Este é o
núcleo fundamental da pregação de Jesus Cristo que o Evangelho de Marcos nos
apresenta na perícopa assumida para o III domingo do Tempo Comum (Mc 1,14-20).
Surge logo no
primeiro capítulo do “Evangelho de Jesus Cristo,
Filho de Deus”, após o precursor (“depois de João ter sido preso” – 1,14) haver terminado a
sua missão de vir à frente do Senhor como seu mensageiro a exortar ao
arrependimento e a preparar o caminho de Cristo.
Constitui o eco, o aperfeiçoamento e o reforço do pregão de Jonas (Jn 3,1-5.10): “Dentro de quarenta dias Nínive
será destruída”. Com efeito, aquele povo tinha enveredado, com o pecado
pessoal e as estruturas sociais de pecado, pelo caminho da destruição, tinha
caído nas garras da morte. Tanto assim é que aquela cidade era imensamente
grande e “eram precisos três dias para a percorrer”. Não é a distância física
que é de considerar, mas a sua simbologia como cansaço, definhamento e morte. Aqueles
três dias são a figura antecipada do caminho de Cristo na sua passagem da morte
para a vida (“Ressuscitou
ao terceiro dia conforme as Escrituras”).
E a palavra do
Senhor foi dirigida a Jonas, pelos vistos, uma segunda vez, pois ele, à
primeira, tergiversou e não obedeceu. Mas, desta vez, Jonas levantou-se e foi a
Nínive. E, segundo a ordem do Senhor, lançou o pregão.
E os
ninivitas acreditaram em Deus, que “viu as suas
obras, como se convertiam do seu mau caminho; e, arrependendo-se do mal que tinha
resolvido fazer-lhes, não lho fez”.
Agora, no fim dos tempos, vem o Filho de Deus fazer a seguinte
proclamação: “Completou-se
o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai no Evangelho”.
Assim, hoje
os destinatários da mensagem deverão ter uma convicção, “completou-se o tempo e
o Reino de Deus está próximo”, e tomar duas atitudes: arrependimento e fé firme
no Evangelho.
Com efeito,
antes da receção do sacramento do Batismo, foi-nos exigida a renúncia ao pecado,
para vivermos na liberdade dos filhos de Deus; às seduções do mal, para que o
pecado não nos escravize; e a Satanás, autor do mal e pai da mentira. E, por
consequência, foi-nos pedido o ato de fé “em Deus, Pai todo-poderoso, criador
do céu e da terra”; “em Jesus Cristo, seu único Filho, Nosso Senhor, que nasceu
da Virgem Maria, padeceu e foi sepultado, ressuscitou dos mortos e está sentado
à direita do Pai”; e “no Espírito Santo, na santa Igreja católica, na comunhão
dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na vida
eterna”.
Quando, depois de a multidão ouvir o primeiro discurso de
Pedro no Dia de Pentecostes, perguntaram ao pregador o que haviam de fazer,
Pedro respondeu: “Convertei-vos e peça
cada um o batismo em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos seus pecados;
recebereis, então, o dom do Espírito Santo” (At
2,38).
E, no seu segundo discurso, depois de afirmar que “Deus
cumpriu o que antecipadamente anunciara pela boca de todos os profetas: que o
seu Messias havia de padecer” (At 3,18), exortou:
“Arrependei-vos, portanto, e convertei-vos,
para que os vossos pecados sejam apagados; e, assim, o Senhor vos conceda os
tempos de conforto, quando Ele enviar aquele que vos foi destinado, o Messias
Jesus, que deve permanecer no Céu até ao momento da restauração de todas as
coisas, de que Deus falou outrora pela boca dos seus santos profetas” (At
3,19-21).
Quando Jesus expirou, a maior parte dos discípulos tinha-O
abandonado, mas o centurião, perante os sinais que viu, acreditou confessando: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus”
(Mc 15,39).
Com esta afirmação de Jesus como Filho de Deus, no fim da
vida sua terrena, retoma-se o conteúdo da portada do “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”.
Porém, às primeiras informações de que o Senhor ressuscitara, os
discípulos não acreditavam. Foi preciso abrirem-se-lhes os olhos para
entenderem as Escrituras. Porém, “depois de Ele lhes ter falado, depois de lhes ter falado e ter sido
arrebatado ao Céu e se sentar à direita de Deus, eles, partindo, foram pregar
por toda a parte; e o Senhor cooperava com eles, confirmando a Palavra com os
sinais que a acompanhavam” (cf Mc 16,19-20).
Com efeito, “está escrito que o
Messias havia de sofrer e ressuscitar dentre os mortos, ao terceiro dia; que
havia de ser anunciada, em seu nome, a conversão para o perdão dos pecados a
todos os povos, começando por Jerusalém; e vós sois as testemunhas destas
coisas” (Lc
24,46-48).
***
É ao serviço deste dinamismo do Reino de Deus, para cuja entrada se
requerem o arrependimento e a fé na Boa Nova de Deus, que foram escolhidos os
primeiros discípulos (Mc 1,16-20; cf Mt 4,18-22; Lc 5,1-11; Jo 1,35-51):
“Passando ao longo do mar da Galileia, viu Simão e André, seu irmão, que
lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores. E disse-lhes Jesus: ‘Vinde
comigo e farei de vós pescadores de homens’. Deixando logo as redes,
seguiram-no. Um pouco adiante, viu Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão,
que estavam no barco a consertar as redes, e logo os chamou. E eles deixaram no
barco seu pai Zebedeu com os assalariados e partiram com Ele.”.
Importa
referir que, segundo João, o Batista estava com os seus discípulos e, ao ver
passar Jesus, que só conhecera aquando do Batismo de penitência que lhe
ministrou no Jordão, apontou-lho e disse: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! É
aquele de quem eu disse: ‘Depois de mim vem um homem que me passou à frente,
porque existia antes de mim’.” (Jo 1,29-30). E os discípulos de João seguiram Jesus.
Na verdade, há que atentar em que o pecado do mundo tem de
ser erradicado. E só um o pode fazer: o Cordeiro de Deus – puro e disponível
para fazer a vontade do Pai e dar a vida em resgate da multidão.
Chamar os discípulos para a pesca de homens significa vir a
atribuir-lhes a missão de tudo fazerem para livrar os filhos de Deus dispersos
nas ondas do mar da vida, tempestuoso e cheio de baixios e fazê-los entrar no
dinamismo do Reino de Deus e convocá-los para as exigências deste Reino:
arrependimento e fé firme no Evangelho.
Quando devem as pessoas aderir? Já! Não deixar para amanhã,
como diz o nosso Presidente da República a propósito dos consensos políticos sobre
matérias essenciais.
Com efeito, o tempo é breve, como diz Paulo na 1.ª Carta aos
Coríntios (1Cor 7,29-31): importa que
as pessoas, tendo efetivamente as coisas deste mundo, se comportem como se não
as tivesse. De facto, como se diz na Carta a Diagoneto, os cristãos vivem no
mundo, mas não são deste mundo; e Cristo pediu ao Pai, não que tirasse os
discípulos do mundo, mas que os livrasse do mal (cf
Jo 17,15).
***
E o que é o Reino de Deus? Jesus diz que o seu reino não é
deste mundo – se fora deste mundo, “os
meus guardas teriam lutado para que Eu não fosse entregue às autoridades
judaicas” (Jo 18,36) –, mas não diz
em que consiste em concreto e de forma unívoca. Diz-nos que é um reino de
Verdade – “Eu sou rei! Para isto nasci,
para isto vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que vive da
Verdade escuta a minha voz.” (Jo 18,37) – e apresenta-no-lo
através de muitas e diversas parábolas. É uma metáfora-eixo (consistente e complexa), que precisa de imagens, ou metáfora-raiz, solidamente
alicerçada na experiência. Será uma postura política no contexto da ocupação de
Roma? Ou distingue-se pela sua dimensão apolítica? Ou será apenas um símbolo?
Parece que se trata dum conceito simultaneamente portador
duma dimensão estática (neste sentido, deve
chamar-se “reino”), para onde vale a pena caminhar e a que interessa aderir, e
duma dimensão dinâmica (neste sentido, deve
chamar-se “reinado”), crescendo sempre, embora, umas vezes, de forma arrebatada
e arrebatadora e, outras, de forma lenta e progressiva, com a paciência de Deus.
Tem um sentido sapiencial, em que acima do “poder” está a
prudência, o serviço e a fruição. Na sua vertente dinâmica, o reino de Deus é
tanto um projeto em curso como uma realidade já concluída, um reinado em que se
pode entrar ou ficar à margem.
Trata-se de um conceito original e inovador de Jesus, mas
baseado numa expressão tradicional que lhe dá lastro para a comunicação duma
verdade nova, intuída e transformadora, desenvolvida no pós-exílio como
esperança de salvação ou boa notícia.
No século I, os judeus esperavam a libertação do jugo romano
estribados na tradição da aliança ena tradição profético-sapiencial da Basileia tou Theou, ora “entrelaçadas e
integradas”. Assim, a metáfora do Reino (Reinado) de Deus
sintetiza imagens tradicionais muito fortes e remete para processos de
reinvenção das grandes metáforas e símbolos da humanidade.
Porque se trata de metáfora-raiz, tem um sentido impreciso e
passível de interpretação plural. Tanto assim é que o Reino se exprime numa
enorme multiplicidade de parábolas (semente,
grão de mostarda, fermento, vinha, banquete, virgens, dracma, ovelha perdida,
feitor infiel, pai com dois filhos – o mais novo e o mais velho –, vinhateiros,
talentos…).
É, pois, “um conceito aberto, associado a diversas tradições
teológicas da Bíblia hebraica e do contexto judaico e greco-romano do século I
da nossa era, de caráter inclusivo e integrador das múltiplas diferenças” (vd Mercedes Navarro Puerto, “Alargar o Pacto: raízes e
fundamento igualitários no movimento de Jesus”, in Pikaza, X e Silva, J. O Pacto das Catacumbas – a missão dos pobres
na Igreja, Paulus, 2015).
Em suma, este Reino há de congregar na unidade os filhos de
Deus que andavam dispersos. Por essa causa Cristo morreu (cf Jo 11,52) e pediu “que todos sejam um” (Jo 17,21). E Paulo compreendeu esta unidade na diversidade:
“Pois, como o corpo é um só e tem muitos
membros, e todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, constituem um só
corpo, assim também Cristo. De facto, num só Espírito, fomos todos batizados
para formar um só corpo, judeus e gregos, escravos ou livres, e todos bebemos
de um só Espírito.” (1Cor 12,12-13).
E em torno do senhorio de Cristo, diz:
“É que todos vós sois filhos de Deus em
Cristo Jesus, mediante a fé; pois todos os que fostes batizados em Cristo,
revestistes-vos de Cristo mediante a fé. Não há judeu nem grego; não há escravo
nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus. E,
se sois de Cristo, sois então descendência de Abraão, herdeiros segundo a
promessa.” (Gl 3,26-29).
***
Todavia, mais que esquadrinhar o conceito de Reino ou
Reinado, importa atender ao fundamental: saber que o tempo chegou ao fim, o
Reino está próximo, impõe-se o arrependimento e a fé na Boa Nova do Filho de
Deus. E importa que muitos respondam ao chamamento ao discipulado e se
comprometam sério com o apostolado no dinamismo de missionação duma Igreja em
saída, não autorreferencial, mas ao serviço do Reino.
2018.01.21
– Louro de Carvalho
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