sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

O valor de uma moção antecipadamente derrotada

Depois de cerca de 9 horas de debate, a maioria parlamentar que apoia o XXI Governo Constitucional reprovou hoje, dia 3 de dezembro, a moção de rejeição do programa apresentada pela frente partidária constituída pelos deputados do PSD e do CDS.
Era um instrumento de oposição condenado à partida, pois, a maioria que se comprometeu a viabilizar o governo minoritário do Partido Socialista não iria falhar desta vez como não falhou, a 10 de novembro, na votação da moção da rejeição do programa do XX Governo, que antecedeu o presente durante 28 dias (o tempo duma revolução e translação lunares).
Alguns comentadores políticos apontam a inutilidade desta moção de rejeição apresentada pelos partidos que formaram a PaF, justamente por considerarem que a sua condenação estava à vista.
No entanto, é de defender a legitimidade e utilidade da moção.
A legitimidade provém do teor do texto constitucional, que admite a apresentação da moção de rejeição do programa do governo, a qual, se for aprovada pela maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, implica a demissão do Governo, o que sucedeu com o III Governo Constitucional e agora com o XX. Do mesmo modo, a aprovação de uma moção de censura ao governo ou a não aprovação de uma moção de confiança solicitada pelo governo, tomada uma e outra decisão pela maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, implicam a demissão do governo. E o art.º 195.º da CRP não limita, quanto à ciência ou não ciência do seu destino, a legitimidade da apresentação destas moções. Elas constituem uma forma de manifestação expressa de oposição em concreto à linha política do executivo.
Por outro lado, não é contestável a utilidade destas moções mesmo que reprovadas ou condenadas à partida. Constituem uma apreciável tomada explícita de posição das diversas bancadas parlamentares e servem de pretexto e ocasião para que cada grupo parlamentar disserte sobre as diversas matérias de políticas públicas. 
Ninguém negou a utilidade formal da apresentação da moção de rejeição do programa do III Governo Constitucional ou as recentes quatro moções de rejeição do programa do XX Governo Constitucional (de que resultou a demissão), como ninguém ousou questionar a moção de confiança solicitada pelo líder do VI Governo Constitucional (que reforçou a investidura) – sabendo-se à partida qual seria o resultado de cada um daqueles instrumentos regimentais.
Ademais, a experiência parlamentar regista vários casos de apresentação de moções de censura apenas para mostrar claramente a posição adversa da bancada parlamentar que a apresenta e da(s) que a segue(m). E regista a solicitação de uma moção de confiança apresentada pelo I Governo Constitucional, que, como era expectável, levou à sua demissão, seguindo-se o II constituído por ministros do PS e do CDS.
E, com resultado não imediatamente previsível, ficou na memória a moção de censura ao X Governo Constitucional apresentada pelo PRD, a que se juntou o PS liderado por Vítor Constâncio. Daí resultou a demissão do executivo, a dissolução da Assembleia da República e as eleições que deram a primeira maioria absoluta a um só partido, no caso o PSD.
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Quanto à utilidade da presente moção de rejeição do governo liderado por António Costa, é de sublinhar que, por um lado, marcou a clareza da oposição dos partidos da direita parlamentar e consolidou politicamente a posição da maioria parlamentar em que se apoia o executivo. Os deputados dos partidos deste arco da governabilidade (Imaginem a blasfémia que estou a proferir para alguns ouvidos!) usaram da palavra para, sem colocarem de lado as divergências de fundo, evidenciarem os pontos de convergência que permitiram a viabilização deste governo e renovarem com maior explicitação o seu apoio. Chegaram ao ponto de declarar que este é um programa de governo do PS, mas é para a legislatura, acautelando a Câmara legislativa de que não se pode exigir tudo de um momento para o outro.
Ao mesmo tempo, a apresentação da moção de rejeição serviu de oportunidade para a reiteração das ideias de base da PaF, sobretudo no atinente à insistência na falta de legitimidade política deste executivo. É óbvio que nem se falou do conteúdo da moção nem deste programa de governo de 262 páginas nem das 138 páginas do programa anterior, mas a Assembleia da República serviu de palco a doestos e piadas inusitadas.
Passos Coelho falou do Primeiro-Ministro como um líder de governo não escolhido pelo povo. Apontou-lhe a marca de cinismo político ao anunciar o “contrário do que o país precisa” e apresentou-o como o chefe aventureirista escolhido pelos deputados eleitos pelo povo, que o constituíram chefe nas “costas do povo”. Mais declarou que não virará as costas ao interesse nacional posicionando-se num centro moderado, mas aconselhou que, se o reconhecerem como necessário para a tomada de medidas decisivas ou se não forem capazes de aguentar a pressão do país e da Europa, que tenham a dignidade de devolver a palavra ao povo.
O ex-Primeiro-Ministro depõe o futuro de Costa, que, na sua ótica, “usurpou” o poder, no colo do PCP. Tanto assim é que, ao falar alegadamente no debate do programa do Governo do PS, Passos referiu várias vezes os comunistas, aos quais apelidou de “antieuropeístas de pendor monolítico”, e olvidou, talvez propositadamente, o BE.
Em tom indignado e crispado, Passos descreveu a subida de Costa ao Governo como uma jogada de “cinismo político” de quem, de forma “dissimulada, apenas viu desesperadamente uma oportunidade para chegar ao poder”, tendo para o efeito recusado “a solução natural”, ou seja, a negociação com a direita, a alegada “vencedora das eleições”. Aqui, a responsabilidade da ineficácia da negociação– é de recordar – cabe a uma e a outra parte.
Relativamente ao programa do governo, o ex-primeiro-ministro antevê maus resultados, vaticinando que o “aventureirismo” afastará os “investidores”. E questionou a fratura entre o programa do PS e do PCP, declarando ter dificuldade em perceber qual a categoria em que arrumam a questão europeia: “na visão tradicional dos socialistas, na das esquerdas, ou num misto estilo Syriza”.
Paulo Portas, por sue turno, mostra-se mais agressivo ainda com António Costa, a ponto de se lhe dirigir: como ao “senhor primeiro-ministro, vírgula, mas não o primeiro-ministro que o povo escolheu”.
O ex-Primeiro-Ministro recorreu ao jargão dos adolescentes nas redes sociais para classificar a relação dos líderes da esquerda como “BFF”. “Best friends forever” – “amigos para sempre”. Contra os protestos da esquerda e secundado pelos aplausos da direita, Portas especificava:  
“Ficam escolhidos hoje os seu BFF”, disse Portas para António Costa. “Catarina é best friend de António, António é best friend de Jerónimo, Jerónimo – e só isso não é novo – é best friend de Heloísa.”.

Desta relação tirou a seguinte ilação: “será destas novas redes de “BFF” que depende o futuro do Governo. Dependendo deles, cairá. É a vida.” (Aqui, com a última frase, citou Guterres e Costa). E fez consistir no levantamento desta relação dependencial a importância da moção de rejeição do programa de Governo que PSD e CDS propuseram conjuntamente, explicitando que ela separará águas e clarificará alinhamentos. Mas esclarece mais detalhadamente utilizando uma metáfora futebolística:
“Na ausência de uma moção de confiança, só a moção de rejeição permite o voto clarificador. Não havendo nem uma nem outra, este debate ficaria sem conclusão. Seria uma espécie de dissolvente da ilegitimidade que vos incomoda. Seria uma partida amigável”.

E Portas, que deixou claro que consigo não haverá partidas amigáveis com a esquerda, afirmou a diferença da relação do PS com a sua esquerda dizendo que o executivo só o será “apenas e enquanto o politburo do Partido Comunista entender que deve ser”, ao passo que “o BE já está na lapela do Dr. António Costa”.
Segundo Portas, “é a vontade do PCP que decidirá o estilo do Governo de Portugal” e porfia que, se Costa “preferiria a nossa moleza, terá a nossa firmeza”.
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Finalmente, a moção de rejeição do programa do governo serviu para evidenciar a preparação política de alguns ministros e deputados e a insuficiente preparação política de ministros-chave da governação, que não acompanha a sua capacidade científica e profissional.
Assim, enquanto Carlos César ou Vieira da Silva respondem à letra (“Habituem-se!”), Mário Centeno, que do alto da sua inquestionável competência, faz bem em não apresentar, ao de leve e sem conhecer o estado detalhado das contas públicas, previsões numéricas que podem ser desmentidas de um dia para o outro, falha rotundamente quer em não saber dirigir-se ao Parlamento quer, ao alertar para os riscos do sistema financeiro, ter remetido, de forma acrítica para o Banco de Portugal e para a Europa as respostas à situação no Novo Banco e no Banif – o que se criticava ao governo de Passos.
Tem Centeno de fazer uma boa caminhada, pois a política também se alimenta da imagem.
Ademais, um governo cuja legitimidade política põem em causa precisa de a afirmar e reforçar através do exercício, correspondendo, na medida do possível, às expectativas das pessoas e afastando o espectro da iniquidade e da ineficiência na saúde, segurança pública e segurança social, educação, justiça do foro e justiça social, finanças e cultura, investigação e ciência.

2015.12.03 – Louro de Carvalho

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