quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Os mecanismos das nomeações presidenciais e de outros atos seus

A propósito das ainda recentes declarações da Ministra da Justiça sobre o mandato da Procuradora-Geral da República (PGR), disseram-se coisas interessantes, talvez com boa vontade, mas nem sempre a primar pela precisão.
Por exemplo, dizer que o Presidente tem a última palavra na decisão de nomear e exonerar o PGR é correto, mas resta saber que importância tem essa última palavra. Porém, dizer que Marcelo chamou o Governo à atenção ou que o repreendeu não faz sentido. O Presidente, em privado, pode dizer tudo o que entender ao Governo como qualquer cidadão, salvo o especial prestígio do Presidente, seja ele quem for. Resta é saber se o que o Chefe de Estado diz ao Governo, aliás ao Primeiro-Ministro, é vinculativo ou tem peso.
O Chefe de Estado tem poderes de iniciativa política e poderes de aceitação ou não do que lhe apresentam, mas dificilmente responde politicamente pelos seus atos, a não ser, por exemplo, que infrinja o preceito de se afastar do território sem a autorização parlamentar.
Há que distinguir o que significa um ato do Presidente motu proprio, um ato em que age sob autorização de outrem, um ato para o qual tem de ouvir um órgão ou uma entidade, um ato em que age sob proposta e um ato em que é chamado a agir para validar atos de outrem.
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Entre as iniciativas que o Chefe de Estado tem, contam-se: presidir ao Conselho de Estado; marcar, de harmonia com a respetiva lei eleitoral, o dia das eleições do Presidente da República, dos Deputados à Assembleia da República e dos deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas; convocar extraordinariamente a Assembleia da República; dirigir mensagens à Assembleia da República e às Assembleias Legislativas das regiões autónomas; nomear cinco membros do Conselho de Estado e dois vogais do Conselho Superior da Magistratura; presidir ao Conselho Superior de Defesa Nacional; exercer as funções de Comandante Supremo das Forças Armadas; pronunciar-se sobre todas as emergências graves para a vida da República; requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de normas constantes de leis, decretos-leis e convenções internacionais; requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de normas jurídicas, bem como a verificação de inconstitucionalidade por omissão; conferir condecorações, nos termos da lei; e exercer a função de grão-mestre das ordens honoríficas portuguesas.
Obviamente, que o Presidente pode ouvir sempre outras entidades para o desempenho destas funções, nomeadamente os partidos políticos, o Conselho de Estado e os chefes militares, consoante a natureza das intervenções. Porém, é livre de intervir por si próprio, mesmo que prescinda de ouvir quem quer que seja.
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Os atos para os quais o Presidente tem de ouvir outrem são: marcar as eleições dos Deputados ao Parlamento Europeu, de harmonia com a respetiva lei eleitoral, ouvido o Governo (segundo a respetiva lei eleitoral); dissolver a Assembleia da República, observados os limites temporais estipulados na Constituição, ouvidos os partidos nela representados e o Conselho de Estado; dissolver as Assembleias Legislativas das regiões autónomas, ouvidos o Conselho de Estado e os partidos nelas representados e observados os limites temporais estipulados na Constituição; nomear o Primeiro-Ministro, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais; demitir o Governo quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado; nomear e exonerar, ouvido o Governo, os Representantes da República para as regiões autónomas; nomear e exonerar, sob proposta do Governo, o Vice-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, quando exista, e os Chefes de Estado-Maior dos três ramos das Forças Armadas, ouvido, nestes dois últimos casos, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas; indultar e comutar penas, ouvido o Governo; declarar o estado de sítio ou o estado de emergência ouvido o Governo e sob autorização da Assembleia da República ou, quando esta não estiver reunida nem for possível a sua reunião imediata, da respetiva Comissão Permanente; e declarar a guerra em caso de agressão efetiva ou iminente e fazer a paz, sob proposta do Governo, ouvido o Conselho de Estado e mediante autorização da Assembleia da República, ou, quando esta não estiver reunida nem for possível a sua reunião imediata, da sua Comissão Permanente.
O facto de o Presidente ter de ouvir uma determinada entidade ou um determinado órgão não significa que tenha a obrigação de seguir o teor dessa audição.
Quanto à competência para indultar e comutar penas, diga-se que a audição ao Governo, além de política, é também de índole técnica, visto que o Presidente não tem obrigação de conhecer estes dossiês. Assim, o Governo, através do Ministro da Justiça, deve exibir um conjunto de casos sobre os quais possa recair de modo razoável a escolha presidencial, que deve solicitar o feedback.
Registe-se a existência de atos do Chefe de Estado que exigem a cooperação de duas entidades e, simultaneamente, com matizes diferentes: a nomeação e a exoneração do Vice-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e dos Chefes de Estado-Maior dos três ramos das Forças Armadas implicam uma proposta do Governo, que toma a iniciativa, e a audição do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, a quem é pedida opinião não vinculativa; a declaração do estado de sítio implica a audição ao Governo e a autorização do Parlamento; a declaração de guerra implica ouvir o Conselho de Estado e a autorização do Parlamento. Em relação a estes dois atos, nada se diz sobre de quem parte a iniciativa.
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Há competências presidenciais em relação às quais a iniciativa não pode ser do Presidente, Tais são: submeter a referendo questões de relevante interesse nacional mediante proposta da Assembleia da República ou do Governo, em matérias das respetivas competências, nos casos e termos previstos na Constituição e na lei; submeter a referendo a pergunta referente à instituição em concreto das regiões administrativas, mediante proposta da Assembleia da República; submeter a referendo, a título vinculativo, questões de relevante interesse específico regional, mediante proposta da Assembleia Legislativa da respetiva região autónoma; nomear e exonerar os membros do Governo, sob proposta do Primeiro-Ministro; nomear e exonerar, sob proposta do Governo, o Presidente do Tribunal de Contas e o Procurador-Geral da República; nomear e exonerar, sob proposta do Governo, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e o Vice-Chefe, quando exista, e os Chefes de Estado-Maior dos três ramos das Forças Armadas, ouvido, nestes dois últimos casos, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas; e nomear os embaixadores e os enviados extraordinários, sob proposta do Governo, e acreditar os representantes diplomáticos estrangeiros.
Trata-se de um conjunto de competências cuja palavra final cabe ao Chefe de Estado, mas em relação às quais não tem o poder de iniciativa. Pode ou não aceitar a indicação da entidade proponente, mas não lhe compete a iniciativa da indicação. Se concordar com a proposta, toma a decisão consequente; se não concordar, a entidade proponente fará outra proposta. É óbvio que pode tentar influenciar a proposta da entidade proponente, com êxito ou não, tudo dependendo da forma discreta como o faça e do nível de empatia existente entre quem propõe e aquele a quem se faz a proposta.
Sendo assim, não se pode dizer que incumba ao Presidente da República a escolha do Presidente do Tribunal de Contas, do Procurador-Geral da República, dos Ministros e Secretários de Estado, dos Chefes Militares, dos embaixadores e dos enviados extraordinários. A iniciativa compete ao Governo. É deste que deriva a confiança política para com aquelas personalidades. E é esquecendo isto que se dizem alguns disparates e parece o Presidente entrar abusivamente.
Enquadro neste âmbito, um ato que mais parece de cortesia, mas que, no entanto, pode implicar uma solidariedade e uma responsabilidade acrescida do Presidente: “presidir ao Conselho de Ministros, quando o Primeiro-Ministro lho solicitar”. E, aqui pergunto se parecerá decente, independentemente da situação do país, do tema ou da intenção do Chefe do Governo, o Presidente não responder a esta solicitação.
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E a CRP apresenta competências fundamentais em relação às quais não cabe ao Presidente a iniciativa, mas que, sem a sua aceitação expressa, os diplomas não têm existência jurídica, como também não a têm se lhes faltar a referenda ministerial: promulgar e mandar publicar as leis, os decretos-leis e os decretos regulamentares; assinar as resoluções da Assembleia da República que aprovem acordos internacionais e os restantes decretos do Governo; e ratificar os tratados internacionais, depois de devidamente aprovados.
Perante os normativos emitidos pela Assembleia da República ou pelo Governo, o Presidente toma as seguintes posições: submete-os ao Tribunal Constitucional para fiscalização preventiva da constitucionalidade, promulga-os e manda-os para referenda e publicação ou opõe-lhes o veto político (pode também utilizá-lo mesmo que o Tribunal Constitucional não encontre objeções atinentes à constitucionalidade). O veto político a um diploma do Parlamento deve ser justificado em mensagem dirigida à Assembleia da República. Porém, se os deputados confirmarem o teor do diploma, atentas as normas constitucionais, o Presidente será obrigado a promulgá-lo. Ademais, nem pode promulgar um diploma em que o Tribunal Constitucional encontre normas feridas de inconstitucionalidade, até que o órgão que o aprovou o expurgue de tais vícios, nem pode recusar a promulgação duma lei constitucional.
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Por fim e como decorre do exposto, mesmo no atinente àqueles atos em que o Presidente da República pode agir sem autorização, proposta ou audição de ninguém, não se vislumbra um de que se possa dizer que, neste ou naquele ponto, decidiu solitariamente, ao menos em razão do impacto que a sua decisão possa ter no devir ou no marasmo do Estado. Portanto, pouco vale pensar que, neste ou naquele aspeto, o Presidente tem a última palavra, pois esta, na maior parte dos casos, terá de ser um político “sim”. Resta-lhe a magistratura de influência, que se espera nunca venha a ser de interferência indevida; e a nós dar-lhe uns vivas de vez em quando.

2018.01.17 – Louro de Carvalho

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