quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Na dobra da mudança de ano…

Neste final de ano e início do novo, cumpre-me fazer uma breve referência à Caminhada de Advento-Natal/2015-2016, proposta pela diocese do Porto e que gravita em torno de dois enunciados evangélicos: Felizes os misericordiosos (Mt 5,7) e Há mais alegria em dar (-se) (At 20,35).
A Caminhada foi objeto de um documento subscrito em 28 de outubro de 2015 pelo Bispo do Porto e respetivos bispos auxiliares à data (agora já Dom João Lavrador é bispo bispo coadjutor de Angra), em que referem, citando o Plano Diocesano de Pastoral para 2015-2020, querer “uma Igreja que faça experiência da misericórdia de Deus e que a traduza em toda a sua vida”. Para tanto pretendem “unir, congregar e mobilizar toda a comunidade diocesana, dando assim seguimento ao fortalecimento da pastoral da comunhão e ao caminho sinodal desejado para a Diocese. E acreditam que, especificamente, a Caminhada de Advento-Natal ajudará as famílias e as comunidades:
. Na descoberta da condição alegre e feliz da identidade cristã;
. Na edificação de uma Igreja decidida a construir a fraternidade, mediante a partilha de dons, com atenção privilegiada aos mais pobres e frágeis da sociedade;
. Na promoção duma educação ecológica, duma cultura de respeito pelos bens da Criação e duma vida sóbria e simples em cada pessoa, família e comunidade;
. Na tradução, em sentimentos, gestos e atitudes do “rosto” acolhedor e missionário da Igreja diocesana, Mãe de bondade, de ternura e de misericórdia, a exemplo da Mãe de Jesus.

Apelam os bispos que servem a comunidade diocesana portuense ao enchimento semanal do “cesto dos nossos dons”, de modo que eles “se transformem em cabaz de generosidade” ou “em manjedoura que acolhe e abriga a vida” e sobretudo “em sinal vivo da misericórdia e da salvação de Deus para todos”.
Advertem que esta Caminhada “não se destina apenas ao percurso catequético, aos grupos de jovens ou às celebrações dominicais, mas a toda a Comunidade e a cada Família”. Ou seja, “dirige-se a toda a Diocese e a cada um dos diocesanos”, devendo a todos “envolver, integrar, acolher e mobilizar”.
E declaram que esta Caminhada de Advento-Natal nos leva ao encontro de Cristo, a fim de que, “a partir deste encontro” – tal como sucedeu “com Maria e José, com os anjos de Deus, com os pastores, com os magos” e vem acontecendo, hoje como ao longo dos tempos, “com tantos discípulos missionários” – saibamos fazer da “Alegria do Evangelho a nossa missão” e proclamar com a palavra e as obras: “Felizes os misericordiosos!”.
***
Os bispos utilizam as palavras cabaz, cesto/cesta e manjedoura. Os executores diocesanos das orientações episcopais prestam-nos alguma informação sobre o significado natalício e vital de tais vocábulos, que apresento em síntese livre.
O cabaz, que a tradição acoplou ao Natal, é símbolo da partilha e da onda de solidariedade que a quadra natalina desperta em todos os homens e mulheres de boa vontade e que ganha um sentido de transcendência e proximidade com a virtualidade de que dispõem os crentes. Com efeito, todos os que lutam pela justiça – geradora de fraternidade, desenvolvimento e paz – têm de preconizar, agendar e praticar a solidariedade de modo que todos tenham o suficiente para viver com dignidade e o acesso a todos os meios de apoio à vida. Porém, os crentes têm o dever de envolver este esforço comum com a manta da caridade enquanto espelho efetivo do amor de Deus tornado amor do e ao próximo enquanto oportunidade de nos mostrarmos todos gratos para com o nosso Deus que para todos criou o mundo com os bens e deu aos homens a capacidade de o desenvolver e colocar ao serviço das pessoas.
***
Os autores passam do cabaz para o cesto (ou a cesta) que marca alguns episódios interessantes da Bíblia. Assim, “Moisés, filho de hebreus, o menino que chorava, é salvo das águas (Ex 2,1-10) pela filha do faraó” – o que nos transporta para o cesto como sinal de proteção e salvação.
Lembram também “o cesto em que os judeus colocavam as primícias dos frutos da terra, que ofereciam no altar ao Sumo Sacerdote” (Dt 26,1-10). Assim, o cesto surge como expressão da gratidão para com o Criador. E citando o salmista, assinalam o fim da opressão do povo no Egito sintetizado nesta afirmação: “aliviei os seus ombros do fardo, as suas mãos livraram-se de carregar o cesto” (Sl 81/80,7). Eis então o cesto como sinal da justiça e da libertação, operada por Deus na história.
Na profecia de Amós, aparece a “cesta de frutos maduros” (Am 8,1-2) a anunciar “o tempo maduro”, o tempo “para Deus intervir na história”. É “a voz do clamor do povo eleito que chega até Deus” (Ex 3,7).
Por sua vez, o profeta Jeremias, fala da cesta com figos bons e maus” fazendo dos “figos bons” a imagem do “resto de Israel”, daquele resto que se mantém na fidelidade à aliança, aliança em nome da qual qual “Deus atende misericordiosamente o seu Povo”.
O livro dos Atos dos Apóstolos, no Novo Testamento, apresenta-nos São Paulo “descido num cesto por uma janela ao longo da muralha” (At 9,25; cf 2Cor 11,33), a ser libertado da perseguição dos judeus, em Damasco, para prosseguir no anúncio do Evangelho.
***
Vendo no cabaz (cesta ou cesto) o símbolo da salvação – partilha e solidariedade, agradecimento, proteção, alívio, libertação – encontramos nele um instrumento pelo qual experimentamos a ação salvífica de Deus. E, esvaziando em prol dos outros o cabaz cheio de bons frutos, aproveitaremos o vazio para a disponibilidade de nos tornarmos a manjedoura que acolhe o misericordioso Cristo da História e o Cristo da Fé, com a obrigação alegre de acolher os irmãos, sobretudo os mais pobres, em quem se espelha o rosto de Cristo a implorar e a exigir a misericórdia solidária ou justiça solidária que, em nome de Deus clama pelos pobres.  
***
Para as semanas de cada domingo de Advento e para as semanas em que se celebra o Natal, a Sagrada Família e Santa Maria Mãe de Deus, a Epifania e o Batismo do Senhor, elegeu-se uma palavra-chave, a partir de uma referência bíblica assumida na Liturgia da Palavra, que se expressará com um gesto simbólico e proporá um desafio concreto. Assim, as palavras-chave escolhidas com os respetivos verbos de desafio são: caridade / dá; confiança / confia; bondade / sê bom; acolhimento / acolhe; alegria / alegra-te; família / agradece; presença / cuida; e porta / entra.
Os gestos alternam entre o encher o esvaziar o cabaz familiar ou de grupo e o cabaz paroquial, apresentar e adorar o Menino Jesus e visitar o batistério como que para atravessar a porta da misericórdia.
Quanto aos desafios, são propostas as várias ações de que se destacam as seguintes:
Ao nível do dar: abdicar de algo material e colocá-lo no cabaz; prestar atenção à família e aos que a rodeiam; e auxiliar aqueles que necessitam de ajuda nas pequenas tarefas do dia a dia.
Ao nível do confiar: dedicar algum do tempo à oração confiante; experimentar o conforto e o consolo de um Deus que confia em cada um de nós.
Ao nível do ser bom: disponibilizar-se para ajudar alguém; visitar, sozinho ou em família/grupo, um amigo, um vizinho, um doente, uma pessoa só.
Ao nível do acolher: telefonar/marcar um encontro com alguém que não se veja há muito tempo; procurar, dentro da comunidade, alguém que viva sozinho (ou não tenha família) para partilhar a Ceia de Natal.
Ao nível do alegrar-se: levar aos outros esta mensagem: “Deus ama-te, Cristo veio por ti. Para ti, Cristo é Caminho, Verdade, Vida”!
Ao nível do agradecer: partilhar com amigos e vizinhos uma foto de família, etc…
Ao nível do cuidar: ir ao encontro de alguém com quem nunca se teve coragem de dialogar; sair da “zona de conforto” e tornar-se presente daquele que aparentemente é mais frágil; rezar pelos irmãos perseguidos, refugiados, impedidos de adorar o Deus Menino em paz.
Ao nível do entrar: redescobrir o Batismo como porta de acesso à comunidade; assumir o compromisso no seio desta comunidade, como discípulo missionário; reler o Evangelho desta solenidade como uma mensagem pessoal de Deus para cada um de nós.
***
É uma caminha que faz a ponte entre o fim do ano de 2015 e os alvores do 2016. É a ponte da misericórdia, que desejamos que seja a ponte da justiça como valor supremo do direito ao serviço do homem todo e de todos os homens e como um dos inefáveis frutos do Espírito Santo.

2015.12.31- Louro de Carvalho

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Sobre o VIII Centenário da Magna Carta

Estava a ver que deixava terminar o ano de 2015 sem me referir ao VIII Centenário da Magna Carta, não só pela importância do texto em si como da mitificação que dele se fez e cujas repercussões influenciaram o devir dos povos.
Com efeito a Magna Carta vale menos pelo que sucedeu há 800 anos do que por aquilo que os séculos dela fizeram: um poderoso mito na longa história da limitação do poder absoluto dos monarcas e no caminho que permitiu abrir na rota da democracia representativa e da aposta na afirmação das liberdades individuais.
Assim, em vários países do mundo, com relevo para a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, se comemorou, a 15 de junho deste ano de 2015, o 8.º centenário da mítico-histórica Magna Carta.
Certamente que os seus subscritores de 15 de junho de 1215 devem ter dado inúmeras voltas e cambalhotas na tumba face à excecional notoriedade de que os vindouros revestiram o célebre escrito enquanto fonte de inspiração da democracia moderna.
***
Efetivamente, naquele dia do ano de 1215, os principais dignitários do clero e os barões ingleses impuseram a John Lackland (João sem Terra), ante a fragilidade do medíocre rei em consequência da sua derrota em Bouvines e das dificuldades que as relações com a Igreja lhe criaram, uma espécie de tratado que seria mais tarde designado por Magna Carta ou Grande Carta das Liberdades. É um complexo e desordenado documento de 63 artigos – redigido em latim, negociado e assinado na pradaria de Runnymede, junto ao rio Tamisa, perto de Windsor – em que alguns veem a mais remota origem do regime parlamentar. Foi originalmente designado como Carta de Runnymede, depois como Grande Carta e, no século XVII, foi-lhe atribuído o título, que perdura como designação consagrada, de Magna Carta.
***
João deve o cognome “sem Terra” ao facto de o pai não o haver dotado de terras por ocasião do nascimento. Tornado rei após a morte de três irmãos. Foi um soberano azarento e de má fama. Violento e sem escrúpulos, em breve entrou em desavenças com o alto clero e os barões. Apresentou oposição à eleição do novo arcebispo de Cantuária, Stephen Langton, que tradicionalmente ocupava o lugar de ministro principal do Reino. Recusou a arbitragem do Papa Inocêncio III e apoderou-se de terras do arcebispado. Inocêncio III, por sua vez, excomungou o rei, depois de ter ordenado como represália contra ele a paralisação da vida religiosa no país, com a proibição do toque de sinos e a celebração dos sacramentos e de outros ofícios religiosos.
Entretanto, o rei aliou-se ao conde de Flandres e ao imperador da Alemanha contra Filipe Augusto, rei de França. E, tendo ficado vencido, em 1214, na batalha de Bouvines, perdeu  a maioria dos domínios que tinha em França, designadamente o ducado da Normandia, de onde partira Guilherme, o Conquistador, para se apossar de Inglaterra. João voltou abalado pela pesada derrota e com a Coroa à beira da bancarrota. Furiosos com o comportamento régio, abusos continuados e novas subidas de impostos, que consideravam ilegítimos, para financiar as expedições militares, os barões ingleses revoltaram-se; e, em maio de 1215, sublevaram-se também os habitantes de Londres, que se uniram aos nobres e ao alto clero. Ao rei não restou outra alternativa que não a submissão.
***
Todavia, de acordo com Duroselle (1990), esta oposição ao poder real não é inédita nem tão singular como poderia parecer, como se explica a seguir.
A monarquia anglo-normanda, tornada angevina e aquitana, em razão das conquistas de Henrique II, o Plantageneta, em 1154, “terá sido o primeiro Estado verdadeiramente organizado na Europa” ou, se quisermos, o embrião ou ensaio do Estado moderno. No entanto, nessa monarquia, as comunas (forma de progresso irreversível na marcha para a autonomia das comunidades) encontravam-se mais submissas ao rei que em qualquer outro lado – situação que se iria modificar mercê da força tradicional dos governos locais autónomos que a descentralização da Grã-Bretanha foi estabelecendo.
Nos reinos escandinavos, os reis não decidiam nada sem a aprovação de assembleias populares locais herdadas dos Vikings. Na Islândia e na Gronelândia, o governo era assegurado pela assembleia geral. Na Península Hispânica, as municipalidades autónomas dependiam dos reis, mas também aqui havia, há vários decénios, uma certa forma de parlamentarismo plasmada nas Cortes (as cortes de Leão surgiram em 1188), onde se reuniam os bispos, os nobres e os representantes das municipalidades autónomas, aliás numa certa evolução a partir das monarquias visigóticas em que o rei era eleito, embora vitaliciamente, e se apoiava nas decisões dos concílios visigóticos, enquanto assembleias nacionais mistas (políticas e religiosas).
***
Apesar de muitos historiadores sublinharem que o texto da Magna Carta não é radicalmente inovador, ele consagra um princípio fundamental hoje badalado aos quatro ventos: ninguém está acima da lei. No caso de João sem Terra, exigia-se fundamentalmente que as determinações reais não resultassem da vontade momentânea e caprichosa do soberano, mas baseadas em lei previamente elaborada, promulgada e dada a conhecer.
O arcebispo Langton apresentou na prática a John Lackland (João sem Terra) a “Carta das liberdades”, assinada já anteriormente por Henrique I (filho de Guilherme) após a sua coroação em 1100, em que garantia os direitos da nobreza e prometia “abolir todos os maus costumes pelos quais o Reino de Inglaterra era injustamente oprimido.” O texto de 1215 vem garantir expressamente os privilégios do clero, regulamentar os direitos de sucessão e herança da nobreza, conceder a liberdade de circulação aos negociantes e confirmar os privilégios das cidades, dos portos e de Londres em particular. Por outro lado, nenhum imposto poderia vir a ser decretado sem o consentimento do “conselho comum do reino”, composto pelos dignitários do clero e principais chefes da nobreza (é fundamentalmente este o dado mais parlamentarista da Carta de Runnymede) – disposição que, séculos depois, havia de ter explosiva ressonância na América.
A este respeito, Carpenter (2011) escreve: “Essencialmente, o que aconteceu em 1215 reside no facto de o reino se ter revoltado e dito ao rei que tinha de obedecer às suas próprias regras”. Ou seja, o rei ficou a saber que não está acima da lei e que, se o monarca violar a lei e as normas do reino ou se se recusar a fazer justiça, os súbditos têm o direito de se insurgir “até que os abusos tenham sido reparados”.
A Magna Carta, que não sai do quadro da ordem feudal e até a consolida, segundo alguns historiadores, não significa, de modo algum, o esboço de um projeto constitucional no sentido moderno dos termos. Servia, antes, os interesses de uma pequena minoria de poderosos. Todavia, o complexo das suas disposições viria ser usado contra o arbítrio real e contra a tirania em geral.
Outra das suas mais simbólicas disposições é o estabelecimento da proibição das detenções arbitrárias: em nome do princípio habeas corpus ad subiiciendum, o corpo de homem livre não será detido ou preso ou desapossado dos seus bens, declarado fora da lei, exilado ou executado, exceto por julgamento dos seus pares segundo as leis do país. É a disposição que antecipa a instituição da figura do habeas corpus Act, em 1679.
***
Negociada entre o rei e barões que falavam francês e redigida em latim, não se destinava ao povo, que falava inglês e era analfabeto. Porém, os bispos tinham imposto disposições de largo alcance, ainda hoje válidas, embora facilmente vilipendiadas O rei pretendia que o tratado ficasse em sigilo, mas o clero distribuiu cópias por todo o país. Traduzido em francês, e no fim do século XIII em inglês, tornou-se um texto público, que podia ser invocado e utilizado. Não obstante, a sua relevância não foi significativa nos tempos que se seguiram.
No fim da negociação, João sem Terra, que já não queria assinar o documento e sobreviveu apenas por um ano, terá perguntado aos inimigos porque é que com todas estas injustas extorsões não pediam o reino.
***
Ao longo do tempo, a Carta foi revista várias vezes e depois praticamente esquecida. Reemerge, porém, no século XVII, no quadro da luta do Parlamento contra o absolutista Carlos I, transformada numa das principais armas contra a monarquia. Constituirá a base da Petição de Direitos que o soberano será forçado assinar. Decapitado o rei, a Carta passou de moda na Inglaterra.
Viria a reviver nas colónias americanas como instrumento de luta contra a tirania e os abusos da Coroa e do Parlamento britânicos – reinterpretada e transformada em símbolo do império da lei – e serviria de texto inspirador da independência da América e do seu modelo de democracia. O primeiro Congresso Continental de 1774 reivindica o direito à rebelião através da Magna Carta.
***
O significado moderno da Magna Carta ultrapassa a sua história. O documento é reinventado e passa a ser o texto fundador do direito constitucional moderno, das liberdades individuais, do governo representativo, da separação dos poderes e da limitação das prerrogativas do Estado. Nesta perspetiva, será desviante olhar a Magna Carta no contexto da época em que foi redigida, dado que é mais relevante o papel revolucionário e institucional que veio a desempenhar. Com efeito, nenhum outro documento na História universal foi capaz de funcionar tantas vezes e em tantos lugares como paladino de um ideal e como tal objeto de celebração coletiva.
Cf:
- Afonso, A. Martins. Curso de História da Civilização Portuguesa. 6.ª ed. Porto: Porto Editora, s/d
- Carpenter, David. “Archbishop Langton and Magna Carta: his contribution, his douts and his hypocrisy”. In English Historical Review, CXXVI (2011), 1042-1065
- Duroselle, Jean-Baptiste. História da Europa. Lisboa: Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1990
- Fernandes, Jorge Almeida. “Magna Carta: Pouco interessa o que aconteceu em 1215”. In Público on line, de 15.06.2015


2015.12.30 – Louro de Carvalho

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O XLIX Dia Mundial da Paz sob o signo do Jubileu da Misericórdia

Depois, de enunciar a verdade de que “Deus não é indiferente; importa-Lhe a humanidade! Deus não a abandona!”, Francisco, na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2016 (a um de janeiro), assinada no passado dia 8 de dezembro, 50.º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II, inauguração do Jubileu Extraordinário da Misericórdia e Solenidade da Imaculada Conceição de Maria, confia as suas reflexões sobre a paz à intercessão da “Mãe solícita pelas necessidades da humanidade”. Ela nos obterá “de seu Filho Jesus, Príncipe da Paz, a satisfação das nossas súplicas e a bênção do nosso compromisso diário por um mundo fraterno e solidário”.
E, na linha do imperativo “vence a indiferença e conquista a paz”, o Papa acalenta a esperança de que o novo ano nos veja “firme e confiadamente empenhados” na realização da justiça e no trabalho pela paz, a qual é simultaneamente “dom de Deus e trabalho dos homens”.
***
Depois, passa em revista várias temáticas pertinentes: conservação das razões da esperança; formas de indiferença; ameaça à paz pela indiferença globalizada; conversão do coração pela passagem da indiferença à misericórdia; fomento da cultura de solidariedade e de misericórdia; e a paz enquanto fruto dessa cultura.
Conservar as razões da esperança. Apesar de o ano de 2015 ter sido caraterizado por guerras e atos terroristas, com as “trágicas consequências” de sequestro de pessoas, perseguições por motivos étnicos ou religiosos, prevaricações, a ponto de o cenário “assumir os contornos” de “terceira guerra mundial por pedaços”, vários acontecimentos impelem “a não perder a esperança na capacidade que o homem tem, com a graça de Deus, de superar o mal, não se rendendo à resignação nem à indiferença”. De entre tais acontecimentos, destaca-se a Cop21, na procura de “novos caminhos para enfrentar as alterações climáticas e salvaguardar o bem-estar da terra, a nossa casa comum” – a que se juntam: a Cimeira de Adis-Abeba, “para arrecadação de fundos destinados ao desenvolvimento sustentável do mundo”; e “a adoção, por parte das Nações Unidas, da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”.
A nível eclesial, salienta-se o cinquentenário da publicação de dois documentos do Vaticano II conexos com o sentido de diálogo e de solidariedade da Igreja com o mundo – a Nostra Aetate e a Gaudium et Spes, “expressões emblemáticas da nova relação de diálogo, solidariedade e convivência que a Igreja pretendia introduzir no interior da humanidade”.
Sendo variadas “as razões para crer na capacidade que a humanidade tem de agir, conjunta e solidariamente”, apostando na interligação e interdependência e prestando atenção aos membros mais frágeis e à salvaguarda do bem comum, emerge a atitude de solidária corresponsabilidade, que está na raiz da vocação fundamental do homem à fraternidade e à vida comum.
Formas de indiferença. Do cariz comportamental do indivíduo indiferente, a postura da indiferença passou à dimensão global, gerando o fenómeno da “globalização da indiferença”.
Pela indiferença para com Deus, de que deriva a indiferença para com o próximo e a criação, o homem, julgando-se o autor de si mesmo, da sua vida e da vida da sociedade, sente-se autossuficiente e visa, ocupando o lugar de Deus, prescindir d’Ele. Já a indiferença para com o próximo assume diferentes fisionomias. Há quem encare a boa informação disponível “de maneira entorpecida, quase numa condição de rendição”, sem envolvimento nos dramas da humanidade ou atribuindo aos outros as culpas de tudo o que se passa. Outros manifestam a sua indiferença na “falta de atenção à realidade circundante, especialmente a mais distante”. Nestes casos e noutros similares, a indiferença provoca o fechamento e o desinteresse, acabando por contribuir para a falta de paz com Deus, com o próximo e com a criação.
A paz ameaçada pela indiferença globalizada. A indiferença para com Deus ultrapassa a esfera do individuo e afeta a “esfera pública e social”. Com efeito, sem abertura ao transcendente, o homem torna-se presa do relativismo e tem dificuldade em agir de acordo com a justiça e em se comprometer pela paz. A nível individual e comunitário, a indiferença para com os demais – “filha da indiferença para com Deus” – gera inércia e apatia e alimenta a persistência de situações de injustiça e desequilíbrio social, de que resultam os conflitos ou o clima de descontentamento “que ameaça desembocar (…) em violências e insegurança”. E, quando atinge o nível institucional, a indiferença pelo outro, sua dignidade, seus direitos fundamentais e sua liberdade, a par da cultura orientada para o lucro e hedonismo, favorece e justifica ações e políticas ameaçadoras da paz. Por sua vez, “a indiferença pelo ambiente natural, favorecendo o desflorestamento, a poluição e as catástrofes naturais que desenraízam comunidades inteiras do seu ambiente de vida, constrangendo-as à precariedade e à insegurança”, cria novas pobrezas e situações de injustiça de consequências desastrosas “em termos de segurança e paz social”.
Da indiferença à misericórdia: a conversão do coração.  
A indiferença induziu Caim a dizer que não sabia o que acontecera ao irmão, assegurando que “não é o seu guardião”. É-lhe indiferente o irmão, a sua vida e destino, apesar de ambos estarem ligados pela origem comum. Ao invés, Deus não é indiferente: o sangue de Abel tem valor a seus olhos e dele pede contas a Caim. Deus revela-Se, pois, “desde o início da humanidade, como Aquele que se interessa pelo destino do homem”. Tanto assim é que, ao ver os filhos de Israel na escravidão do Egito, intervém junto de Moisés: “Eu vi a opressão do meu povo no Egito e ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores (…). Desci a fim de o libertar da mão dos egípcios e de o fazer subir desta terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel” (Ex 3,7-8). Deus, longe da indiferença, “observa, ouve, conhece, desce, liberta” – ou seja, delibera e age.
De igual modo, em seu Filho Jesus, “Deus desceu ao meio dos homens, encarnou e mostrou-Se solidário com a humanidade em tudo, exceto no pecado”. Jesus não se contentava em ensinar as multidões, mas preocupava-Se com elas, sobretudo quando as via famintas (cf Mc 6,34-44) ou sem trabalho (cf Mt 20,3). Na parábola do bom samaritano (cf Lc 10,29-37), censura a omissão de ajuda em necessidade urgente do semelhante e convida os ouvintes, e em especial os discípulos, a aprenderem a parar junto dos sofrimentos deste mundo para os aliviar, sem a procura de pretextos rituais e/ou ocupacionais.
A este respeito o Papa recorda que “a misericórdia é o coração de Deus”, pelo que “deve ser também o coração de todos aqueles que se reconhecem membros da única grande família dos seus filhos”. E, por conseguinte, “é determinante para a Igreja e para a credibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia”, na linguagem e nos gestos.
Fomento da cultura de solidariedade e misericórdia contra a indiferença. A solidariedade, configurando uma virtude moral e um comportamento social, que é fruto da conversão pessoal, “requer empenho por parte da multiplicidade de pessoas que detêm responsabilidades de caráter educativo e formativo”. Antes de mais, vêm as famílias, chamadas a uma missão educativa primária e imprescindível, as quais constituem “o primeiro lugar onde se vivem e transmitem os valores do amor e da fraternidade, da convivência e da partilha, da atenção e do cuidado pelo outro” e são “o espaço privilegiado para a transmissão da fé, a começar por aqueles primeiros gestos simples de devoção que as mães ensinam aos filhos”. Depois, vêm “os educadores e formadores, que têm a difícil tarefa de educar as crianças e os jovens, na escola ou nos vários centros de agregação infantil e juvenil”, que “devem estar cientes de que a sua responsabilidade envolve as dimensões moral, espiritual e social da pessoa”. E têm responsabilidades específicas também os agentes culturais e dos meios de comunicação social no atinente à educação e à formação, “especialmente na sociedade atual onde se vai difundindo cada vez mais o acesso a instrumentos de informação e comunicação” – pelo que devem, primeiro que tudo, “colocar-se ao serviço da verdade” e “vigiar por que seja sempre lícito, jurídica e moralmente, o modo como se obtêm e divulgam as informações”.
A paz, fruto da cultura de solidariedade, misericórdia e compaixão. Conscientes da ameaça da globalização da indiferença, não podemos deixar de reconhecer as “numerosas iniciativas e ações positivas que testemunham a compaixão, a misericórdia e a solidariedade de que o homem é capaz”. A título de exemplo, o Pontífice destaca:
- As “muitas organizações não-governamentais e grupos sociocaritativos, dentro da Igreja e fora dela, cujos membros, por ocasião de epidemias, calamidades ou conflitos armados, enfrentam fadigas e perigos para cuidar dos feridos e doentes e para sepultar os mortos”;
- As “pessoas e as associações que socorrem os emigrantes que atravessam desertos e sulcam mares à procura de melhores condições de vida”;
- Os “jornalistas e fotógrafos, que informam a opinião pública sobre as situações difíceis que interpelam as consciências”;
- Aqueles “que se comprometem na defesa dos direitos humanos, em particular os direitos das minorias étnicas e religiosas, dos povos indígenas, das mulheres e das crianças, e de quantos vivem em condições de maior vulnerabilidade”, entre os quais se contam “muitos sacerdotes e missionários que permanecem junto dos fiéis e os apoiam sem olhar a perigos e adversidades, em particular durante os conflitos armados”.
- As famílias que, “no meio de inúmeras dificuldades laborais e sociais, se esforçam concretamente, à custa de muitos sacrifícios, por educar os seus filhos a contracorrente nos valores da solidariedade, da compaixão e da fraternidade”; 
- As famílias, paróquias, comunidades religiosas, mosteiros e santuários “que abrem os seus corações e as suas casas a quem está necessitado, como os refugiados e os emigrantes”;
- Os “jovens que se unem para realizar projetos de solidariedade e todos aqueles que abrem as suas mãos para ajudar o próximo necessitado nas suas cidades, no seu país ou noutras regiões do mundo;
- E todos “aqueles que estão empenhados em ações deste género, mesmo sem gozar de publicidade: a sua fome e sede de justiça serão saciadas, a sua misericórdia far-lhes-á encontrar misericórdia e, como obreiros da paz, serão chamados filhos de Deus” (cf Mt 5,6-9).
***
Em suma:
No espírito do jubileu
O espírito do Jubileu levará cada um ao reconhecimento das manifestações da indiferença na sua vida e à adoção de um compromisso concreto para melhorar a sua realidade, “a começar pela própria família, a vizinhança ou o ambiente de trabalho”.
Por seu turno, os Estados são devedores de “gestos concretos, atos corajosos a bem das pessoas mais frágeis da sociedade”. Assim:
- Quanto aos reclusos, urge a adoção de medidas de melhoria da vida nas prisões, com maior atenção “aos que estão privados da liberdade à espera de julgamento” e com vista à “finalidade reabilitativa” da pena” e à inserção nas leis de penas alternativas ao encarceramento. Por outro lado, impõe-se a abolição da pena de morte e recomendam-se as amnistias possíveis.
- Em relação aos migrantes, o Papa convida os Estados a repensarem as leis sobre as migrações, com vista à hospitalidade, “no respeito pelos recíprocos deveres e responsabilidades”, e à integração dos migrantes. Nesta linha, dever-se-á prestar especial atenção às condições de concessão de residência aos migrantes, na convicção de que à clandestinidade vem inerente o risco da criminalidade.
- No atinente aos que sofrem pela falta de trabalho, terra e teto, “os líderes dos Estados” devem realizar “gestos concretos” em prol destes irmãos, de que ressalta “a criação de empregos dignos” para obviar à “chaga social do desemprego”, lesiva de “um grande número de famílias e de jovens” com gravíssimas consequências “no bom andamento da sociedade inteira”. Afeta gravemente “o sentido de dignidade e de esperança” a falta de trabalho, a qual só parcialmente é compensada pelos subsídios para os desempregados e suas famílias. Merecem atenção especial as mulheres – “ainda discriminadas, infelizmente, no campo laboral” – e algumas categorias de trabalhadores, em condições “precárias ou perigosas” e com salários não adequados “à importância da sua missão social”.
- No respeitante aos doentes, Francisco apela “à realização de ações eficazes” para a melhoria das suas condições de vida, “garantindo a todos o acesso aos cuidados sanitários e aos medicamentos indispensáveis para a vida”, incluindo o tratamento domiciliário.
- Quanto à atividade diplomática, os líderes dos Estados devem renovar as relações com os demais povos, facilitando a efetiva participação de todos no debate e decisão das grandes questões e gerando a inclusão na vida da comunidade internacional, “para que se realize a fraternidade também dentro da família das nações”. Neste sentido, o Papa formula um tríplice apelo:
. À abstenção “de arrastar os outros povos para conflitos ou guerras que destroem não só as suas riquezas materiais, culturais e sociais, mas também a sua integridade moral e espiritual”;
. Ao cancelamento ou gestão sustentável da dívida internacional dos Estados mais pobres; e
. À adoção de políticas de cooperação que, em vez da submissão à ditadura dalgumas ideologias, sejam respeitadoras dos valores das populações locais e, de maneira nenhuma, lesem o direito fundamental e inalienável dos nascituros à vida.

2015.12.29 – Louro de Carvalho

Peregrinação: perda e/ou encontro

Não é a primeira vez que abordamos o tema da peregrinação. E, à primeira vista, nem parece um tema muito adequado ao tempo de Natal. No entanto, a Papa Francisco, na sua homilia da festa da Sagrada Família, este ano a 27 de dezembro, salienta a dimensão familiar da peregrinação. E, se muitos aproveitam a época para viagens de férias, diversão, turismo e negócios, muitos demandam a casa de família e os centros de espiritualidade pessoal e de celebração comunitária. E muitos e muitas se beiram do presépio de Belém ou com referência a Belém.
Peregrinar ("peregrinare", de pero+ager) é caminhar pelo campo, ir ao longe, ao estrangeiro. E a peregrinação é assumida como metáfora da vida do homem sobre a terra. Aquilino Ribeiro considerava a sua vida, feita de uma boa carrada de anos, como a sua peregrinação a Compostela.
Quer o homem detenha ou não o estatuto de peregrino, a sua vida em trânsito no mundo é feita de pequenas caminhadas: de casa para o trabalho, para a escola, para o templo, para o estádio, para o estabelecimento comercial, para o clube, etc. E registam-se também as caminhadas imateriais: pela história, pela cultura, pela literatura, pela política, pelo mundo do pensamento, pelo santuário da consciência…
Porém, desde tempos imemoriais, a peregrinação, ao mesmo tempo que evoca as romagens ou as deambulações com sentido ou à toa, assume um sentido religioso. E o Papa argentino, com o lançamento do ano jubilar da Misericórdia, propõe um conjunto coerente de peregrinações de purificação pessoal e de celebração comunitária que a abertura das diversas “portas santas” inaugurou em Roma, nas diversas cidades episcopais do mundo e em muitíssimos santuários.
Pretende-se o empenhamento pessoal na marcha ao encontro do pai misericordioso, mas também a atenção a algum momento em que Ele nos queira surpreender vindo como peregrino ao nosso encontro para fazer em nós a sua morada. E, às vezes, a marcha ao encontro do rosto misericordioso de Cristo, espelho da misericórdia do Pai, concretiza-se, não tanto na corrida para o templo físico, mas para o santuário do coração dos irmãos que precisam e onde lateja o sangue do Cristo sofredor e indigente a clamar por atenção e justiça. De igual modo, não teremos que estar à espera de uma qualquer teofania extraordinária, mas atender o Cristo na pessoa daquele ou daquela que vem ao nosso encontro ou nos bate à porta a solicitar acolhimento e ajuda.
Mas não entremos em facilitismos de superfície. A marcha ao encontro de Cristo treina-se na rota do templo, não para ficarmos por lá, mas para irmos em missão pelo mundo dos pobres, dos que bradam aos céus por pão, justiça, dignidade e participação na vida comum. Essa marcha exercita-se a nível pessoal e comunitário, mesmo em multidão abraçando a fraternidade dos filhos em torno do Pai comum, dos que habitam a grande Casa de todos – a “ecoeclésia” da igualdade nas diferenças.
***
Entretanto, na recente Festa da Sagrada Família, Francisco destaca a dimensão familiar da peregrinação e da vida, apresentando um modelo de peregrinação de família à Casa de Deus. Do Antigo Testamento, menciona o caso de Elcana e Ana, que levam o filho Samuel ao templo de Silo e o consagram ao Senhor (cf 1Sm 1,20-22.24-28); do Novo Testamento, destaca o facto de José e Maria, levando consigo Jesus, de 12 anos de idade, irem como peregrinos a Jerusalém pela festa da Páscoa (cf Lc 2,41-52).
Não é a primeira vez que Maria e José levam Jesus ao Templo. Diz-nos o Evangelho de Lucas:
“Quando se cumpriu o tempo da sua purificação, segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém para o apresentarem ao Senhor, conforme está escrito na Lei do Senhor: Todo o primogénito varão será consagrado ao Senhor e para oferecerem em sacrifício, como se diz na Lei do Senhor, duas rolas ou duas pombas” (Lc 2,22-24).

Aí se deu um encontro. Simeão encontrou-se com o Messias menino e, tomando-o nos braços, confessou poder morrer em paz, porque seus olhos viram a Salvação de todos os povos. E Ana, filha de Fanuel, aparecendo nessa ocasião, pôs-se a louvar a Deus e a falar do Menino a todos os que esperavam a redenção. Contudo, Simeão também profetizou o desencontro, porque, se Ele era motivo de ressurgimento, também iria servir de pretexto para queda de muitos e uma espada de dor havia de trespassar o coração da Mãe. (cf Lc 2,29-38).
Já na peregrinação aos 12 anos de idade de Jesus, o evangelista salienta que Maria e José, ao chegarem a casa vindos da peregrinação do Templo, deram conta da perda do Menino. Não sabiam onde o tinham perdido. Pensando que ele viera com os outros meninos, procuraram-no. E, não o encontrando, voltaram a Jerusalém e encontraram-no no Templo entretido a responder às perguntas dos doutores da Lei e fazer-lhes perguntas a eles.
Quando Maria o interpela dando-lhe conta da sua aflição e da de José, o Menino releva a importância da sua ocupação nas coisas do Pai (uma resposta messiânica, embora não entendida como tal) – palavras que Maria guardava no coração. (cf Lc 2,41-50).
Daqui, a importância do Templo como espaço de ensino/aprendizagem! Mas Jesus não persistiu em permanecer indefinidamente no Templo. E o evangelista salienta a influência benéfica do Templo na vida familiar: “Voltou com eles para Nazaré e era-lhes submisso (…). E Jesus crescia em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens.” (Lc 2,51.52). O evangelista já referia algo parecido após a apresentação no Templo, chegados os dias da purificação: Entretanto, o menino crescia e robustecia-se, enchendo-se de sabedoria, e a graça de Deus estava com Ele” (Lc 2,40).
***
O Santo Padre, verificando que deparamos “com os peregrinos que vão a santuários e lugares queridos da devoção popular” e que, nestes dias, muitos “se puseram a caminho para penetrarem na Porta Santa” aberta em todas as catedrais do mundo e também em muitos santuários, acentua a peregrinação feita pela família inteira: “pai, mãe e filhos vão, todos juntos, à casa do Senhor a fim de santificarem a festa pela oração”. E julga que a peregrinação de Elcana e Ana, com Samuel, e a de José e Maria, com Jesus, constituem “uma lição importante oferecida também às nossas famílias”. Depois, avança para a dimensão da vida da família como “um conjunto de pequenas e grandes peregrinações”. Assim, refere:
- “Maria e José ensinaram Jesus a rezar as orações” – a peregrinação da educação para a oração.
– “Durante o dia, rezavam juntos”.
- “Ao sábado, iam juntos à sinagoga ouvir as Sagradas Escrituras da Lei e dos Profetas e louvar o Senhor com todo o povo”.
- “Certamente rezaram, durante a peregrinação para Jerusalém, cantando estas palavras do Salmo: “Que alegria, quando me disseram: Vamos para a casa do Senhor! Os nossos passos detêm-se às tuas portas, ó Jerusalém” (122/121,1-2) – o cântico típico das peregrinações hebraicas.
A partir da lição da família de Nazaré, o Pontífice releva a importância de os membros das nossas famílias “caminharem juntos e terem a mesma meta em vista”. Neste “percurso comum”, que é “uma estrada onde encontramos dificuldades” e “momentos de alegria e consolação”, devemos partilhar também “os momentos da oração”. E os pais devem “abençoar os seus filhos ao início do dia e na sua conclusão”. 
A este respeito, o Papa recorda o sentido inaugural de bênção do sinal da cruz feito na fronte do filho no dia do Batismo – gesto a replicar ao longo da vida como sinal de pertença ao Senhor e de confiança na sua proteção.
Depois, comentando o final da peregrinação da família de Nazaré quando Jesus tinha 12 anos, em que o evangelista afirma que “Jesus voltou para Nazaré e era submisso a seus pais” (cf Lc 2,51), Francisco ensina:
“Também esta imagem contém um ensinamento estupendo para as nossas famílias; é que a peregrinação não termina quando se alcança a meta do santuário, mas quando se volta para casa e se retoma a vida de todos os dias, fazendo valer os frutos espirituais da experiência vivida”.

Porém, anota que Jesus, “em vez de voltar para casa com os seus, ficou em Jerusalém no Templo, causando uma grande aflição a Maria e a José que não O encontravam”. E entende que, por este facto, Jesus terá pedido desculpa aos pais, embora o Evangelho o não explicite, já que na interpelação de Maria se percebe “uma repreensão, ressaltando a preocupação e angústia dela e de José”. E, apesar de, a meu ver, o Menino não desperdiçar o ensejo para abrir um pouco o véu do ser e da missão messiânica, voltou com eles para casa reforçando o valor da educação em família e, no dizer do Papa, “para lhes demonstrar toda a sua afeição e obediência”.
E sobre a peregrinação familiar Francisco diz que fazem parte dela “também estes momentos que, com o Senhor, se transformam em oportunidades de crescimento, em ocasiões de pedir e receber o perdão, de demonstrar amor e obediência”.
Finalmente, o Pontífice considera o Ano da Misericórdia uma peregrinação especial em que se perde a vida de pecado e se encontra e “experimenta a alegria do perdão”. E pretende que, nesta peregrinação, cada família cristã possa “tornar-se um lugar privilegiado” em que se vive o perdão como “a essência do amor, que sabe compreender o erro e pôr-lhe remédio”, já que “é no seio da família que as pessoas são educadas para o perdão, porque se tem a certeza de serem compreendidas e amparadas, não obstante os erros que se possam cometer”.
Apelando a que não se perca “a confiança na família” confia a todas as famílias “esta peregrinação doméstica de todos os dias, esta missão tão importante de que, hoje, o mundo e a Igreja têm mais necessidade do que nunca”.
***
Assim, por mais perdas que a peregrinação, sobretudo a peregrinação da vida, nos ocasione, maiores e melhores devem ser os pontos de encontro que nós dela poderemos haurir. Requer-se para isso atenção e disponibilidade. Por outro lado, a família – no seu sentir, decidir e caminhar em conjunto – pode constituir espaço privilegiado para a aprendizagem e para o exercício da sinodalidade a que é chamada a Igreja a ser e a exercitar.

2015.12.28 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Da debilidade do sistema financeiro ou dos interesses do centrão

Depois da nacionalização e venda do BPN, da chegada ao fim do BPP e da resolução do BES por motivo de exposição ao GES e não venda do Novo Banco, veio agora como envenenada prenda de Natal a morte do BANIF. Para trás ficou a recapitalização do BCP, que se sucedeu a casos de desmando (Quem não se lembra da era de Berardo e outros?), do BPI e da CGD. E, depois da injeção de 1100 milhões de euros no BANIF em princípios de 2013, que não comportou uma simples recapitalização, mas a participação do Estado em 60,5% do capital da instituição, o cidadão comum não esperava tal sorte. Mais uma pedrada no sistema financeiro de Portugal!
Mas o sistema financeiro não é estruturado por lei, de modo a garantir a formação, a captação e a segurança das poupanças, bem como a aplicação dos meios financeiros necessários ao desenvolvimento económico e social (CRP, art.º 101.º)? E a economia é simples penúria.
Com a crise financeira mundial, a Europa acocorou-se e, sobretudo, os países sulistas, no pressuposto de que estavam a viver acima das possibilidades, tiveram que pagar a insuficiência financeira dos senhores da Europa. E, para que os contribuintes de cada um dos países com sistema financeiro a rebentar – não de dinheiro, mas de ar – inventou-se o mito da dívida soberana. Assim, o Estado responde pela sua dívida, pela das empresas e sobretudo pela banca.
Os bancos portugueses até 2010 afoitaram os sucessivos governos de Portugal aos projetos de obras públicas de interesse nacional e europeu – TGV, novo aeroporto internacional de Lisboa, submarinos e autoestradas – ora denominados empreendimentos faraónicos. A partir, de 2011, a banca chegou-se atrás e, em certa medida, forçou a intervenção da troika: FMI, Eurogrupo e Comissão Europeia. Misturando dívida pública com dívida privada (sobretudo da banca), o país foi sujeito a um programa de ajustamento financeiro, com um adiantamento financeiro de 78 mil milhões de euros, que implicava reformas estruturais, cortes na despesa pública, no consumo e na propriedade e intervenção do Estado – em três anos. E foi tido como bom programa!
Praticamente deixou de fazer sentido falar de dívida pública. Já nem sei se faz sentido distinguirmos dívida externa de dívida interna. Perante o colapso do sistema financeiro, o Estado, aliás o contribuinte, paga e pronto!
Grécia, Irlanda e Portugal passaram pelo programa de resgate – que na Grécia triplicou, sem luz definitiva no fim do túnel. Espanha foi sujeita a um programa de ajustamento do lado da banca (e consequentemente do sistema financeiro), com um apoio troikano contabilizado em 100 mil milhões de euros. De Itália e França diz-se que houve procedimento parecido, mas que não deu nas vistas. Irlanda teve saída limpa com sistema financeiro mais robusto.
Portugal, alegadamente à semelhança da Irlanda, logrou uma saída limpa – que agora se sabe ser apenas pseudopoliticamente limpa. A troika, embora sempre a fazer advertências, cooperou ativamente no embuste. Foi-se embora em maio de 2014, mas em julho do mesmo ano eclodiu o conflito do BES com resolução em 3 de agosto; e, um ano e quadrimestre depois, vem o caso BANIF. Quer dizer, o PAF (programa de ajustamento financeiro) deixou o sistema financeiro com as mesmas debilidades que as de antes.  
E a troika disponibilizou para a banca portuguesa uma fatia de 12 mil milhões de euros, de que foi utilizada cerca de metade na capitalização da CGD, do BPI e do BCP, bem como na injeção de mais de mil milhões no BANIF. Pensava-se que os bancos tinham recuperado a sua adultez e se tornaram capazes de corresponder ao objetivo constitucional, mas estávamos enganados.
O BES não se candidatou à recapitalização pela via da troika. A sua autossuficiência serviu para disfarçar a sua exposição ao esburacado GES e o adiamento da solução do caso, imputado à desatenção do BdP, disfarçou politicamente a situação para propiciar a saída limpa do regime do PAF. A comissão Parlamentar de Inquérito pôs a nu os erros e crimes de gestão e latrocínio e as contradições e faltas de memória dos intervenientes. E emergiu, cresceu e teve voz o grupo dos lesados, sem solução plausível, a não ser com a sugestão de peditório subscrito pelo então generoso Primeiro-Ministro. Os bancos (incluindo o banco público) constituíram o fundo de resolução com contribuição imediata e com empréstimo do Estado. O banco bom, “Novo Banco”, tinha e terá de ser vendido; e o banco mau, o dos ativos tóxicos terá solução no desaparecimento. Vendeu-se a ideia de que os contribuintes não seriam prejudicados, quando o dinheiro da troika há de ser pago por nós, o dinheiro do banco público nosso era e o dos outros bancos era lucro de que não há impostos para o Estado. E se Sérgio Monteiro vender o Novo Banco por preço muito aquém do valor do banco?
E o BANIF? Que se passou? Que tipo de solução se encontrou? Porquê agora?
***
Dizem alguns que os problemas da banca portuguesa custaram ou vão custar cerca de 40 mil milhões de euros.
O caso das insuficiências do BANIF começou a ser badalado em finais de 2012, tendo sido introduzida a grande injeção de capital em janeiro de 2013. Passados uns meses da resolução do BES, a Comissão Europeia, melhor a sua Direção-Geral da concorrência (DGC) avisou o XIX Governo, que deixou seguir o enterro, até que a mesma DGC determinou um prazo para a resolução fixado para 31 de março do ano corrente. Mas as eleições não podiam ser toldadas por novo caso bancário. Agora, veio o ultimatum: ou o caso se resolvia até 20 de dezembro ou o inverno bancário congelaria em definitivo toda a atividade financeira do BANIF.
O Governador do Banco de Portugal (BdP) referiu que a resolução do BANIF é semelhante à do BES. Mas não o é de todo, pois: não se criou um novo banco (banco bom), vendeu-se uma parte por 150 milhões de euros; restou efetivamente um banco mau, designado por veículo de determinados ativos não especificados e encarregado do desenvolvimento do programa de reestruturação em curso no BANIF; o fundo de resolução apenas se encarregou de 20% dos custos, ficando o Estado (contribuintes) com as responsabilidades remanescentes – as mais volumosas – e emprestando ao fundo 489 milhões de euros; e o Governo não se escondeu por trás das responsabilidades do BdP, assumindo, ao invés, as responsabilidades na condução do processo e prometendo minimizar os custos para os contribuintes, que poderão atingir os 3 mil milhões de euros.
Por outro lado, a resolução do BANIF implicou a elaboração de um orçamento retificativo para a inscrição de um encargo de 2255 milhões de euros.
***
Quem beneficiou desta aniquilação do BANIF em finais de 2015? Porque não podia passar a resolução para o ano de 2016? Beneficiaram os detentores de dívida sénior e os detentores de depósitos superiores a 100.000€, cuja situação e expectativas ficaram salvaguardadas. A partir de um de janeiro próximo futuro, as normas regulatórias de resolução sofrerão alterações e os que agora beneficiaram da resolução seriam chamados a cooperar à força. Nesse novo quadro, o Estado está impedido de pôr dinheiro no banco, antes de sacrificar depósitos superiores a 100.000€ e dívida sénior.
Mas, não tenhamos dúvidas, também beneficiou o bloco central de interesses: o Chairman era um ex-governante do PS; e um dos administradores executivos veio do BdP, o órgão de supervisão e regulação bancária. Tanto assim é que o orçamento retificativo foi votado no Parlamento pelos deputados do PS (o partido de que emergiu o XXI Governo, que detém a responsabilidade da condução positiva do processo) e pelos deputados do PSD da Madeira. O PSD, no dizer de Pedro Marques Lopes, no recente programa Eixo do Mal, na SIC Notícias, “esteve no limite da decência”, tendo optado pela abstenção para viabilizar o orçamento retificativo; e o CDS portou-se mal, demarcando-se do PSD a propósito da pior matéria, já que PSD e CDS são os responsáveis políticos pela “limpeza” da saída troikana – embuste em que a Comissão Europeia cooperou a meias para não prejudicar os resultados eleitorais dos dois filiados no PPE.
Quanto aos partidos à esquerda do PS e ao PAN – tendo a certeza de que o orçamento retificativo iria passar – votaram contra em nome dos seus princípios que emolduram o controlo público da banca, nomeadamente da banca intervencionada e a fim de levarem o ex-Primeiro-Ministro a fazer o mea culpa da responsabilidade política pelo adiamento da solução do BANIF. Por outro lado, os ditos partidos de esquerda preferiam, aliás como o PS, que a parte resolúvel do BANIF fosse absorvida pela CGD enquanto banco público. Porém, o PS apercebeu-se de que isto não era possível face às regras europeias, porque a CGD já tivera ajuda estatal. 
***
Porque são os contribuintes chamados a salvar os bancos? Se o principal negócio dos bancos é emprestar dinheiro, transformando depósitos bancários (passivos líquidos) em empréstimos (ativos ilíquidos), é certo que a sua utilidade – canalizar poupanças para créditos a pessoas, famílias e empresas – comporta riscos e constitui a sua principal fragilidade, sobretudo quando a confiança se dilui ou desfaz. E, se os depositantes, enquanto fornecedores de dinheiro entram em pânico, não há banco que resista. Por isso, os contribuintes são chamados para garantir a confiança de que o resto do sistema bancário precisa para continuar a operar no mercado financeiro. Um banco em dificuldades, com a desconfiança gerada, só piorará. E quanto mais tempo se protelar a solução, pior sucederá.
Assim, torna-se necessário que Passos e Maria Luís Albuquerque se mantenham disponíveis para explicações políticas e não se encostem à Comissão Parlamentar de Inquérito. E, de uma vez por todas, o regulador terá de deixar de se escudar na lei ou na consciência e responder profissionalmente pela supervisão e regulação, sem preocupações pelos ciclos eleitorais.
No caso do BANIF, além da desvalorização das ações para níveis inéditos e dos rumores continuados, notícia da TVI durante horas em rodapé acabou por intensificar a desconfiança e os levantamentos ultrapassaram as expectativas. Essa irresponsável notícia não podia causar mais danos: a corrida ao BANIF foi intempestiva, com prejuízos de centenas de milhões de euros. E o caso tem de ser investigado, tal como o da gestão. Oxalá que a origem da fuga de informação não tenha estado no banco comprador, o principal detentor do capital daquela estação televisiva e a entidade que mais se “entesou” com o Estado no caso dos contratos swap.
Por seu turno, Lobo Xavier, no programa Quadratura do Círculo, do dia 24 na SIC Notícias, não se coibiu, falando do BANIF, de apontar a gestão danosa e criminosa que passou pelo sistema financeiro apelidando de bandidos e corruptos alguns administradores – embora não tenha metido tudo no mesmo saco.
Não basta uma Comissão Parlamentar de Inquérito ou uma investigação da ERC. É necessário que a Justiça funcione com celeridade e eficácia.
***
Afinal, é o sistema financeiro que está depauperado ou é o país governado pelo bloco central de interesses – incluindo os mecanismos de regulação e supervisão – que está a saque, sujeito à ambição dos corruptos, dos gestores de negócios dos outros. Será que é necessário imolar sacrificialmente nas aras do deus-dinheiro tantas vítimas humanas?
Don Lucchesi, em O Padrinho III, declara que “as finanças são uma arma; política é saber quando puxar o gatilho”. Porém, a arte política em Portugal consiste em dar ao gatilho com a mão escondida por entre os arbustos do sistema financeiro envoltos nas sombras da inevitabilidade e gritando a tranquilidade de consciência ou a falta de memória.

2015.12.27 – Louro de Carvalho