Esta é uma hipótese em que não tinha pensado. No
entanto, um texto de hoje de Margarida Peixoto e de Mónica Silvares no ECO explica a razão de ser desta hipótese.
É que o possível
investimento da Santa Casa no Montepio, pelo menos, levanta dúvidas no âmbito das
regras das ajudas de Estado, dado que a SCML é entidade tutelada pelo Estado, integrando
o perímetro das Administrações Públicas e gerindo dinheiro de um exclusivo
legal – os jogos sociais.
Neste
momento, a hipótese de a SCML entrar no capital do Montepio até ao limite de
10% (assumindo que o
banco vale cerca de dois milhões de euros) está a ser estudada pelo Haitong e pelos auditores da Santa
Casa. E, depois de o Provedor ter sido ouvido no Parlamento sobre estas
questões, foi hoje a vez de o Ministro
do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, Vieira da Silva, que tutela a Santa Casa, ir
dar explicações aos deputados.
Falta ainda
ouvir o governador do Banco de Portugal (BdP),
o que irá acontecer a requerimento do CDS/PP. Com efeito, o governante
confirmou que a questão das ajudas de Estado se pode colocar, mas remeteu o
assunto para o Banco de Portugal.
Sendo
assim, a decisão da participação no capital do Montepio pode não depender apenas
da provedoria da Santa Casa e do Governo. Poderá efetivamente Bruxelas ter uma palavra a dizer.
***
As dúvidas
foram levantadas por especialistas. A este respeito, Miguel Moura e Silva, professor
da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, especializado em Direito da
Concorrência e da União Europeia, disse ao ECO:
“As
receitas da Santa Casa são provenientes de um exclusivo legal. Portugal
atribuiu o exclusivo com o pressuposto de aplicar as receitas nas atividades
com fins sociais da Santa Casa.”.
Por
isso, conclui:
“Podemos argumentar que os recursos da
Santa Casa são recursos públicos porque são receitas de que dispõe por ter
proteção legal e
que lhe são atribuídos para o desempenho de funções de natureza pública”.
E,
além disso, acrescenta:
“Estamos
também perante uma entidade com tutela estatal, em que há o poder, nem que seja por omissão, de dar orientações, por
ação ou por omissão, à atuação da Santa Casa e à entrada no banco”.
Porém,
adverte:
“Perante isto,
estamos numa área em que a dúvida sobre se é uma ajuda de Estado é uma dúvida
fundada. Não estou a dizer que seja uma ajuda de Estado, mas a
questão coloca-se.”.
Também
uma fonte, não identificada, conhecedora dos processos em Bruxelas e que esteve
à frente de uma instituição nacional, corroborou ao ECO que “a injeção pode ser considerada uma ajuda de
Estado”, porque “a
natureza jurídica da SCML, a origem dos seus recursos financeiros e a sua
atividade determinam que a participação tenha de ser avaliada à luz da concorrência
e ajudas de Estado”. É certo que até agora “a questão nunca se colocou,
porque a SCML tinha participações financeiras”, mas “não uma participação no
capital social”. E acrescenta que “as que tinha eram anteriores a 1986,
nomeadamente na Caixa Económica Açoriana, que faliu”.
A
questão de o investimento colidir com as regras comunitárias para a
concorrência fora, pelos vistos, já colocada pelo deputado Filipe Anacoreta
Correia, do CDS, ao Provedor da Santa Casa durante a sua audição no Parlamento. Mas Edmundo Martinho recusou
liminarmente a ideia, não se detendo em explicações.
Segundo
as regras comunitárias, os Estados-membros devem notificar a Comissão sempre
que estejam perante um caso de ajuda de Estado, cabendo a
Bruxelas estudar o dossiê e concluir se é de facto uma ajuda de Estado e, sendo.
Se pode cair dentro de alguma das exceções previstas.
Os critérios à luz dos quais se
determina se uma operação deve ser estudada no âmbito das regras da Concorrência
são basicamente quatro:
- Haver uma intervenção Estatal ou através de
recursos do Estado, podendo tomar uma variedade de formatos – por
exemplo, subsídios, alívio nos juros ou nos impostos, garantias, participação
estatal na totalidade ou em parte de uma empresa ou providência de bens e
serviços em termos preferenciais, etc.;
- A intervenção dar uma vantagem numa base seletiva,
por exemplo para empresas específicas ou setores específicos, ou empresas
localizadas em regiões específicas;
- Existir concorrência
distorcida;
- Suceder que a intervenção possa afetar o comércio entre
Estados-membros.
No
caso da Santa Casa, o primeiro critério levanta logo dúvidas. Conforme explicam
os especialistas, os recursos da Santa Casa podem ser considerados públicos.
Além disso, a Santa
Casa faz parte do perímetro das Administrações Públicas:
S.13113 – Administração Central – Instituições sem Fins
Lucrativos da Administração Central. É isto que consta da lista de entidades incluídas,
da responsabilidade do INE (Instituto
Nacional de Estatística), no Setor das Administrações Públicas (S.13 nos termos
do Código do Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais).
Se a
Comissão Europeia vier a concluir que este é um caso de ajuda de Estado, tem de avaliar se
pode cair dentro das exceções autorizadas. Primeiro, “há
que saber se um investidor, agindo em condições normais de uma
economia de mercado, face às possibilidades de rentabilidade
previsíveis, estaria disponível para fazer o mesmo investimento”, como explica
Miguel Moura e Silva, que defende ser aqui “duvidoso, porque esta solução
parece surgir precisamente porque o Estado não consegue encontrar um parceiro
privado para o Montepio”.
O
Provedor Edmundo Martinho disse que muitas instituições, quer misericórdias
quer mutualistas, estão só à espera da SCML para entrar também no capital do
banco, mas estes não são considerados investidores privados, pois, segundo o
especialista, “os seus incentivos estão distorcidos face ao investidor em
condições de mercado”.
Depois, há que “avaliar se essa ajuda de Estado
distorce a concorrência”. E o predito professor de direito
diz que se pode argumentar que sim, “tendo em conta que o Montepio é um banco
representativo no mercado e o investimento é significativo”. Por isso, na
sequência da investigação, Bruxelas pode limitar a dimensão do investimento ou
impor planos de reestruturação à entidade que recebe o capital.
Por enquanto, ninguém sabe dizer o
que pensa a Comissão Europeia sobre o caso, mas sabe-se que o Governo ainda não
notificou a Comissão.
Ora, se
o Executivo não notificar a Comissão (não se sabe se o fará), mas, se o caso for considerado pertinente, Bruxelas pode
iniciar um procedimento por si mesma, ou reagir a uma queixa.
***
Pessoalmente,
como já deixei entender noutras ocasiões, que a não entrada fosse decidida sem
o eventual látego de Bruxelas, até porque sinceramente nem me tinha apercebido
desta dificuldade adicional.
Porém, a
nebulosidade fica mais adensada quando se sabe que o banco não tem seguido as indicações
do BdP para separar a sua marca e denominação das da Associação Mutualista,
tendo o regulador dado recentemente um novo prazo para tal, até ao final do
trimestre.
Por outro
lado, aos balcões do banco continuam a vender-se produtos do banco e da associação
mutualista sem que se faça a distinção de origem perante os clientes.
De
acordo com o Jornal de Negócios (acesso pago),
o supervisor admite que
“Determinou à Caixa Económica Montepio Geral a apresentação de um plano
de ação que assegurasse a separação entre ambas as marcas, de modo a tornar
publicamente percetível, de forma clara e inequívoca, as diferenças entre as
duas instituições”.
Félix Morgado já apresentou um plano no
passado e progressivamente tem vindo a implementar medidas que visam responder
às recomendações do Banco de Portugal. Entre outras medidas, em cima da mesa
está a distinção das insígnias entre banco e dono – Montepio.
Ainda assim, continua a ser pouco
clara a distinção entre o que são os produtos mutualistas (que se referem ao acionista Associação
Mutualista) e os produtos bancários (da Caixa Económica), acabando por criar confusão junto dos clientes do banco.
A somar
a isto, dá-se o caso de a associação mutualista não ter facultado ao Haitong informação
sobre a Caixa Económica Montepio, pelo que ainda não se realizou a análise
aprofundada (due dilligence) ao banco no âmbito da avaliação
independente encomendada pela SCML.
Segundo
o Público (acesso pago),
o banco de investimento terá requerido à associação mutualista presidida por
Tomás Correia diversos dados financeiros relacionados com algumas operações do
Montepio para uma análise mais completa sobre a situação financeira do banco. O pedido foi recusado com o
argumento de que as contas de 2017 ainda não estão fechadas e porque a gestão
do banco liderada por Félix Morgado está de saída.
Adicionalmente,
a associação argumentou que a aquisição de 10% de uma empresa não tem de
implicar a realização de uma due dilligence, considerando-se que a informação que
se encontra hoje publicamente disponível é suficiente para fazer uma análise de
risco adequada.
Fonte oficial da Associação Mutualista “desmente categoricamente
quando se afirma que …não disponibilizou
informação sobre a CEMG…”, acrescentando que “não tem quaisquer comentários
adicionais a fazer” e “obrigando-se a respeitar escrupulosamente os acordos
contratuais de confidencialidade existentes entre as partes”. Mas a avaliação é
crucial para a possível entrada da SCML no capital do Montepio, até porque o
banco valerá menos do que aquilo que foi publicitado, embora se saiba que
passou nos testes de stresse feitos pelo BCE.
A supervisão da associação a cabe ao Ministério da Segurança
Social, a quem compete também supervisionar a sua atividade e produtos, mas que
não confere garantia de reembolso de capital, ao contrário dos produtos do
banco. Já o Banco de Portugal tem vindo a atuar junto do banco de forma a
“acautelar, de forma preventiva, o risco de uma perceção incorreta da natureza
dos produtos emitidos pela Associação Mutualista por parte dos clientes e do
público em geral”.
***
Face a
esta complexa situação, é de esperar pelo desfecho, a menos que as entidades implicadas
recuem. Entretanto, muita tinta (viva e/ou seca ) há de gastar-se e muita água
correrá sobre as pontes!
2018.01.17 –
Louro de Carvalho
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