quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Os antibióticos da receita papal contra as doenças da Cúria Romana

Embora afetado pela gripe, o Papa Francisco encontrou-se ontem, dia 21, com os diversos membros da Cúria Romana para a apresentação de felicitações natalícias.
O Pontífice, que pediu licença para falar sentado, contra o seu hábito, mas condicionado pela doença, endereçou o seu discurso de cordialidade natalícia e de gratidão pessoal a todos os colaboradores, mencionando em especial os que terminaram, durante este ano, o seu serviço por motivo de reforma e as pessoas que foram chamadas à presença de Deus.
Parece que sentiu o peso da dureza do discurso homólogo do ano transato e explicitamente verificou a necessidade de estender a temática das “doenças curiais” e respetivos antídotos a “cada cristão, cúria, comunidade, congregação, paróquia e movimento eclesial” – algo que alguns (eu era um deles) reclamavam a propósito da alocução do Natal anterior.  
Entretanto, Francisco não se contenta com a adição de sentido ou de extensão ao discurso de felicitações natalícias à Cúria em 2014. Tenta, ao invés, dotar esta anualidade discursiva de uma sequencialidade programática. Assim, salienta do discurso no primeiro encontro com a Cúria em 2013, 1.º ano do seu pontificado, “dois aspetos importantes e inseparáveis do trabalho curial: o profissionalismo e o serviço, sob a égide de “São José como modelo a imitar”. No ano passado, aduzindo a necessidade de preparação “para o sacramento da Reconciliação”, abordou “algumas tentações e ‘doenças’” (eram quinze), a que chama “catálogo das doenças curiais”. Desta vez, quis receitar os adequados “antibióticos curiais”, já que aquelas doenças, verificáveis em diversos contextos (pessoais e grupais, sociais e espaciais) postulam: “prevenção, vigilância, cuidado e, em alguns casos infelizmente, intervenções dolorosas e prolongadas”.
Lamenta a manifestação de algumas dessas doenças no decurso deste ano, “causando não pouco sofrimento a todo o corpo e ferindo muitas almas, mesmo com o escândalo”. Não obstante, refere que se constituíram em “objeto de sincera reflexão e de medidas decisivas” a prosseguir “com determinação, lucidez e ardor” na observância do princípio Ecclesia semper reformanda.
Por outro lado, as doenças e os escândalos não podem “esconder a eficiência dos serviços que a Cúria Romana presta ao Papa e à Igreja”, desvelada, responsável, empenhada e dedicadamente – o que se torna “motivo de verdadeira consolação”. Inácio de Loiola ensinava que, enquanto “é próprio do espírito mau vexar, contristar, dificultar e turbar com falsas razões, para impedir de avançar”, o espírito bom encoraja, cria energias, consola e gera lágrimas, inspira e cria serenidade, “diminuindo e removendo qualquer dificuldade, para avançar no caminho do bem”.
Além disso, enquanto realça a santidade e o trabalho meritório de tantos, reconhece que as “resistências, fadigas e quedas das pessoas e dos ministros” são “lições e oportunidades de crescimento” e de “voltar ao essencial”, avaliando a consciência “de nós mesmos, de Deus, do próximo, do sensus Ecclesiae e do sensus fidei”. Foi desta essencialidade que Francisco falou neste dealbar do Jubileu da Misericórdia, aberto pela Igreja, constituindo para ela e para todos o apelo à gratidão, conversão, renovação, penitência e reconciliação”.
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Por isso, reconhecendo com Santo Agostinho de Hipona que o Natal é a festa da Misericórdia infinita, no contexto do Ano da Misericórdia e da preparação para o Natal, o Santo Padre apresenta um instrumento prático para a vivência frutuosa deste tempo de graça. E, na esteira do mecanismo utilizado pelo Padre Mattei Ricci, na China, no longínquo século XVI e princípios de XVII, Francisco agrupa os ditos antibióticos curiais em torno do acróstico da misericórdia (obviamente a partir de termos italianos), fazendo dela “guia” e “farol”. Sintetizamos a seguir:
1. Missionariedade e pastoreação. “Missionariedade é a marca de fertilidade e fecundidade da Cúria. Sendo a fé um dom, a sua medida prova-se pela capacidade de a comunicar”. O batizado “é missionário da Boa Nova” com a vida, trabalho e jubiloso e convincente testemunho. E “pastoreação” sã é virtude indispensável ao sacerdote enquanto compromisso diário de seguir o Pastor que cuida das ovelhas e dá a vida por elas. É a medida da “atividade curial e sacerdotal.
2. Idoneidade e sagácia. A idoneidade requer o esforço pessoal em demanda dos requisitos para o exercício das próprias tarefas e atividades, com inteligência e intuição, “contra recomendações e subornos”, enquanto “a sagácia” é a prontidão da mente para compreender e enfrentar as situações com sabedoria e criatividade”. Idoneidade e sagácia são, pois, “a resposta humana à graça divina”, quando cada um faz tudo como se Deus não existisse e, depois, deixa tudo a Deus como se ‘eu’ não existisse” (princípio inaciano).
3. Spiritualità (espiritualidade) e humanidade. A espiritualidade é o sustentáculo do serviço na Igreja e na vida cristã. É o que nutre a atividade, a sustenta e protege da fragilidade humana e das tentações. E a “humanidade é o que encarna a veridicidade da nossa fé”, pois “quem renúncia à humanidade, renuncia a tudo” (enunciado forte, mas verdadeiro). “É a humanidade que nos torna diferentes das máquinas e dos robôs que não sentem nem se comovem”.
4. Exemplaridade e fidelidade. No alinhamento com Paulo VI, que recordou, em 1963, à Cúria “a sua vocação à exemplaridade”, Francisco elege a exemplaridade “para evitar os escândalos que ferem as almas e ameaçam a credibilidade” do testemunho. Por outro lado, preconiza a “fidelidade à consagração e vocação”, em consonância com as palavras de Cristo: “quem é fiel no pouco, também é fiel no muito; quem é infiel no pouco, também é infiel no muito” (Lc 16,10).
5. Racionalidade e amabilidade. A racionalidade leva a evitar “os excessos emocionais”; e a amabilidade evita “os excessos da burocracia e das programações e planificações”. Diz o Papa que estes “são dotes necessários para o equilíbrio da personalidade” de modo que “todo o excesso – seja na racionalidade, seja na amabilidade – é indício de qualquer desequilíbrio”.
6. Inocuidade e determinação. A inocuidade torna-nos “cautelosos no juízo, capazes de nos abstermos de ações impulsivas e precipitadas” e capacita-nos para “fazer emergir o melhor de nós mesmos, dos outros e das situações, agindo com cuidado e compreensão”. Por sua vez, a determinação consiste em “agir com vontade decidida, visão clara e obediência a Deus e somente pela lei suprema da salus animarum (cf CIC, cân 1725).
7. Caridade e verdade. Estas virtudes indissolúveis gravitam em torno do lema “testemunhar a verdade na caridade e viver a caridade na verdade” (cf Ef 4,15). Caridade sem verdade passa a “ideologia da bonacheirice destrutiva”; e “verdade sem caridade” é “justicialismo cego”.
8. Onestà (honestidade) e maturidade. A honestidade é a retidão, coerência e “o agir com absoluta sinceridade connosco mesmos e com Deus”. O honesto não age retamente apenas sob o olhar do supervisor ou do superior, pois “não teme ser apanhado de surpresa, porque nunca engana a quem se fia dele”. Não domina “sobre as pessoas ou sobre as coisas que lhe foram confiadas em administração, como o servo mau” (Mt 24,48). Mais: “a honestidade é a base em que assentam todas as outras qualidades”. Por seu turno, a maturidade é ao mesmo tempo “o esforço para obter a harmonia entre as nossas capacidades físicas, psíquicas e espirituais” e “a meta e o bom êxito” do “processo de desenvolvimento”, interminável e independente da idade.
9. Respeito e humildade. O respeito é “dote das almas nobres e delicadas”, ou seja, “das pessoas que procuram sempre demonstrar verdadeiro respeito aos outros, à sua função, aos superiores e aos subordinados, aos problemas, aos documentos, ao segredo e confidencialidade”. Por sua vez, a humildade “é a virtude dos santos e das pessoas cheias de Deus, que quanto mais sobem de importância tanto mais cresce nelas a consciência de nada serem e de nada poderem fazer sem a graça de Deus” (cf Jo 15,8).
10. Dadivosidade (mais um neologismo papal) e atenção. Quanto maior for a nossa confiança em Deus e na providência, “tanto mais seremos dadivosos de alma e mais seremos mãos abertas para dar, sabendo que quanto mais se dá, mais se recebe”. Sem esta perspetiva, seria “inútil abrir todas as Portas Santas de todas as basílicas do mundo”. Já a atenção é “o cuidado dos detalhes e a oferta do melhor de nós mesmos sem nunca cessar de vigiar” sobre os “vícios e faltas”.
11. Impavidez e prontidão. A impavidez consiste em “não se deixar amedrontar perante as dificuldades”, como Daniel ante os leões e David ante o gigante Golias; e significa “dar o primeiro passo sem demora, como Abraão e como Maria”. Por sua vez, “a prontidão é saber atuar com livre e agilmente, sem se apegar às coisas materiais que passam”, na observância da recomendação do salmo: “Se as vossas riquezas crescerem, não lhes entregueis o coração” (Sl 62/61,11). Significa, pois, “estar sempre a caminho, sem jamais se sobrecarregar acumulando coisas inúteis e fechando-se nos próprios projetos, nem se deixando dominar pela ambição”.
12. Affidabilità (fiabilidade) e sobriedade. Fiável é quem mantenha séria e atendivelmente os compromissos tanto quando é observado como quando está sozinho; é o que ao seu redor irradia uma sensação de tranquilidade, porque nunca atraiçoa a confiança outorgada. Por seu turno, a sobriedade “é a capacidade de renunciar ao supérfluo e resistir à lógica consumista dominante”. Mais: “sobriedade é um estilo de vida, que indica o primado do outro como princípio hierárquico e evidencia a existência como solicitude e serviço aos outros”; e “é prudência, simplicidade, essencialidade, equilíbrio e temperança”; e consiste em “contemplar o mundo com os olhos de Deus e com o olhar dos pobres e do lado dos pobres”.
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Francisco organiza, em torno de 12 parâmetros, 24 marcas (cada um abrange duas) de virtude curial totalmente aplicável aos diversos contextos da vida cristã e, com as adequadas e necessárias adaptações, à vida profissional, social, económica e política – socorrendo-se de uma notável abundância de citações bíblicas e hagiográficas (registaram-se apenas algumas). E é pertinente o corolário do seu discurso sore a misericórdia:
“A misericórdia, longe de sentimento passageiro, é a ‘síntese da Boa Nova’, ‘a opção de quem quer ter os sentimentos do Coração de Jesus’, de quem seriamente quer seguir o Senhor que apela: Sede misericordiosos como o vosso Pai (Lc 6,36; cf Mt 5,48).”.
E, citando o Padre Hermes Ronchi, lança o pregão:
“Misericórdia é escândalo para a justiça, loucura para a inteligência, consolação para nós, devedores. A dívida de existir, a dívida de ser amados, só se paga com a misericórdia.”.
Finalmente, fazendo votos para que a misericórdia guie “os nossos passos”, inspire “as nossas reformas”, ilumine “as nossas decisões” – “seja ela a coluna sustentáculo do nosso agir; seja ela a ensinar-nos quando devemos avançar e quando devemos recuar um passo; seja ela a fazer-nos ler a pequenez das nossas ações no grande projeto de salvação de Deus e na majestade misteriosa da sua obra” – encerra a sua alocução natalícia com a oração, atribuída ao Beato Óscar Arnulfo Romero, mas pronunciada pela primeira vez pelo Cardeal John Dearden:
“De vez em quando ajuda-nos recuar um passo e ver de longe.
O Reino não está apenas para além dos nossos esforços, está também para além das nossas visões.
Na nossa vida, conseguimos cumprir apenas uma pequena parte daquele maravilhoso empreendimento que é a obra de Deus. Nada daquilo que fazemos está completo.
Isto quer dizer que o Reino está mais além de nós mesmos. Nenhuma afirmação diz tudo o que se pode dizer. Nenhuma oração exprime completamente a fé. Nenhum credo contém a perfeição. Nenhuma visita pastoral traz consigo todas as soluções. Nenhum programa cumpre plenamente a missão da Igreja. Nenhuma meta ou objectivo atinge a dimensão completa.
Disto se trata:
Plantamos sementes que um dia nascerão. Regamos sementes já plantadas, sabendo que outros as guardarão. Pomos as bases de algo que se desenvolverá. Pomos o fermento que multiplicará as nossas capacidades.
Não podemos fazer tudo, mas dá uma sensação de libertação iniciá-lo.
Dá-nos a força de fazer qualquer coisa e fazê-la bem.
Pode ficar incompleto, mas é um início, o passo dum caminho, uma oportunidade para que a graça de Deus entre e faça o resto. Pode acontecer que nunca vejamos a sua perfeição, mas esta é a diferença entre o mestre de obras e o trabalhador.
Somos trabalhadores, não mestres de obras, servidores, não messias. Somos profetas de um futuro que não nos pertence.

É a dialética do “já e ainda não” que atravessa a economia da Salvação, a verdade bíblico-teológica – que tem de se fazer vida na humildade e no esforço (que é pelo menos um importante começo) de ir sempre “mais alto e mais além” (altius ac ulterius), mesmo que sejam outros a colher o que semeamos, na certeza de que é Ele quem dirige e tem a primazia e se satisfaz quando os homens se sentem realizados em dignidade e bem-estar, vida plena.

2015.12.22 – Louro de Carvalho

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