geral) “requer esforço de leitura e de atenção para o qual os jovens não estão naturalmente disponíveis”. Hoje estamos rodeados de “solicitações bem mais imediatas, mesmo no plano literário e artístico”. Ora, não podendo “sustentar a ideia de acessibilidade (a linguagem dos autos pode parecer muito afastada da capacidade de reconhecimento dos alunos), resta tentar a demonstração de que “essa aproximação vale a pena”. E o entrevistado justifica:
“São muitos os ganhos que o espectador comum pode extrair em contacto com uma peça como o ‘Auto da Barca do Inferno’ ou o ‘Auto da Alma’, por exemplo. São ganhos de alteridade, quase sempre, ou seja, são ganhos de quem encontra e fica a conhecer situações, aspirações e valores diferentes daqueles que encontra no seu quotidiano. Não têm que ser tomados como exemplo mas podem ser apreciados pela diferença e isso é precioso.”.
Constata-se que, em geral, “os portugueses conhecem Gil Vicente na Escola” e quase não voltam a encontrá-lo. “É muito menos representado do que deveria ser”. E “as companhias que correm riscos e procuram levar Gil Vicente aos palcos com honestidade e criatividade cumprem uma missão patrimonial e deveriam beneficiar de algum tipo de apoio do Estado”. Contudo, há boas exceções, como “o caso concreto do Centro Dramático de Évora e da Escola da Noite (de Coimbra), companhias que têm (uma e outra) com Gil Vicente uma convivência bem sucedida, de muitos anos”. Arriscaram “conjugar recursos para levar a Barca do Inferno em digressão nacional”.
Tendo em conta que “é sempre desejável que haja surpresa” e que “um adolescente de 15 anos só muito parcialmente pode gostar” de Gil Vicente (e Camões) e compreendê-los, Cardoso Bernardes sustenta a importância de as aulas de Português não procurarem “ser exaustivas”, pois, “quando se lida com Arte, a busca da exaustividade não é um bem”, sendo “sempre preferível deixar nos alunos margem para descobertas posteriores”.
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Sobre as obscuridades que impendem sobre a personalidade de Gil Vicente, o especialista opina que este desconhecimento revela, “antes de mais, que o dramaturgo não era uma pessoa especialmente importante”. Sabe-se que servia o Rei “com uma independência que ainda hoje nos surpreende”. Porém, diz que “o seu estatuto social não seria muito elevado”.
Como “o século XIX não se conformou com esse desconhecimento”, “procurou supri-lo, recorrendo a especulações e fantasias”. E aponta como “a mais conhecida dessas especulações” a da pretensa coincidência numa só pessoa do dramaturgo “que compôs e encenou cerca de 50 peças (em 35 anos) e o ourives que concebeu a célebre Custódia de Belém, entre outras peças de execução particularmente exigente”. Assegura que “não existe nenhum indicador seguro de que essa tese seja verdadeira”.
Explica o diminuto interesse de hoje pela biografia de Gil Vicente com o facto de muito provavelmente ter vivido “uma vida comezinha”, não tendo sido, “pelo menos, um amador arrebatado e aventuroso como Camões”.
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A paixão de Cardoso Bernardes pela obra vicentina é por si explicada do seguinte modo:
Conjugaram-se dois fatores: queria trabalhar na literatura do século XVI e gosto simultaneamente de literatura e de teatro. A escolha de Gil Vicente surgiu assim de forma natural. Havia uma dificuldade maior, devo reconhecê-lo. Logo a seguir a Camões, Gil Vicente é, ainda hoje, o autor que mais bibliografia crítica inspirou: em Portugal sobretudo; mas também em Espanha, Brasil, França, Reino Unido e Estados Unidos. Dizer alguma coisa de novo (e a inovação é necessária quando se trata de investigação académica) implicava, pois, um longo e cuidado exame do que se tinha já escrito. Em contraponto, havia e há um estímulo muito forte. A obra de Gil Vicente é vastíssima e diversa. Nessa medida, o seu estudo nunca pode dar-se por terminado. As perguntas que hoje temos para fazer à Compilação são novas porque, em boa parte, a nossa curiosidade se renova em cada época.”.
Revelou ter coordenado, em parceria com José Camões, “excelente vicentista e responsável pela melhor e mais recente edição da obra completa do dramaturgo”, um Compêndio de Gil Vicente, que deverá ser publicado ainda este ano: “uma obra extensa e abrangente, que conta com a participação de cerca de duas dezenas de investigadores de diferentes nacionalidades. E disse que os dois tencionam publicar, em 2019, uma edição conjunta das três Barcas, como “excelente forma de assinalar os cinco séculos de representação desse conjunto peças, que Gil Vicente fez representar sequencialmente na corte de Dom Manuel, entre 1517 e 1519”.
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Interpelado sobre o aspeto da obra vicentina em que mais se nota a falta de estudos, diz:
A obra de Gil Vicente nunca pode ser dada por satisfatoriamente estudada. Durante muitos anos, predominou largamente a perspetiva literária. Só muito recentemente os estudos teatrais começaram a aproximar-se do autor. São ainda muito incipientes os estudos de que dispomos sobre a vertente cénica e performativa que pode ser reconstituída a partir dos textos e de outros elementos de pesquisa. Mas também se sente a falta de estudos em domínios específicos como a afinidade de Gil Vicente com a tradição do teatro europeu, a substância teológica que se reveste de importância tão marcante nas moralidades, por exemplo.”.
E à questão se é lícito considerar Gil Vicente um autor genuinamente português ou se será acima de tudo ibérico, replica com segurança que o dramaturgo “é um escritor e um homem de teatro português”. Todavia, entende que “esta caraterização não deve ser entendida em sentido restrito” já que “ele é também um grande intérprete da tradição lírica e teatral da Península Ibérica, estando mesmo, de algum modo, na génese da fantástica produção que assinala o teatro barroco espanhol (Lope de Vega e Calderón de la Barca)”. E mais: “Gil Vicente é, por direito próprio, um nome destacado da história do teatro ocidental”, pois que se situa “na linha dos modelos medievais e é, nesse plano, o dramaturgo mais coeso que essa tradição produziu”.
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Por fim, tem opinião sobre o que poderia ser feito para que a obra de Gil Vicente chegasse a ainda mais leitores.
Nesta ordem de ideias, distingue três necessidades: “o ensino, as edições e os palcos”. No âmbito do ensino, considera “necessário rever a forma como Gil Vicente é apresentado aos alunos do 9.º ano, pondo em primeiro plano a promoção da “criatividade fundamentada”, até porque já “existem boas práticas a este respeito, mas não existe maneira fácil de as divulgar”. Depois, vem “a necessidade de editar Gil Vicente de forma sistemática, rigorosa e acessível (com textos bem fixados e bem anotados, sobretudo)”, como “sucede em Espanha, a propósito de autores de grandeza equivalente”. Por fim (mas não menos importante), “é necessário assegurar a presença assídua de Gil Vicente nos palcos portugueses, em registo de qualidade artística”.
É certo que se trata de “empreendimentos não lucrativos”, mas entende que “o Estado existe também para zelar pelo nosso património, permitindo que ele permaneça vivo e possa ser dado a conhecer às diferentes gerações”.
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Complementarmente e porque Cardoso Bernardes não se refere a este tipo de produção brasileira sobre o dramaturgo, refiro o conjunto de obras editadas e comentadas por Noêmio Ramos, que, além da análise e da crítica interna, dão a perspetiva da interligação de Gil Vicente com autores e outros homens de relevo, seus contemporâneos, e com célebres pensadores da Antiguidade: Gil Vicente – O Velho da Horta (motivações ideológicas das obras de Erasmo presentes neste e em outros Autos); Gil Vicente – Auto da Visitação (com a apresentação das metodologias de análise das Obras de Gil Vicente e dos usos e costumes ligados ao tema); Auto da Alma, Erasmo, o Enriquirídion e Júlio II (com a interpenetração com os pensadores e líderes da Europa de então); Gil Vicente – Carta de Santarém, 1531 (com o significado, intenções e motivações do texto, relação com outros autos e ligação com as políticas europeias); e Gil Vicente e Platão – Arte e Dialéctica (com a dialética e o conceito de Arte e de Belo em Platão e a Arte Dramática de Gil Vicente).
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E, sim, temos no dramaturgo um homem bem mais erudito e culto do que os autos deixam transparecer. Vale a pena voltar a Gil Vicente, para fruição e conhecimento.

2018.01.15 – Louro de Carvalho

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