Embora
afetado pela gripe, o Papa Francisco encontrou-se ontem, dia 21, com os
diversos membros da Cúria Romana para a apresentação de felicitações
natalícias.
O Pontífice,
que pediu licença para falar sentado, contra o seu hábito, mas condicionado
pela doença, endereçou o seu discurso de cordialidade natalícia e de gratidão
pessoal a todos os colaboradores, mencionando em especial os que terminaram,
durante este ano, o seu serviço por motivo de reforma e as pessoas que foram
chamadas à presença de Deus.
Parece que
sentiu o peso da dureza do discurso homólogo do ano transato e explicitamente verificou
a necessidade de estender a temática das “doenças curiais” e respetivos
antídotos a “cada cristão, cúria, comunidade, congregação, paróquia e movimento
eclesial” – algo que alguns (eu era um deles) reclamavam
a propósito da alocução do Natal anterior.
Entretanto,
Francisco não se contenta com a adição de sentido ou de extensão ao discurso de
felicitações natalícias à Cúria em 2014. Tenta, ao invés, dotar esta anualidade
discursiva de uma sequencialidade programática. Assim, salienta do discurso no
primeiro encontro com a Cúria em 2013, 1.º ano do seu pontificado, “dois aspetos
importantes e inseparáveis do trabalho curial: o profissionalismo e o serviço,
sob a égide de “São José como modelo a imitar”. No ano passado, aduzindo a
necessidade de preparação “para o sacramento da Reconciliação”, abordou “algumas
tentações e ‘doenças’” (eram
quinze), a que chama “catálogo
das doenças curiais”. Desta vez, quis receitar os adequados “antibióticos
curiais”, já que aquelas doenças, verificáveis em diversos
contextos (pessoais e
grupais, sociais e espaciais) postulam: “prevenção, vigilância, cuidado e, em alguns casos infelizmente,
intervenções dolorosas e prolongadas”.
Lamenta a manifestação
de algumas dessas doenças no decurso deste ano, “causando não pouco sofrimento
a todo o corpo e ferindo muitas almas, mesmo com o escândalo”. Não obstante,
refere que se constituíram em “objeto de sincera reflexão e de medidas
decisivas” a prosseguir “com determinação, lucidez e ardor” na observância do
princípio Ecclesia semper
reformanda.
Por outro
lado, as doenças e os escândalos não podem “esconder a eficiência dos serviços
que a Cúria Romana presta ao Papa e à Igreja”, desvelada, responsável,
empenhada e dedicadamente – o que se torna “motivo de verdadeira consolação”.
Inácio de Loiola ensinava que, enquanto “é próprio do espírito mau vexar,
contristar, dificultar e turbar com falsas razões, para impedir de avançar”, o espírito
bom encoraja, cria energias, consola e gera lágrimas, inspira e cria serenidade,
“diminuindo e removendo qualquer dificuldade, para avançar no caminho do bem”.
Além disso, enquanto
realça a santidade e o trabalho meritório de tantos, reconhece que as “resistências,
fadigas e quedas das pessoas e dos ministros” são “lições e oportunidades de crescimento”
e de “voltar ao essencial”, avaliando a consciência “de nós mesmos, de
Deus, do próximo, do sensus
Ecclesiae e do sensus fidei”. Foi desta essencialidade que
Francisco falou neste dealbar do Jubileu da Misericórdia, aberto pela Igreja,
constituindo para ela e para todos o apelo à gratidão,
conversão, renovação,
penitência e reconciliação”.
***
Por isso, reconhecendo
com Santo Agostinho de Hipona que o Natal é a festa da Misericórdia infinita, no
contexto do Ano da Misericórdia e da preparação para o Natal, o Santo Padre
apresenta um instrumento prático para a vivência frutuosa deste tempo de graça.
E, na esteira do mecanismo utilizado pelo Padre Mattei Ricci, na China, no
longínquo século XVI e princípios de XVII, Francisco agrupa os ditos
antibióticos curiais em torno do acróstico da misericórdia (obviamente a partir de termos italianos), fazendo dela “guia” e “farol”. Sintetizamos a
seguir:
1. Missionariedade e
pastoreação. “Missionariedade é a marca de fertilidade e fecundidade da
Cúria. Sendo a fé um dom, a sua medida prova-se pela capacidade de a comunicar”.
O batizado “é missionário da Boa Nova” com a vida, trabalho e jubiloso e
convincente testemunho. E “pastoreação” sã é virtude indispensável ao sacerdote
enquanto compromisso diário de seguir o Pastor que cuida das ovelhas e dá a
vida por elas. É a medida da “atividade curial e sacerdotal.
2. Idoneidade e sagácia.
A idoneidade requer o esforço pessoal em demanda dos requisitos para o
exercício das próprias tarefas e atividades, com inteligência e intuição, “contra
recomendações e subornos”, enquanto “a sagácia” é a prontidão da mente para
compreender e enfrentar as situações com sabedoria e criatividade”. Idoneidade
e sagácia são, pois, “a resposta humana à graça divina”, quando cada um faz tudo como se Deus não existisse e,
depois, deixa tudo a Deus como se ‘eu’ não existisse” (princípio
inaciano).
3. Spiritualità
(espiritualidade) e
humanidade. A
espiritualidade é o sustentáculo do serviço na Igreja e na vida cristã. É o que
nutre a atividade, a sustenta e protege da fragilidade humana e das tentações. E
a “humanidade é o que encarna a veridicidade da nossa fé”, pois “quem renúncia
à humanidade, renuncia a tudo” (enunciado forte, mas verdadeiro). “É a humanidade que nos torna diferentes das
máquinas e dos robôs que não sentem nem se comovem”.
4. Exemplaridade e
fidelidade. No alinhamento com Paulo VI, que recordou, em 1963, à Cúria “a
sua vocação à exemplaridade”, Francisco elege a exemplaridade “para evitar os escândalos
que ferem as almas e ameaçam a credibilidade” do testemunho. Por outro lado,
preconiza a “fidelidade à consagração e vocação”, em consonância com as
palavras de Cristo: “quem é fiel no pouco,
também é fiel no muito; quem é infiel no pouco, também é infiel no muito” (Lc 16,10).
5. Racionalidade e
amabilidade. A racionalidade leva a evitar “os excessos emocionais”; e a
amabilidade evita “os excessos da burocracia e das programações e planificações”.
Diz o Papa que estes “são dotes necessários para o equilíbrio da personalidade”
de modo que “todo o excesso – seja na racionalidade, seja na amabilidade – é
indício de qualquer desequilíbrio”.
6. Inocuidade e determinação.
A inocuidade torna-nos “cautelosos no juízo, capazes de nos abstermos de ações
impulsivas e precipitadas” e capacita-nos para “fazer emergir o melhor de nós
mesmos, dos outros e das situações, agindo com cuidado e compreensão”. Por sua
vez, a determinação consiste em “agir com vontade decidida, visão clara e
obediência a Deus e somente pela lei suprema da salus animarum” (cf CIC, cân 1725).
7. Caridade e verdade.
Estas virtudes indissolúveis gravitam em torno do lema “testemunhar a
verdade na caridade e viver a caridade na verdade” (cf Ef 4,15). Caridade sem verdade passa a “ideologia
da bonacheirice destrutiva”; e “verdade sem caridade” é “justicialismo cego”.
8. Onestà
(honestidade)
e maturidade. A
honestidade é a retidão, coerência e “o agir com absoluta sinceridade connosco
mesmos e com Deus”. O honesto não age retamente apenas sob o olhar do
supervisor ou do superior, pois “não teme ser apanhado de surpresa, porque
nunca engana a quem se fia dele”. Não domina “sobre as pessoas ou sobre as
coisas que lhe foram confiadas em administração, como o servo mau” (Mt 24,48). Mais: “a honestidade é a base em que assentam todas
as outras qualidades”. Por seu turno, a maturidade é ao mesmo tempo “o esforço para
obter a harmonia entre as nossas capacidades físicas, psíquicas e espirituais”
e “a meta e o bom êxito” do “processo de desenvolvimento”, interminável e
independente da idade.
9. Respeito e humildade.
O respeito é “dote das almas nobres e delicadas”, ou seja, “das pessoas que
procuram sempre demonstrar verdadeiro respeito aos outros, à sua função, aos
superiores e aos subordinados, aos problemas, aos documentos, ao segredo e
confidencialidade”. Por sua vez, a humildade “é a virtude dos santos e das
pessoas cheias de Deus, que quanto mais sobem de importância tanto mais cresce
nelas a consciência de nada serem e de nada poderem fazer sem a graça de Deus”
(cf Jo 15,8).
10. Dadivosidade (mais um neologismo papal) e atenção. Quanto maior for a nossa confiança
em Deus e na providência, “tanto mais seremos dadivosos de alma e mais seremos
mãos abertas para dar, sabendo que quanto mais se dá, mais se recebe”. Sem esta
perspetiva, seria “inútil abrir todas as Portas Santas de todas as basílicas do
mundo”. Já a atenção é “o cuidado dos detalhes e a oferta do melhor de nós
mesmos sem nunca cessar de vigiar” sobre os “vícios e faltas”.
11. Impavidez e prontidão.
A impavidez consiste em “não se deixar amedrontar perante as dificuldades”,
como Daniel ante os leões e David ante o gigante Golias; e significa “dar o
primeiro passo sem demora, como Abraão e como Maria”. Por sua vez, “a prontidão
é saber atuar com livre e agilmente, sem se apegar às coisas materiais que
passam”, na observância da recomendação do salmo: “Se as vossas riquezas crescerem, não lhes entregueis o coração” (Sl 62/61,11). Significa, pois, “estar sempre a
caminho, sem jamais se sobrecarregar acumulando coisas inúteis e fechando-se
nos próprios projetos, nem se deixando dominar pela ambição”.
12. Affidabilità
(fiabilidade)
e sobriedade. Fiável é quem mantenha séria e atendivelmente os
compromissos tanto quando é observado como quando está sozinho; é o que ao seu
redor irradia uma sensação de tranquilidade, porque nunca atraiçoa a confiança
outorgada. Por seu turno, a sobriedade “é a capacidade de renunciar ao
supérfluo e resistir à lógica consumista dominante”. Mais: “sobriedade é um estilo de vida, que indica o
primado do outro como princípio hierárquico e evidencia a existência como
solicitude e serviço aos outros”; e “é prudência, simplicidade, essencialidade,
equilíbrio e temperança”; e consiste em “contemplar o mundo com os olhos de
Deus e com o olhar dos pobres e do lado dos pobres”.
***
Francisco organiza,
em torno de 12 parâmetros, 24 marcas (cada um abrange duas) de virtude curial totalmente aplicável aos diversos contextos
da vida cristã e, com as adequadas e necessárias adaptações, à vida profissional,
social, económica e política – socorrendo-se de uma notável abundância de citações
bíblicas e hagiográficas (registaram-se apenas algumas). E é pertinente o corolário do seu discurso sore a
misericórdia:
“A misericórdia, longe de sentimento
passageiro, é a ‘síntese da Boa Nova’, ‘a opção de quem quer ter os sentimentos
do Coração de Jesus’, de quem seriamente quer seguir o Senhor que apela:
Sede misericordiosos como o vosso Pai (Lc 6,36; cf Mt 5,48).”.
E, citando o
Padre Hermes Ronchi, lança o pregão:
“Misericórdia é escândalo para a
justiça, loucura para a inteligência, consolação para nós, devedores. A dívida
de existir, a dívida de ser amados, só se paga com a misericórdia.”.
Finalmente,
fazendo votos para que a misericórdia guie “os nossos passos”, inspire “as
nossas reformas”, ilumine “as nossas decisões” – “seja ela a coluna
sustentáculo do nosso agir; seja ela a ensinar-nos quando devemos avançar e
quando devemos recuar um passo; seja ela a fazer-nos ler a pequenez das nossas
ações no grande projeto de salvação de Deus e na majestade misteriosa da sua
obra” – encerra a sua alocução natalícia com a oração, atribuída ao Beato Óscar
Arnulfo Romero, mas pronunciada pela primeira vez pelo Cardeal John Dearden:
“De vez em quando ajuda-nos recuar um passo e ver de longe.
O Reino não está apenas para além dos nossos esforços, está
também para além das nossas visões.
Na nossa vida, conseguimos cumprir apenas uma pequena parte daquele
maravilhoso empreendimento que é a obra de Deus. Nada daquilo que fazemos está
completo.
Isto quer dizer que o Reino está mais além de nós mesmos. Nenhuma
afirmação diz tudo o que se pode dizer. Nenhuma oração exprime completamente a
fé. Nenhum credo contém a perfeição. Nenhuma visita pastoral traz consigo todas
as soluções. Nenhum programa cumpre plenamente a missão da Igreja. Nenhuma meta
ou objectivo atinge a dimensão completa.
Disto se trata:
Plantamos sementes que um dia nascerão. Regamos sementes já
plantadas, sabendo que outros as guardarão. Pomos as bases de algo que se
desenvolverá. Pomos o fermento que multiplicará as nossas capacidades.
Não podemos fazer tudo, mas dá uma sensação de libertação
iniciá-lo.
Dá-nos a força de fazer qualquer coisa e fazê-la bem.
Pode ficar incompleto, mas é um início, o passo dum caminho,
uma oportunidade para que a graça de Deus entre e faça o resto. Pode acontecer que
nunca vejamos a sua perfeição, mas esta é a diferença entre o mestre de obras e
o trabalhador.
Somos trabalhadores, não mestres de obras, servidores, não
messias. Somos profetas de um futuro que não nos pertence.
É a dialética
do “já e ainda não” que atravessa a economia da Salvação, a verdade bíblico-teológica
– que tem de se fazer vida na humildade e no esforço (que é pelo menos um importante começo) de ir sempre “mais alto e mais além”
(“altius ac ulterius”), mesmo que sejam outros a colher o que semeamos, na certeza de que é
Ele quem dirige e tem a primazia e se satisfaz quando os homens se sentem
realizados em dignidade e bem-estar, vida plena.
2015.12.22 –
Louro de Carvalho
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