quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

“Somos irmãos e irmãs” – o grito ultrapassa barreiras

Na segunda-feira, 30 de novembro de 2015, no âmbito da sua viagem apostólica ao Quénia, ao Uganda e à República Centro-Africana, o Papa Francisco teve um encontro com a comunidade muçulmana na Mesquita Central de Koudoukou, Bangui.
O insigne visitante, que fora recebido triunfalmente nos dias 29 e 30, respetivamente, domingo e segunda-feira, insistiu em manter todo o programa da sua visita a este país imerso em violências intercomunitárias, apesar das advertências feitas, especialmente pela França, quanto à impossibilidade de garantir a segurança das pessoas. Nesta ordem de ideias, acabou por entrar, no enclave PK5 – cercado pelas milícias cristãs – na capital, o reduto dos muçulmanos que aqui se refugiaram deixando de frequentar as demais partes da cidade por causa dos confrontos inter-religiosos.
Foi nesse bairro que se encastelou a população muçulmana da cidade, coagida a deixar as suas casas sob o peso da violência das milícias antiBalaka, grupos maioritariamente cristãos – ou pelo menos ditos cristãos – formados para dar resposta adequada às atrocidades cometidas pelas forças Séleka, constituída por uma coligação de rebeldes muçulmanos que governou o país no horizonte temporal de março a dezembro de 2013. Seguiram-se aos massacres de cristãos os massacres de muçulmanos, de que resultou um êxodo desta minoria, que até àquele momento constituía 15% da população do país. Assim, dos 122 mil muçulmanos que viviam em Bangui, restarão apenas uns 15 mil, quase todos acantonados no PK5.
A permanência, ainda que breve, na capital do país devastado nos últimos dois anos pela violência intercomunitária não lograria o seu objetivo integral se não incluísse um encontro com a comunidade muçulmana. É o que se infere das declarações de Francisco na receção que decorreu na mesquita central de Bangui, situada no coração do PK5.
O Papa persistiu na ida ao local, apesar da insegurança, a fim de recordar que, no quadro da filiação comum em relação ao mesmo Deus, “cristãos e muçulmanos são irmãos e irmãs” e que juntos devem repudiar “o ódio, a vingança e a violência, particularmente aquela que é feita em nome de uma religião ou do próprio Deus”. É o grito da fraternidade que faz galgar barreiras!
Para tanto, foi mister transpor terra de ninguém, fortemente vigiada por milícias de um lado e de outro, para ir ao encontro de muçulmanos cercados pelas armas e pelo medo naquele enclave de Bangui, reduto muçulmano da capital massacrada da República Centro-Africana.  
É verdade que o cessar-fogo, acordado e assinado no verão de 2014, abriu caminho à transição. Porém, a violência regressou em setembro passado, numa sequência cíclica de ataque e contra-ataque que já provocou mais de uma centena de mortos e levou a sucessivos adiamentos das eleições legislativas e presidenciais, previstas agora para 27 de dezembro. Tendo o PK5 voltado a ser uma zona de guerra, tornam-se visíveis as consequências: na avenida que separa o enclave de um dos bairros cristãos adjacentes, o mais próximo, veem-se apenas casas queimadas; de um lado, numa ponta, espreitam as barricadas dos antiBalaka, que cercam o bairro, obstando à entrada de comida e à saída dos habitantes; do outro, na outra ponta, erguem-se barricadas montadas pelos grupos de autodefesa.
Foi esse naco territorial de desesperança que Francisco percorreu na manhã do dia 29, num jipe descapotável, mas emoldurado por guarda-costas, polícia e capacetes azuis das Nações Unidas. De facto, a missão de paz da ONU colocou também blindados equipados com metralhadoras ao longo do percurso do papamóvel e snipers nos telhados dos minaretes do PK5. Porem, o intimidante aparato não impediu que se vissem quase predominantemente sorrisos e braços estendidos em sinal de boas-vindas. Idi Bohari, um ancião que se juntou à multidão que se juntou à passagem do Papa, declarou à AFP
Pensávamos que todo o mundo nos tinha abandonado, mas ele não nos abandonou. Ele também nos ama, aos muçulmanos, e eu estou muito feliz”.
Nos últimos dias, o imã Tidiani Moussa Naibi falara do PK5 como se duma “prisão a céu aberto” se tratasse, pois, no bairro escasseia a comida e os residentes temem sair sequer para ir ao médico. Mas, ao receber o Papa, disse acreditar que o passado comum das duas comunidades será muito mais forte do que “as manobras dos que tentam manipulá-las”, garantindo que “os cristãos e muçulmanos deste país estão destinados a viver juntos e a amarem-se uns aos outros”.
Francisco aproveitou esta sua primeira viagem a África, estes seis dias, para fazer sucessivos e veementes apelos ao diálogo entre cristãos e muçulmanos, numa fase em que ambas as religiões do Livro estão em rápida expansão no Continente e se multiplicam conflitos em que, de facto, as rivalidades étnicas, religiosas e políticas se entrecruzam.
Por isso, a etapa centro-africana da viagem, a terceira e última, era considerada essencial a uma deslocação que teve como recorrente palavra de ordem a reconciliação, pelo perdão rumo a uma paz sincera e duradoura. E o Papa Francisco, ao invés de desistir, manteve a sua insistência nesta etapa, mesmo quando a França, que mantém no país um milhar de soldados, advertiu que não poderia garantir a sua segurança, tendo levado a cabo todo o programa da viagem, bem como o da permanência em Bangui.
Do PK5 partiu para o Estádio do Desportivo Barthélémy Boganda, onde o esperavam 20 mil fiéis para a sua derradeira celebração eucarística em solo africano, incitando os cristãos a serem “artesãos da renovação humana e espiritual” de que o país precisa e a serem corajosos “no diálogo com os que são diferentes” e “no perdão” a quem lhes fez mal.
É de registar um gesto marcante, mesmo que efémero, mas muito simbólico num país sangrado pela violência: um grupo de jovens muçulmanos, com T-shirts do Papa, saiu do PK5 numa caravana automóvel para assistir à missa; e, ao chegarem ao estádio, os fiéis aplaudiram-nos.
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Francisco, que chegou a África como “peregrino da paz e da esperança”, deixou sorridente e a salvo a República Centro-Africana, mas não sem deixar de pedir insistentemente a cristãos e muçulmanos que juntos repudiem o ódio. É óbvio que os resultados da visita papal a Bangui e, em especial, ao PK5 não são, no imediato, reconfortantes, como o evidenciam factos ulteriores.
Com efeito, estava Dieudonné Nzapalainga, o arcebispo de Bangui, a comemorar a relativa calma da visita papal em declarações à Rádio Vaticano no dia 1 de dezembro, o dia seguinte ao último da jornada de Francisco na  República Centro Africana, referindo que, apesar de terem estado a prever “um apocalipse”, “não houve um disparo sequer”. E, logo a seguir, soube-se que homens armados tinham nesse mesmo dia acabado de assassinar, em frente à mesquita, Zacharia Adam, um jovem muçulmano de 35 anos no bairro PK5, subúrbio muçulmano de Bangui.
Afinal, um dia depois da visita do Papa Francisco para transmitir uma mensagem de paz, o país continua marcado pela tensão interna, com sinais do devaste causado pelos atos de violência intercomunitária.
Foi Issuf Djibril, presidente do grupo de comerciantes da região, quem avançou a notícia à AFP:
Até as 11 horas, nosso irmão estava em frente à mesquita Ibni Qatab, quando alguns bandidos saíram com suas armas e dispararam, provocando sua morte”.
E vários moradores do PK5 testemunharam que os agressores estavam a alguns metros de distância dali, do outro lado do canal Essayez-voir, que separa o bairro muçulmano de outros bairros cristãos na capital centro-africana.
Entretanto, o corpo de Zacharia foi transportado para a mesquita vizinha Ali Babolo e coberto com um lençol branco dentro de uma bolsa de plástico. E, algumas horas mais tarde, o arcebispo Nzapalainga chegou com urgência ao PK5 para oferecer o seu apoio aos líderes religiosos muçulmanos, pedindo que não cedessem “às provocações dos inimigos da paz” para não voltarem a cair num indesejável ciclo de represálias.
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Na Mesquita Central de Koudoukou em Bangui, o imã Tidiani Mousa Naibi dirigiu ao Papa amáveis palavras de boas-vindas, que Francisco agradeceu, assim como reconheceu a índole calorosa da receção com que foi obsequiado.
Por sua vez, aos líderes e crentes muçulmanos, o Papa declarou que a sua visita pastoral à República Centro-Africana não seria completa, se não incluísse também este encontro com a comunidade muçulmana, já que, “entre cristãos e muçulmanos, somos irmãos”. E esta realidade implica que devemos efetivamente considerar-nos como irmãos e comportar-nos como tal.
E, tal como já na véspera, num campo onde encontraram abrigo quatro mil cristãos fugidos à violência, o Chefe da Igreja Católica reiterou a asserção de que o conflito no país “não tem verdadeiros motivos religiosos”, mas é fruto de manipulações políticas.
Depois, emoldurou o imperativo “Quem afirma crer em Deus deve ser também um homem ou uma mulher de paz” com duas razões de peso. Em primeiro lugar, a razão da experiência – “cristãos, muçulmanos e membros das religiões tradicionais viveram juntos, em paz, durante muitos anos”; depois, a noção de Deus comum para cristãos e muçulmanos – “Deus é paz, Deus salam”. Por isso, Francisco concluiu:
“Devemos permanecer unidos, para que cesse toda e qualquer ação que, dum lado e doutro, desfigura o Rosto de Deus e, no fundo, visa defender, por todos os meios, interesses particulares em detrimento do bem comum”.
Nestes termos, o Pontífice lançou o apelo seguinte:
“Juntos, digamos não ao ódio, não à vingança, não à violência, especialmente aquela que é perpetrada em nome duma religião ou de Deus”.
Depois, elogiou, manifestando gratidão e estima aos líderes religiosos e aos fiéis cristãos e muçulmanos:
“Nestes tempos dramáticos, os líderes religiosos cristãos e muçulmanos quiseram erguer-se à altura dos desafios presentes. Tiveram um papel importante no restabelecimento da harmonia e da fraternidade entre todos. Quero assegurar-lhes a minha gratidão e estima. E podemos também recordar os inúmeros gestos de solidariedade que cristãos e muçulmanos tiveram para com os seus compatriotas de uma outra confissão religiosa, acolhendo-os e defendendo-os durante esta última crise no vosso país, mas também noutras partes do mundo.”.
A seguir, referindo-se às próximas eleições, formulou um voto e um encorajamento:
“Não se pode deixar de almejar que as próximas consultas nacionais deem ao país Responsáveis que saibam unir os centro-africanos, tornando-se assim símbolos da unidade da nação em vez de representantes duma facção. Encorajo-vos vivamente a fazer do vosso país uma casa acolhedora para todos os seus filhos, sem distinção de etnia, filiação política ou confissão religiosa.
Sobre o papel nevrálgico que o país pode desempenhar em relação ao Continente, disse:
A República Centro-Africana, situada no coração da África, graças à colaboração de todos os seus filhos, então poderá dar a todo o continente um impulso nesta direção. Poderá influenciá-lo positivamente e ajudar a extinguir os focos de tensão presentes nele e que impedem os africanos de beneficiar do desenvolvimento que merecem e a que têm direito.
Por fim, deixou o estimulante convite “a rezar e a trabalhar pela reconciliação, a fraternidade e a solidariedade entre todos, sem esquecer as pessoas que mais sofreram com estes acontecimentos”.
E proferiu uma palavra de bênção:
“Que Deus vos abençoe e proteja! Salam alaikum!

2015-12-02 – Louro de Carvalho

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