A edição de hoje, dia 15, do JN noticia que José Augusto Cardoso Bernardes – professor
catedrático na Faculdade de Letras de Coimbra, membro integrado do Centro
de Literatura Portuguesa, membro do Atomium Culture (desde 2009), Diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (desde 2011), membro do Conselho Nacional de Educação (desde 2011) e consultor para o ‘Programa Língua Portuguesa’ da Fundação
Calouste Gulbenkian (desde (2013) – vem ao Porto
proferir uma palestra sobre a obra de Gil Vicente.
Como janeiro é o mês de Gil Vicente no Teatro Nacional São João, até
ao próximo domingo, dia 21, a obra vicentina está realçada na Cidade por meio
de peças de teatro, leituras, oficinas e uma conferência.
O título da conferência que o renomado especialista vicentino vai
concretizar hoje, segunda-feira, às 21 horas no Teatro Carlos Alberto é “Gil Vicente no seu tempo e no nosso tempo”. Para
já, de acordo com uma entrevista que o professor deu ao Jornal de Notícias, sabemos que, em sua opinião, a reaproximação
popular à obra de Gil Vicente só poderá acontecer com o regresso das suas peças
aos palcos, novas edições – “rigorosas, sistemáticas e acessíveis” – e uma reformulação
do ensino.
A aludida entrevista antecipa algumas das
asserções constantes da conferência. Por isso, aqui ficam algumas linhas,
necessariamente fragmentárias.
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Começa por assentir que se alimenta a ideia de
que “um autor clássico mantém por norma a sua atualidade intacta”, o que, de
certo modo, se aplica ao célebre dramaturgo. Mas avisa:
“Por vezes, na Escola costumamos
acentuar o caráter de quase adivinhação que distinguiria as grandes obras. Mas
existe algo de demagógico nessa crença. Só em parte se pode dizer que a
atualidade transita de umas épocas para as outras. O maior desafio que um
artista enfrenta é o de corresponder aos desafios do seu próprio tempo.
Perscrutar o mundo, identificando as grandes questões que o habitam em cada
circunstância não é coisa pouca.”.
Com efeito, tem de entender-se, do meu ponto de vista, que um autor só
conseguirá mérito como tal se conseguir penetrar nas grandes linhas
problemáticas do seu tempo, mesmo que, por motivos táticos e até de fidelização
ao património histórico da civilização, tenha de conferir à sua produção
literária uma roupagem de tempos passado ou de premonição de tempos futuros. De
facto, o presente não se entende só por si.
Quanto às asserções acima enunciadas, o especialista dá um exemplo
aplicável a Vicente, o da Justiça como “um dos temas mais recorrentes nos seus
autos”. Ora, tal não quer dizer que o dramaturgo tenha antecipado a relevância
que a Justiça havia de vir a ter nas sociedades democráticas dos séculos XX e
XXI. Simplesmente, a ordem por ele defendida e proclamada nos reinados de Dom
Manuel e de Dom João III “requeria uma Justiça forte e impoluta”, pelo que o pioneiro
criador de teatro e diretor de atores se empenhou “em denunciar a venalidade
dos magistrados”. Tanto assim é que a sua última peça – “Floresta de enganos” – evidencia ainda a existência de um juiz
corrompido.
Isto não significará que não se possa, mercê da intemporalidade da condição
e do drama humanos, fazer a aproximação acomodatícia entre as realidades
daquele tempo e as de hoje no que apresentam de similar, mas sem confundir as
coisas e acentuando as diferenças. Assim, podemos notar claramente, por
exemplo, no “Auto da Barca do Inferno”,
o realce emprestado a um procurador e a um corregedor que vão parar ao Inferno pela
enviesada promoção e administração da Justiça, ou a um onzeneiro (usurário ou agiota) que lá foi parar por ter enriquecido ilicitamente a emprestar dinheiro a
altos juros. Ora, no lugar destes, poderemos ver agentes da justiça ou
banqueiros do nosso tempo. Porém, tal não pressupõe que Gil Vicente tenha
antecipado algum dos megaprocessos de hoje. Quer apenas dizer que, há
quinhentos anos, já “o dramaturgo identificou a Justiça como base essencial
para o funcionamento das sociedades humanas”, sendo este “um dos muitos
desafios do seu tempo que, desde então, nunca mais deixou de nos interpelar”.
***
Sendo assim, é natural que “um homem tão
firmemente enraizado no seu tempo”, como foi Gil Vicente, assim espelhado
naquilo que escreveu (conteúdo
e forma), que a sua obra suscite potencialmente um enorme grau de interesse, tantos
séculos depois.
Diz o entrevistado que “devemos alimentar a curiosidade por épocas
diferentes daquela em que vivemos”, pois “o passado nunca está verdadeiramente
passado”. Ao invés (e confirma-se o que acima afirmei), “cada época cria a necessidade
de uma memória que vamos mantendo e renovando”. No entanto, em Gil Vicente, é
preciso ter em conta “um fator especial”: “a sua voz vem do século XVI e os
portugueses gostam (e precisam) da ampla e minuciosa
‘reportagem’ que ele lhes oferece desse tempo mítico”. Com efeito, a memória
coletiva vive em muito boa parte de mitos, heróis e tempos de grandiosidade
tidos como arquétipos do hoje que ora nos satisfaz ora nos insatisfaz.
Não importa muito “conhecer os acidentes particulares que encontram eco no
teatro vicentino”. Até “é possível que, por exemplo, o fidalgo Dom Anrique ou o
frade”, do “Auto da Barca do Inferno”
se inspirem “em modelos reais, hoje desconhecidos”. Porém, para lá de tais “referências
concretas, sobressai o teatro das atitudes e dos valores”. De facto, é importante
conhecer o modo de ser e de estar “próprios de um período que, porventura mais
do que qualquer outro, condicionou a nossa identidade”. Na verdade, “de uma
maneira ou de outra, os portugueses gostam especialmente de espreitar o que se
passa no primeiro terço do século XVI” – o tempo da expansão e da grandiosidade
mítica do país com algum lastro real que ficou para a História a iluminar o
devir do povo.
***
Reconhece a dificuldade em aproximar os espectadores de hoje da arte de Gil
Vicente, desde logo em ambiente escolar. O texto vicentino (e o texto literário, em geral) “requer esforço de leitura e de atenção para o qual os jovens não estão
naturalmente disponíveis”. Hoje estamos rodeados de “solicitações bem mais
imediatas, mesmo no plano literário e artístico”. Ora, não podendo “sustentar a
ideia de acessibilidade (a linguagem dos autos pode
parecer muito afastada da capacidade de reconhecimento dos alunos), resta tentar a demonstração de
que “essa aproximação vale a pena”. E o entrevistado justifica:
“São muitos os ganhos que o espectador
comum pode extrair em contacto com uma peça como o ‘Auto da Barca do Inferno’
ou o ‘Auto da Alma’, por exemplo. São ganhos de alteridade, quase sempre, ou
seja, são ganhos de quem encontra e fica a conhecer situações, aspirações e
valores diferentes daqueles que encontra no seu quotidiano. Não têm que ser
tomados como exemplo mas podem ser apreciados pela diferença e isso é precioso.”.
Constata-se que, em geral, “os portugueses conhecem Gil Vicente na Escola”
e quase não voltam a encontrá-lo. “É muito menos representado do que deveria
ser”. E “as companhias que correm riscos e procuram levar Gil Vicente aos
palcos com honestidade e criatividade cumprem uma missão patrimonial e deveriam
beneficiar de algum tipo de apoio do Estado”. Contudo, há boas exceções, como “o
caso concreto do Centro Dramático de
Évora e da Escola da Noite (de Coimbra), companhias que têm (uma e outra) com Gil Vicente uma convivência
bem sucedida, de muitos anos”. Arriscaram “conjugar recursos para levar a Barca
do Inferno em digressão nacional”.
Tendo em conta que “é sempre desejável que haja surpresa” e que “um
adolescente de 15 anos só muito parcialmente pode gostar” de Gil Vicente (e Camões) e compreendê-los, Cardoso Bernardes sustenta a importância de as aulas de Português
não procurarem “ser exaustivas”, pois, “quando se lida com Arte, a busca da
exaustividade não é um bem”, sendo “sempre preferível deixar nos alunos margem
para descobertas posteriores”.
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Sobre as obscuridades que impendem sobre a personalidade de Gil Vicente, o
especialista opina que este desconhecimento revela, “antes de mais, que o
dramaturgo não era uma pessoa especialmente importante”. Sabe-se que servia o
Rei “com uma independência que ainda hoje nos surpreende”. Porém, diz que “o
seu estatuto social não seria muito elevado”.
Como “o século XIX não se conformou com esse desconhecimento”, “procurou
supri-lo, recorrendo a especulações e fantasias”. E aponta como “a mais
conhecida dessas especulações” a da pretensa coincidência numa só pessoa do
dramaturgo “que compôs e encenou cerca de 50 peças (em 35 anos) e o ourives que concebeu a célebre Custódia de Belém, entre outras peças
de execução particularmente exigente”. Assegura que “não existe nenhum
indicador seguro de que essa tese seja verdadeira”.
Explica o diminuto interesse de hoje pela biografia de Gil Vicente com o
facto de muito provavelmente ter vivido “uma vida comezinha”, não tendo sido, “pelo
menos, um amador arrebatado e aventuroso como Camões”.
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A paixão de Cardoso Bernardes pela obra vicentina
é por si explicada do seguinte modo:
“Conjugaram-se dois fatores: queria
trabalhar na literatura do século XVI e gosto simultaneamente de literatura e
de teatro. A escolha de Gil Vicente surgiu assim de forma natural. Havia uma
dificuldade maior, devo reconhecê-lo. Logo a seguir a Camões, Gil Vicente é,
ainda hoje, o autor que mais bibliografia crítica inspirou: em Portugal
sobretudo; mas também em Espanha, Brasil, França, Reino Unido e Estados Unidos.
Dizer alguma coisa de novo (e a inovação é necessária quando se trata de
investigação académica) implicava, pois, um longo e cuidado exame do que se
tinha já escrito. Em contraponto, havia e há um estímulo muito forte. A obra de
Gil Vicente é vastíssima e diversa. Nessa medida, o seu estudo nunca pode
dar-se por terminado. As perguntas que hoje temos para fazer à Compilação são novas porque, em boa
parte, a nossa curiosidade se renova em cada época.”.
Revelou ter coordenado, em parceria com José Camões, “excelente vicentista
e responsável pela melhor e mais recente edição da obra completa do
dramaturgo”, um Compêndio de Gil Vicente, que deverá ser publicado ainda este
ano: “uma obra extensa e abrangente, que conta com a participação de cerca de
duas dezenas de investigadores de diferentes nacionalidades. E disse que os
dois tencionam publicar, em 2019, uma edição conjunta das três Barcas, como
“excelente forma de assinalar os cinco séculos de representação desse conjunto
peças, que Gil Vicente fez representar sequencialmente na corte de Dom Manuel,
entre 1517 e 1519”.
***
Interpelado sobre o aspeto da obra vicentina em
que mais se nota a falta de estudos, diz:
“A obra de Gil Vicente nunca pode
ser dada por satisfatoriamente estudada. Durante muitos anos, predominou
largamente a perspetiva literária. Só muito recentemente os estudos teatrais
começaram a aproximar-se do autor. São ainda muito incipientes os estudos de
que dispomos sobre a vertente cénica e performativa que pode ser reconstituída
a partir dos textos e de outros elementos de pesquisa. Mas também se sente a
falta de estudos em domínios específicos como a afinidade de Gil Vicente com a
tradição do teatro europeu, a substância teológica que se reveste de
importância tão marcante nas moralidades, por exemplo.”.
E à questão se é lícito considerar Gil Vicente um
autor genuinamente português ou se será acima de tudo ibérico, replica com
segurança que o dramaturgo “é um escritor e um homem de teatro português”. Todavia, entende que “esta
caraterização não deve ser entendida em sentido restrito” já que “ele é também
um grande intérprete da tradição lírica e teatral da Península Ibérica, estando
mesmo, de algum modo, na génese da fantástica produção que assinala o teatro
barroco espanhol (Lope de Vega e Calderón de la
Barca)”. E mais: “Gil
Vicente é, por direito próprio, um nome destacado da história do teatro ocidental”,
pois que se situa “na linha dos modelos medievais e é, nesse plano, o
dramaturgo mais coeso que essa tradição produziu”.
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Por fim, tem opinião sobre o que poderia ser
feito para que a obra de Gil Vicente chegasse a ainda mais leitores.
Nesta ordem de ideias, distingue três necessidades: “o ensino, as edições e
os palcos”. No âmbito do ensino, considera “necessário rever a forma como Gil
Vicente é apresentado aos alunos do 9.º ano, pondo em primeiro plano a promoção
da “criatividade fundamentada”, até porque já “existem boas práticas a este
respeito, mas não existe maneira fácil de as divulgar”. Depois, vem “a
necessidade de editar Gil Vicente de forma sistemática, rigorosa e acessível (com textos bem fixados e bem anotados, sobretudo)”, como “sucede em Espanha, a
propósito de autores de grandeza equivalente”. Por fim (mas não menos importante), “é necessário assegurar a presença assídua de Gil Vicente nos palcos
portugueses, em registo de qualidade artística”.
É certo que se trata de “empreendimentos não lucrativos”, mas entende que “o
Estado existe também para zelar pelo nosso património, permitindo que ele
permaneça vivo e possa ser dado a conhecer às diferentes gerações”.
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Complementarmente
e porque Cardoso Bernardes não se refere a este tipo de produção brasileira sobre
o dramaturgo, refiro o conjunto de obras editadas e comentadas por Noêmio
Ramos, que, além da análise e da crítica interna, dão a perspetiva da
interligação de Gil Vicente com autores e outros homens de relevo, seus
contemporâneos, e com célebres pensadores da Antiguidade: Gil Vicente – O Velho da Horta (motivações
ideológicas das obras de Erasmo presentes neste e em outros Autos); Gil Vicente – Auto da Visitação (com a apresentação das
metodologias de análise das Obras de Gil Vicente e dos usos e costumes ligados ao
tema); Auto da Alma, Erasmo, o
Enriquirídion e Júlio II (com a
interpenetração com os pensadores e líderes da Europa de então); Gil Vicente – Carta de Santarém, 1531 (com o significado, intenções e motivações do texto,
relação com outros autos e ligação com as políticas europeias); e Gil Vicente e Platão – Arte e Dialéctica
(com a dialética e o conceito de Arte e de Belo em Platão e a
Arte Dramática de Gil Vicente).
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E, sim,
temos no dramaturgo um homem bem mais erudito e culto do que os autos deixam
transparecer. Vale a pena voltar a Gil Vicente, para fruição e conhecimento.
2018.01.15 –
Louro de Carvalho
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