Segundo
o que transpirou para a Comunicação Social, o senhor Lula da Silva,
ex-presidente do Brasil, antecessor imediato da presidenta Dilma Rousseff, estabeleceu
hoje, dia 10 de dezembro, em Madrid, numa conferência organizada pelo diário El País, uma comparação entre as
atitudes dos países colonizadores Espanha e Portugal nas respetivas áreas de
influência.
Tanto
quanto nos é dado perceber, essa comparação sofre do mal de tendenciosa
parcialidade e não tem em conta o contexto histórico-político e as diferenças
dos dois tipos de colonização. Tanto assim é que aquilo que saltou para as
pantalhas em que se alimenta a opinião pública é que o atraso educacional do
Brasil se deve aos portugueses.
É
certo que ressalva que sabe que isto não agrada aos portugueses, mas resta
saber se agrada aos espanhóis e mesmo aos brasileiros. E pouco importaria que
desagradasse aos portugueses ou a quem quer que fosse, se efetivamente
correspondesse à verdade.
***
Afinal,
que disse o doutor honoris causa pela
Universidade de Coimbra?
Pedro Álvares Cabral descobriu o país em 1500 e a primeira
universidade brasileira apenas foi criada em 1922. Ao invés, Cristóvão Colombo
chegou a Santo Domingo, na atual República Dominicana, em 1492 e, em 1507, já
ali tinha sido criada a Universidade. No Peru, foi criada a Universidade, em
1550 e, na Bolívia, em 1624. No Brasil, porém, a primeira universidade surgiu
apenas em 1922.
No entender do insigne conferente, o facto da criação tardia
da Universidade “justifica os atrasos na educação do Brasil”. Com efeito, em
termos formais, a primeira universidade brasileira foi a Universidade do Rio de
Janeiro, que resultou da acoplação da Faculdade de Medicina, da Faculdade de Direito
e da Faculdade de Engenharia. Mas Lula da Silva, ao contrário de outras
ocasiões, esqueceu-se de referir que as bases do ensino superior brasileiro
foram lançadas muito antes, no final de século XVII e por todo o século XVIII,
destacando-se, em 1792, a criação da Real
Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, instituição de ensino
superior precursora da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, e, em 1808, a criação da Faculdade de Medicina da Baía, na sequência da chegada da Coroa
portuguesa ao Brasil.
A argumentação de Lula da Silva em Madrid visava sobretudo as
“elites brasileiras” dos últimos 100 anos, em comparação com o “legado” dos
seus anos à testa do Brasil. Lula aduz que o seu Governo triplicou o orçamento
da Educação, construiu 18 universidades federais, 173 novos “campus” no interior do Brasil e três
vezes mais escolas técnicas do que últimos 100 anos.
***
Lançar hoje a culpa do atraso da educação no Brasil sobre os
colonizadores, além de anedótico e injusto, revela falta de imparcialidade de
juízo histórico. Antes de mais, é de questionar se o Brasil independente fez
mais do que o poder colonial durante um século (1822-1922), o século da ciência e da técnica e da revolução industrial
(em resultado da
invenção da máquina a vapor no século XVIII).
Comparar a colonização espanhola (e, depois, a inglesa) com a portuguesa constitui um
exercício arriscado que merece alguma cautela avaliativa. Ambos os tipos de
colonização merecem críticas severas à luz do pensamento e da sensibilidade dos
tempos atuais e mesmo, pelo menos em certa medida, à luz dos critérios da
época. É óbvio que hoje a expansão das nações ibéricas é enaltecida como a
promotora do encontro de culturas e sublinha-se a globalização dos séculos XV e
XVI, bem como as permutas étnicas e comerciais e a missionação. Todavia, muitas
sombras enegrecem a ação colonizadora.
A preocupação hegemónica foi de tal ordem que Espanha e
Portugal propuseram ou sofreram a decisão papal da divisão do mundo por Espanha
e Portugal (bula Inter caetera, do Papa Alexandre VI e o
Tratado de Tordesilhas).
E as trocas comerciais muitas vezes passaram pela imposição militar com o
consequente domínio político e inoculação dos hábitos e usos europeus. A
própria evangelização, por mais ginástica acrobática que se faça,
frequentemente se excedeu passando facilmente do dinamismo de proposta ao
mecanismo de sujeição. Em alguns lugares, instituiu-se o cargo de vice-rei;
noutros, dividiu-se o território em capitanias, que passaram mais tarde a ficar
sob a jurisdição do governador-geral.
Quanto à diferença da colonização, costuma lançar-se a
acusação sobre os espanhóis de imporem a civilização europeia, aniquilando e
matando indígenas, levando praticamente à supressão dos povos autóctones,
esquecendo-se as notáveis exceções. Em contrapartida, a colonização portuguesa,
considerada mais branda, mais dialogante e miscigenadora, não escapa ao labéu
do encurralamento dos índios no Brasil e do tráfico de escravos de África para
o continente americano a fim de garantir o serviço braçal nos engenhos
inventados para a exploração e transformação das riquezas brasileiras, bem como
o comércio de escravos de África para a Europa.
Christiana Martins, no Expresso,
de 5 de dezembro, tem uma peça jornalística intitulada O segredo dos escravos reprodutores, na qual dá conta da
existência, nas imediações do Palácio Ducal de Vila Viçosa, de escravos
reprodutores.
No século XVI, viveriam umas 350 pessoas no paço ducal e a
criação de escravos teria lugar num terreno ao lado da casa principal, uma zona
ainda hoje conhecida pelos trabalhadores locais como a “ilha”. – Especifica a
colunista, que refere, a partir do texto português do século XVI:
“Tem criação de escravos mouros, alguns dos
quais reservados unicamente para fecundação de grande número de mulheres, como
garanhões, tomando-se registo deles como das raças de cavalos em Itália. Deixam
essas mulheres ser montadas por quem quiserem, pois a cria pertence sempre ao
dono da escrava e diz-se que são bastantes as grávidas. Não é permitido ao
mouro garanhão cobrir as grávidas, sob a pena de 50 açoites, apenas cobre as
que o não estão, porque depois as respetivas crias são vendidas por 30 ou 40
escudos cada uma. Destes rebanhos de fêmeas há muitos em Portugal e nas Índias,
somente para a venda de crias.”
Como se deduz
do próprio texto e confirmado por diversos investigadores, essa produção não se
limitava a Vila Viçosa. Isabel Castro Henriques, na sua publicação “A herança africana em Portugal”, refere:
“Desde o início de quinhentos, os
autores sobretudo estrangeiros davam conta de uma atividade de produção,
marcada por um carácter insólito e cruel: a criação de escravos, como se de
animais se tratassem, destinada a abastecer o mercado nacional, mas também para
exportação”.
E cita um
passo da Collecção da Legislação
Portuguesa (1763-1790), que denuncia a existência de pessoas “em todo o Reino do Algarve, e em algumas
províncias de Portugal (que tinham) escravas reprodutoras, algumas mais brancas
do que os próprios donos, outras mestiças e ainda outras verdadeiramente
negras, (designadas) ‘pretas’ ou ‘negras’, pela repreensível propagação delas
perpetuarem os cativeiros”.
Tudo isto
consta de relato sobre a existência de escravos reprodutores no Paço Ducal de
Vila Viçosa, a mais importante casa nobre portuguesa, feito por João Batista
Venturino da Fabriano, secretário do cardeal Alexandrino Miguel Bonello, legado
papal à corte portuguesa, em 1571, com a incumbência de propor Margarida de
Valois como noiva de D. Sebastião.
Não obstante,
o primeiro a denunciar o caso foi Nicolau Clenardo em meados do próprio século
XVI através de várias cartas. Porém, o primeiro a ficar deveras incomodado com
esta atividade foi Alexandre Herculano, no século XIX, cujo testemunho é, no
entanto muito lacunar.
***
Portugal
tinha dois grandes objetivos quando aportou a terras do Brasil: as suas
prioridades eram a defesa, o arroteamento de terras, o povoamento urbano e a fiscalização.
Durante 300 anos, as principais iniciativas na área de educação vieram dos
jesuítas, mais voltados para a catequese religiosa e para o ensino elementar e profissional.
Os altos funcionários da Igreja e da Coroa e os filhos dos grandes
latifundiários vinham à Europa para obter formação universitária, e o destino
era Coimbra ou Évora. Entretanto, surgiram iniciativas isoladas, como o curso
superior de Engenharia Militar no Rio de Janeiro, que surgiu no final do século
XVII, com uma feição mais profissionalizante e prática, que podem também ser
consideradas como elementos precursores no ensino superior no Brasil, embora,
como é óbvio, sob o signo da Coroa.
Em 1808, com
a transferência da família real para o Brasil, surgiu o primeiro interesse explícito
na criação de escolas médicas na Bahia e no Rio de Janeiro. Assim, em fevereiro
de 1808, surge o Colégio Médico-Cirúrgico
da Bahia e, em abril do mesmo ano, é criada a cadeira de Anatomia no Hospital Militar do Rio de
Janeiro. Em 1810, o Príncipe Regente, pela carta de Lei de 4 de dezembro,
criou a Academia Real Militar da Corte,
que se converteria, anos mais tarde, na Escola
Politécnica; pelo Decreto de 23 de fevereiro de 1808, foi instituída uma
cadeira de Ciência Económica; e pelo
Decreto de 12 de outubro de 1820, foi organizada a Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil,
que, mais tarde, foi convertida em Academia
das Artes.
É certo que,
no século XIX, a partir da Proclamação da Independência, aumentou o número de
escolas superiores, mas sempre no modelo de unidades desconexas e voltadas para
a formação técnico-profissional. Registam-se, no entanto, algumas tentativas de
criação da universidade no Brasil, com o projeto de 1843, que visava criar a Universidade de Pedro II, e com o de
1847, para a criação da Universidade do Visconde
de Goiânia. Mas nenhuma delas saiu do papel.
Entretanto, o
regime imperial brasileiro cedeu à República, mas a Constituição de 1891 guarda
silêncio em relação ao compromisso do governo com a universidade. Em 1912, mais
por ação de forças locais que do Estado, surge a primeira universidade brasileira,
no Estado do Paraná, que durou apenas 3 anos. Só em 1920 surge, pelo decreto
n.º 14.343, de 7 de setembro, a Universidade
do Rio de Janeiro, hoje Universidade
Federal do Rio de Janeiro, que reuniu as escolas superiores da cidade:
Escola Politécnica, Faculdade de Medicina e Faculdade de Direito (esta resultara da fusão da Faculdade
Livre de Direito e da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais).
Não
corresponde à verdade histórica, exceto no atinente ao núcleo da família real, a asserção de que os portugueses
não pretendiam ficar no Brasil e de que saíram de Portugal sob pressão e a
ideia de se estabelecerem provisoriamente em Terras de Santa Cruz. Tanto assim
não é que, desde início, se preocuparam com a criação de infraestruturas
espaciais e socioeconómicas. Porém, fizeram-no a partir da base e não a partir
do topo. O topo, dada a relativa facilidade de desolação para a metrópole,
poderia adquirir formação no continente europeu. Depois, a casa começa-se pelos
alicerces e não pelo telhado.
***
Não
se pode ignorar que, na estruturação do espaço e dos bens civilizacionais
considerados fundamentais, houve contrafações: milhares de pessoas foram desapropriadas
num processo de higienização que
jogou os pobres para a periferia e os afastou da vivência social comum, dando origem,
por consequência, às muitas e enormes favelas de hoje. Por outro lado, todo o
sistema político e jurídico brasileiro foi montado por uma elite aristocrática
portuguesa, como era usual ao tempo, mas que os brasileiros em quase dois
séculos de independência não souberam contornar e ultrapassar eficazmente.
No
entanto, torna-se abstrusa a culpabilização dos portugueses como nação pelas insuficiências
educacionais do Brasil, como o seria pelas suas deficiências de saúde, emprego,
segurança social e segurança pública, bem como pelas ondas de latrocínio,
assassinato ou esbulhamento de terras aos índios e nordestinos. Do mesmo modo
se pode falar da iniquidade do pretenso esquecimento do importante legado
cultural que acompanha o Brasil até à atualidade, tendo mesmo o Brasil superado
os portugueses em muitas valências culturais, mesmo no atinente à própria
cultura portuguesa. Os portugueses deixaram no Brasil a sua cultura, a sua
língua, a sua religião, a sua arquitetura e muito da sua idiossincrasia. Se
hoje têm cidades património mundial, a eles o devem agradecer. Enquanto os espanhóis
matavam à força e dizimavam milhões de índios, culturas e etnias inteiras nas
Américas, os portugueses miscigenavam-se com os autóctones e afro-brasileiros
como forma de paz entre as duas culturas.
***
Lula
bem poderia pensar na questão de ter sido necessário um século para criarem a
primeira universidade. Um país independente tinha de possuir competência para
se organizar em todos os aspetos da vida política, social e económica e não
pode desculpar-se com os outros.
Lula
bem podia estar atualizado e saber que o navegador Cristóvão Colombo era
português. Depois, se um amigo de Portugal se comporta assim, pergunto-me se
Portugal precisa de inimigos.
2015.12.11 –
Louro de Carvalho
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