domingo, 21 de janeiro de 2018

O Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai no Evangelho

Este é o núcleo fundamental da pregação de Jesus Cristo que o Evangelho de Marcos nos apresenta na perícopa assumida para o III domingo do Tempo Comum (Mc 1,14-20).
Surge logo no primeiro capítulo do “Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”, após o precursor (depois de João ter sido preso” – 1,14) haver terminado a sua missão de vir à frente do Senhor como seu mensageiro a exortar ao arrependimento e a preparar o caminho de Cristo.
Constitui o eco, o aperfeiçoamento e o reforço do pregão de Jonas (Jn 3,1-5.10): “Dentro de quarenta dias Nínive será destruída”. Com efeito, aquele povo tinha enveredado, com o pecado pessoal e as estruturas sociais de pecado, pelo caminho da destruição, tinha caído nas garras da morte. Tanto assim é que aquela cidade era imensamente grande e “eram precisos três dias para a percorrer”. Não é a distância física que é de considerar, mas a sua simbologia como cansaço, definhamento e morte. Aqueles três dias são a figura antecipada do caminho de Cristo na sua passagem da morte para a vida (“Ressuscitou ao terceiro dia conforme as Escrituras”).
E a palavra do Senhor foi dirigida a Jonas, pelos vistos, uma se­gun­da vez, pois ele, à primeira, tergiversou e não obedeceu. Mas, desta vez, Jonas levantou-se e foi a Nínive. E, segundo a ordem do Senhor, lançou o pregão.
E os ninivitas acreditaram em Deus, que “viu as suas obras, como se convertiam do seu mau caminho; e, arrependendo-se do mal que tinha resolvido fazer-lhes, não lho fez”.
Agora, no fim dos tempos, vem o Filho de Deus fazer a seguinte proclamação: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai no Evangelho”.
Assim, hoje os destinatários da mensagem deverão ter uma convicção, “completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo”, e tomar duas atitudes: arrependimento e fé firme no Evangelho.
Com efeito, antes da receção do sacramento do Batismo, foi-nos exigida a renúncia ao pecado, para vivermos na liberdade dos filhos de Deus; às seduções do mal, para que o pecado não nos escravize; e a Satanás, autor do mal e pai da mentira. E, por consequência, foi-nos pedido o ato de fé “em Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra”; “em Jesus Cristo, seu único Filho, Nosso Senhor, que nasceu da Virgem Maria, padeceu e foi sepultado, ressuscitou dos mortos e está sentado à direita do Pai”; e “no Espírito Santo, na santa Igreja católica, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na vida eterna”.
Quando, depois de a multidão ouvir o primeiro discurso de Pedro no Dia de Pentecostes, perguntaram ao pregador o que haviam de fazer, Pedro respondeu: “Convertei-vos e peça cada um o batismo em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos seus pecados; recebereis, então, o dom do Espírito Santo” (At 2,38).
E, no seu segundo discurso, depois de afirmar que “Deus cumpriu o que antecipadamente anunciara pela boca de todos os profetas: que o seu Messias havia de padecer” (At 3,18), exortou:
Arrependei-vos, portanto, e convertei-vos, para que os vossos pecados sejam apagados; e, assim, o Senhor vos conceda os tempos de conforto, quando Ele enviar aquele que vos foi destinado, o Messias Jesus, que deve permanecer no Céu até ao momento da restauração de todas as coisas, de que Deus falou outrora pela boca dos seus santos profetas” (At 3,19-21).
Quando Jesus expirou, a maior parte dos discípulos tinha-O abandonado, mas o centurião, perante os sinais que viu, acreditou confessando: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus” (Mc 15,39).
Com esta afirmação de Jesus como Filho de Deus, no fim da vida sua terrena, retoma-se o conteúdo da portada do “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”.
Porém, às primeiras informações de que o Senhor ressuscitara, os discípulos não acreditavam. Foi preciso abrirem-se-lhes os olhos para entenderem as Escrituras. Porém, “depois de Ele lhes ter falado, depois de lhes ter falado e ter sido arrebatado ao Céu e se sentar à direita de Deus, eles, partindo, foram pregar por toda a parte; e o Senhor cooperava com eles, confirmando a Palavra com os sinais que a acompanhavam” (cf Mc 16,19-20). Com efeito, “está escrito que o Messias havia de sofrer e ressuscitar dentre os mortos, ao terceiro dia; que havia de ser anunciada, em seu nome, a conversão para o perdão dos pecados a todos os povos, começando por Jerusalém; e vós sois as testemunhas destas coisas” (Lc 24,46-48).
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É ao serviço deste dinamismo do Reino de Deus, para cuja entrada se requerem o arrependimento e a fé na Boa Nova de Deus, que foram escolhidos os primeiros discípulos (Mc 1,16-20; cf Mt 4,18-22; Lc 5,1-11; Jo 1,35-51):
Passando ao longo do mar da Galileia, viu Simão e André, seu irmão, que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores. E disse-lhes Jesus: ‘Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens’. Deixando logo as redes, seguiram-no. Um pouco adiante, viu Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão, que estavam no barco a consertar as redes, e logo os chamou. E eles deixaram no barco seu pai Zebedeu com os assalariados e partiram com Ele.”.
Importa referir que, segundo João, o Batista estava com os seus discípulos e, ao ver passar Jesus, que só conhecera aquando do Batismo de penitência que lhe ministrou no Jordão, apontou-lho e disse: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! É aquele de quem eu disse: ‘Depois de mim vem um homem que me passou à frente, porque existia antes de mim’.” (Jo 1,29-30). E os discípulos de João seguiram Jesus.
Na verdade, há que atentar em que o pecado do mundo tem de ser erradicado. E só um o pode fazer: o Cordeiro de Deus – puro e disponível para fazer a vontade do Pai e dar a vida em resgate da multidão.
Chamar os discípulos para a pesca de homens significa vir a atribuir-lhes a missão de tudo fazerem para livrar os filhos de Deus dispersos nas ondas do mar da vida, tempestuoso e cheio de baixios e fazê-los entrar no dinamismo do Reino de Deus e convocá-los para as exigências deste Reino: arrependimento e fé firme no Evangelho.
Quando devem as pessoas aderir? Já! Não deixar para amanhã, como diz o nosso Presidente da República a propósito dos consensos políticos sobre matérias essenciais.
Com efeito, o tempo é breve, como diz Paulo na 1.ª Carta aos Coríntios (1Cor 7,29-31): importa que as pessoas, tendo efetivamente as coisas deste mundo, se comportem como se não as tivesse. De facto, como se diz na Carta a Diagoneto, os cristãos vivem no mundo, mas não são deste mundo; e Cristo pediu ao Pai, não que tirasse os discípulos do mundo, mas que os livrasse do mal (cf Jo 17,15).
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E o que é o Reino de Deus? Jesus diz que o seu reino não é deste mundo – se fora deste mundo, “os meus guardas teriam lutado para que Eu não fosse entregue às autoridades judaicas” (Jo 18,36) –, mas não diz em que consiste em concreto e de forma unívoca. Diz-nos que é um reino de Verdade – “Eu sou rei! Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que vive da Verdade escuta a minha voz.” (Jo 18,37) – e apresenta-no-lo através de muitas e diversas parábolas. É uma metáfora-eixo (consistente e complexa), que precisa de imagens, ou metáfora-raiz, solidamente alicerçada na experiência. Será uma postura política no contexto da ocupação de Roma? Ou distingue-se pela sua dimensão apolítica? Ou será apenas um símbolo?
Parece que se trata dum conceito simultaneamente portador duma dimensão estática (neste sentido, deve chamar-se “reino”), para onde vale a pena caminhar e a que interessa aderir, e duma dimensão dinâmica (neste sentido, deve chamar-se “reinado”), crescendo sempre, embora, umas vezes, de forma arrebatada e arrebatadora e, outras, de forma lenta e progressiva, com a paciência de Deus.
Tem um sentido sapiencial, em que acima do “poder” está a prudência, o serviço e a fruição. Na sua vertente dinâmica, o reino de Deus é tanto um projeto em curso como uma realidade já concluída, um reinado em que se pode entrar ou ficar à margem.
Trata-se de um conceito original e inovador de Jesus, mas baseado numa expressão tradicional que lhe dá lastro para a comunicação duma verdade nova, intuída e transformadora, desenvolvida no pós-exílio como esperança de salvação ou boa notícia.
No século I, os judeus esperavam a libertação do jugo romano estribados na tradição da aliança ena tradição profético-sapiencial da Basileia tou Theou, ora “entrelaçadas e integradas”. Assim, a metáfora do Reino (Reinado) de Deus sintetiza imagens tradicionais muito fortes e remete para processos de reinvenção das grandes metáforas e símbolos da humanidade.
Porque se trata de metáfora-raiz, tem um sentido impreciso e passível de interpretação plural. Tanto assim é que o Reino se exprime numa enorme multiplicidade de parábolas (semente, grão de mostarda, fermento, vinha, banquete, virgens, dracma, ovelha perdida, feitor infiel, pai com dois filhos – o mais novo e o mais velho –, vinhateiros, talentos…).
É, pois, “um conceito aberto, associado a diversas tradições teológicas da Bíblia hebraica e do contexto judaico e greco-romano do século I da nossa era, de caráter inclusivo e integrador das múltiplas diferenças” (vd Mercedes Navarro Puerto, “Alargar o Pacto: raízes e fundamento igualitários no movimento de Jesus”, in Pikaza, X e Silva, J. O Pacto das Catacumbas – a missão dos pobres na Igreja, Paulus, 2015).
Em suma, este Reino há de congregar na unidade os filhos de Deus que andavam dispersos. Por essa causa Cristo morreu (cf Jo 11,52) e pediu “que todos sejam um” (Jo 17,21). E Paulo compreendeu esta unidade na diversidade:
Pois, como o corpo é um só e tem muitos membros, e todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, constituem um só corpo, assim também Cristo. De facto, num só Espírito, fomos todos batizados para formar um só corpo, judeus e gregos, escravos ou livres, e todos bebemos de um só Espírito.” (1Cor 12,12-13).
E em torno do senhorio de Cristo, diz:
É que todos vós sois filhos de Deus em Cristo Jesus, mediante a fé; pois todos os que fostes batizados em Cristo, revestistes-vos de Cristo mediante a fé. Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus. E, se sois de Cristo, sois então descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa.” (Gl 3,26-29).
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Todavia, mais que esquadrinhar o conceito de Reino ou Reinado, importa atender ao fundamental: saber que o tempo chegou ao fim, o Reino está próximo, impõe-se o arrependimento e a fé na Boa Nova do Filho de Deus. E importa que muitos respondam ao chamamento ao discipulado e se comprometam sério com o apostolado no dinamismo de missionação duma Igreja em saída, não autorreferencial, mas ao serviço do Reino.

2018.01.21 – Louro de Carvalho

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