Na segunda-feira, 30 de novembro
de 2015, no âmbito da sua viagem apostólica ao Quénia, ao Uganda e à República
Centro-Africana, o Papa Francisco teve um encontro com a comunidade muçulmana na
Mesquita Central de Koudoukou, Bangui.
O insigne visitante, que fora recebido triunfalmente nos dias 29 e 30,
respetivamente, domingo e segunda-feira, insistiu em manter todo o programa da sua
visita a este país imerso em violências intercomunitárias, apesar das
advertências feitas, especialmente pela França, quanto à impossibilidade de
garantir a segurança das pessoas. Nesta ordem de ideias, acabou por entrar, no enclave PK5 – cercado pelas milícias cristãs – na capital, o reduto dos muçulmanos que aqui se
refugiaram deixando de frequentar as demais partes da cidade por causa dos
confrontos inter-religiosos.
Foi
nesse bairro que se encastelou a população muçulmana da cidade, coagida a deixar
as suas casas sob o peso da violência das milícias antiBalaka, grupos maioritariamente
cristãos – ou pelo menos ditos cristãos – formados para dar resposta adequada
às atrocidades cometidas pelas forças Séleka, constituída por uma coligação de
rebeldes muçulmanos que governou o país no horizonte temporal de março a
dezembro de 2013. Seguiram-se aos massacres de cristãos os massacres de
muçulmanos, de que resultou um êxodo desta minoria, que até àquele momento
constituía 15% da população do país. Assim, dos 122 mil muçulmanos que viviam
em Bangui, restarão apenas uns 15 mil, quase todos acantonados no PK5.
A permanência,
ainda que breve, na capital do país devastado nos últimos dois anos pela
violência intercomunitária não lograria o seu objetivo integral se não
incluísse um encontro com a comunidade muçulmana. É o que se infere das declarações
de Francisco na receção que decorreu na mesquita central de Bangui, situada no
coração do PK5.
O Papa
persistiu na ida ao local, apesar da insegurança, a fim de recordar que, no quadro
da filiação comum em relação ao mesmo Deus, “cristãos e muçulmanos são irmãos e
irmãs” e que juntos devem repudiar “o ódio, a vingança e a violência,
particularmente aquela que é feita em nome de uma religião ou do próprio Deus”.
É o grito da fraternidade que faz galgar barreiras!
Para tanto,
foi mister transpor terra de ninguém, fortemente vigiada por milícias de um
lado e de outro, para ir ao encontro de muçulmanos cercados pelas armas e pelo
medo naquele enclave de Bangui, reduto muçulmano da capital massacrada da
República Centro-Africana.
É verdade
que o cessar-fogo, acordado e assinado no verão de 2014, abriu caminho à
transição. Porém, a violência regressou em setembro passado, numa sequência cíclica
de ataque e contra-ataque que já provocou mais de uma centena de mortos e levou
a sucessivos adiamentos das eleições legislativas e presidenciais, previstas agora
para 27 de dezembro. Tendo o PK5 voltado a ser uma zona de guerra, tornam-se visíveis
as consequências: na avenida que separa o enclave de um dos bairros cristãos
adjacentes, o mais próximo, veem-se apenas casas queimadas; de um lado, numa
ponta, espreitam as barricadas dos antiBalaka, que cercam o bairro, obstando à
entrada de comida e à saída dos habitantes; do outro, na outra ponta, erguem-se
barricadas montadas pelos grupos de autodefesa.
Foi
esse naco territorial de desesperança que Francisco percorreu na manhã do dia
29, num jipe descapotável, mas emoldurado por guarda-costas, polícia e
capacetes azuis das Nações Unidas. De facto, a missão de paz da ONU colocou
também blindados equipados com metralhadoras ao longo do percurso do papamóvel
e snipers nos telhados dos minaretes do PK5. Porem, o intimidante aparato
não impediu que se vissem quase predominantemente sorrisos e braços estendidos
em sinal de boas-vindas. Idi Bohari, um ancião que se juntou à multidão que se
juntou à passagem do Papa, declarou à AFP
“Pensávamos
que todo o mundo nos tinha abandonado, mas ele não nos abandonou. Ele também
nos ama, aos muçulmanos, e eu estou muito feliz”.
Nos
últimos dias, o imã Tidiani Moussa Naibi falara do PK5 como se duma “prisão a
céu aberto” se tratasse, pois, no bairro escasseia a comida e os residentes
temem sair sequer para ir ao médico. Mas, ao receber o Papa, disse acreditar
que o passado comum das duas comunidades será muito mais forte do que “as
manobras dos que tentam manipulá-las”, garantindo que “os cristãos e muçulmanos
deste país estão destinados a viver juntos e a amarem-se uns aos outros”.
Francisco
aproveitou esta sua primeira viagem a África, estes seis dias, para fazer
sucessivos e veementes apelos ao diálogo entre cristãos e muçulmanos, numa fase
em que ambas as religiões do Livro estão em rápida expansão no Continente e se
multiplicam conflitos em que, de facto, as rivalidades étnicas, religiosas e
políticas se entrecruzam.
Por
isso, a etapa centro-africana da viagem, a terceira e última, era considerada essencial
a uma deslocação que teve como recorrente palavra de ordem a reconciliação, pelo
perdão rumo a uma paz sincera e duradoura. E o Papa Francisco, ao invés de
desistir, manteve a sua insistência nesta etapa, mesmo quando a França, que
mantém no país um milhar de soldados, advertiu que não poderia garantir a sua
segurança, tendo levado a cabo todo o programa da viagem, bem como o da permanência
em Bangui.
Do PK5
partiu para o Estádio do Desportivo Barthélémy Boganda, onde o esperavam 20 mil fiéis
para a sua derradeira celebração eucarística em solo africano, incitando os
cristãos a serem “artesãos da renovação humana e espiritual” de que o país
precisa e a serem corajosos “no diálogo com os que são diferentes” e “no
perdão” a quem lhes fez mal.
É de registar
um gesto marcante, mesmo que efémero, mas muito simbólico num país sangrado
pela violência: um grupo de jovens muçulmanos, com T-shirts do Papa,
saiu do PK5 numa caravana automóvel para assistir à missa; e, ao chegarem ao
estádio, os fiéis aplaudiram-nos.
***
Francisco,
que chegou a África como “peregrino da paz e da esperança”, deixou sorridente e
a salvo a República Centro-Africana, mas não sem deixar de pedir insistentemente
a cristãos e muçulmanos que juntos repudiem o ódio. É óbvio que os resultados
da visita papal a Bangui e, em especial, ao PK5 não são, no imediato, reconfortantes,
como o evidenciam factos ulteriores.
Com efeito, estava
Dieudonné
Nzapalainga, o arcebispo de Bangui, a comemorar a relativa calma da visita
papal em declarações à Rádio Vaticano no dia 1 de dezembro, o dia seguinte ao último
da jornada de Francisco na República Centro Africana, referindo que,
apesar de terem estado a prever “um apocalipse”, “não houve um disparo sequer”.
E, logo a seguir, soube-se que homens armados tinham nesse mesmo dia acabado de
assassinar, em frente à mesquita, Zacharia Adam, um jovem muçulmano de 35 anos no bairro PK5, subúrbio muçulmano de Bangui.
Afinal, um dia depois da visita
do Papa Francisco para transmitir uma mensagem de paz, o país continua marcado
pela tensão interna, com sinais do devaste causado pelos atos de violência
intercomunitária.
Foi Issuf Djibril, presidente do
grupo de comerciantes da região, quem avançou a notícia à AFP:
“Até as 11 horas, nosso irmão estava
em frente à mesquita Ibni Qatab, quando alguns bandidos saíram com suas armas e
dispararam, provocando sua morte”.
E vários moradores do PK5 testemunharam que os agressores estavam a alguns
metros de distância dali, do outro lado do canal Essayez-voir, que separa o
bairro muçulmano de outros bairros cristãos na capital centro-africana.
Entretanto, o corpo de Zacharia foi transportado para a mesquita vizinha
Ali Babolo e coberto com um lençol branco dentro de uma bolsa de plástico. E, algumas
horas mais tarde, o arcebispo Nzapalainga chegou com urgência ao PK5 para
oferecer o seu apoio aos líderes religiosos muçulmanos, pedindo que não
cedessem “às provocações dos inimigos da paz” para não voltarem a cair num indesejável
ciclo de represálias.
***
Na Mesquita Central de Koudoukou em Bangui, o imã Tidiani Mousa Naibi dirigiu ao
Papa amáveis palavras de boas-vindas, que Francisco agradeceu, assim como reconheceu
a índole calorosa da receção com que foi obsequiado.
Por sua vez, aos líderes e crentes muçulmanos, o Papa declarou que a sua visita pastoral à República
Centro-Africana não seria completa, se não incluísse também este encontro com a
comunidade muçulmana, já que, “entre cristãos e muçulmanos, somos irmãos”. E esta
realidade implica que devemos efetivamente considerar-nos como irmãos e
comportar-nos como tal.
E, tal como
já na véspera, num campo onde encontraram abrigo quatro mil cristãos fugidos à
violência, o Chefe da Igreja Católica reiterou a asserção de que o conflito no
país “não tem verdadeiros motivos religiosos”, mas é fruto de manipulações
políticas.
Depois,
emoldurou o imperativo “Quem afirma crer
em Deus deve ser também um homem ou uma mulher de paz” com duas razões de
peso. Em primeiro lugar, a razão da experiência – “cristãos, muçulmanos e
membros das religiões tradicionais viveram juntos, em paz, durante muitos anos”;
depois, a noção de Deus comum para cristãos e muçulmanos – “Deus é paz, Deus salam”. Por isso, Francisco concluiu:
“Devemos permanecer unidos, para que
cesse toda e qualquer ação que, dum lado e doutro, desfigura o Rosto de Deus e,
no fundo, visa defender, por todos os meios, interesses particulares em
detrimento do bem comum”.
Nestes termos,
o Pontífice lançou o apelo seguinte:
“Juntos, digamos não ao ódio, não à
vingança, não à violência, especialmente aquela que é perpetrada em nome duma
religião ou de Deus”.
Depois, elogiou,
manifestando gratidão e estima aos líderes religiosos e aos fiéis cristãos e
muçulmanos:
“Nestes tempos dramáticos, os líderes
religiosos cristãos e muçulmanos quiseram erguer-se à altura dos desafios
presentes. Tiveram um papel importante no restabelecimento da harmonia e da
fraternidade entre todos. Quero assegurar-lhes a minha gratidão e estima. E
podemos também recordar os inúmeros gestos de solidariedade que cristãos e
muçulmanos tiveram para com os seus compatriotas de uma outra confissão
religiosa, acolhendo-os e defendendo-os durante esta última crise no vosso
país, mas também noutras partes do mundo.”.
A seguir, referindo-se
às próximas eleições, formulou um voto e um encorajamento:
“Não se pode deixar de almejar que as
próximas consultas nacionais deem ao país Responsáveis que saibam unir os
centro-africanos, tornando-se assim símbolos da unidade da nação em vez de
representantes duma facção. Encorajo-vos vivamente a fazer do vosso país uma
casa acolhedora para todos os seus filhos, sem distinção de etnia, filiação
política ou confissão religiosa.
Sobre o papel
nevrálgico que o país pode desempenhar em relação ao Continente, disse:
A República Centro-Africana, situada
no coração da África, graças à colaboração de todos os seus filhos, então poderá
dar a todo o continente um impulso nesta direção. Poderá influenciá-lo
positivamente e ajudar a extinguir os focos de tensão presentes nele e que impedem
os africanos de beneficiar do desenvolvimento que merecem e a que têm direito.
Por fim, deixou
o estimulante convite “a rezar e a
trabalhar pela reconciliação, a fraternidade e a solidariedade entre todos, sem
esquecer as pessoas que mais sofreram com estes acontecimentos”.
E proferiu
uma palavra de bênção:
“Que Deus
vos abençoe e proteja! Salam alaikum!”
2015-12-02 – Louro de Carvalho
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