De
geringonça a casamento com fim à vista, já quase tudo foi dito sobre o XXI
Governo Constitucional, com vista a declarar a sua precariedade e, por
consequência, a vaticinar que ele pode cair na primeira ocasião a partir do
momento em que o futuro Presidente da República esteja munido do poder
constitucional de dissolução parlamentar. É certo que também lhe foram tecidos elogios
e foi aplaudida a sua composição, competência e postura, mas sem o mesmo relevo
público.
Do
ponto de vista constitucional, nada se conhece que implique a obrigação de o
governo se desfazer por desentendimento interpartidário ou por fratura
intrapartidária. Por outro lado, o Governo continuará em pleno, a menos que o
seu programa seja rejeitado, o que não é o caso, não seja aprovada uma moção de
confiança, o que também só pode acontecer se o Primeiro-Ministro a solicitar (e
não é necessário que o faça),
seja aprovada uma moção de censura (se os partidos que
parlamentarmente se aliarem a fim de a apresentar) e, ainda, se o Presidente da República entender demitir
o Primeiro-Ministro para assegurar o funcionamento das instituições
democráticas (vd art.º 195.º da CRP) ou se optar por dissolver a Assembleia da
República.
Pode
suceder que haja fratura no interior do partido que atualmente pontifica na
governança? Pode, em tese. No entanto, o líder confessado do movimento de
tendência parece ter decretado tréguas, provavelmente à espera do autocolapso
do chefe do governo.
Porém,
a hipótese mais apontada configura um provável desentendimento surgido no
quadro da maioria parlamentar que sustenta o governo minoritário do PS.
Aduzem-se razões atingentes às ditas linhas vermelhas que têm caraterizado o
ideário e o estatuto reivindicativo do PCP, PEV e BE, especialmente no que diz
respeito à política de alianças, designadamente a NATO e o tratado de comércio
transatlântico, à política conexa com a União Europeia e, em partilhar, o EURO,
e as questões internas de política social, nomeadamente o que respeita aos
rendimentos do trabalho e às pensões. Depois, insiste-se no facto de não ter
sido celebrado um acordo entre os quatro partidos, mas vários instrumentos ou “documentos”
de entendimento bilaterais entre cada um dos partidos à esquerda do PS e o
próprio PS, bem como no facto de, em cada um dos instrumentos de entendimento,
figurarem não só os termos de convergência em ordem ao apoio ao governo, mas
também os pontos de divergência enquanto manifestações de reivindicação a
satisfazer se e quando for possível. Além disso, têm-se registado, a par de
fortes tiradas de ousadia do sentir comum, alguns pontos de divergência
parlamentar e na praça pública, tanto no detalhe como na calendarização.
***
Atentando
no que tem sido a prática durante a vigência da Constituição da República
Portuguesa, de 1976, verifica-se que, para lá do fim dos governos ditos de
iniciativa presidencial, das situações de termo de legislatura ou de pedido de
demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro, em resultado da sua avaliação das
condições políticas, a queda de governo ocorreu nas seguintes circunstâncias:
-
O I Governo Constitucional, minoritário, caiu após a não aprovação parlamentar
de uma moção de confiança solicitada pelo Primeiro-Ministro (se
calhar, não havia necessidade);
-
O II Governo Constitucional, maioritário, por acordo celebrado entre PS e CDS,
caiu por denúncia do acordo de governação por parte do CDS;
O
III Governo Constitucional, minoritário e de iniciativa presidencial, caiu em
virtude da rejeição parlamentar do seu programa;
-
O IX Governo Constitucional, maioritário, por acordo celebrado entre PS e PSD (bloco
central), caiu por
denúncia do acordo de governação por parte do PSD (Cavaco
Silva ganhara a liderança do partido no congresso da Figueira da Foz);
-
O X Governo Constitucional, minoritário, caiu após a aprovação parlamentar de
uma moção de censura apresentada pelo PRD, com a colaboração de toda a esquerda;
-
O XV Governo Constitucional, maioritário, por acordo celebrado entre PSD e
CDS/PP, caiu por apresentação pedido de demissão do Primeiro-Ministro Durão
Barroso, depois de indigitado para a presidência da Comissão Europeia;
-
O XVI Governo Constitucional, maioritário, por acordo celebrado entre PSD e
CDS/PP, caiu por dissolução da Assembleia da República por Jorge Sampaio;
-
O XVIII Governo Constitucional, minoritário, caiu por apresentação do pedido de
demissão pelo Primeiro-Ministro em consequência da rejeição parlamentar de um
novo Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC IV);
-
O XX Governo Constitucional, minoritário, da coligação PaF, caiu em virtude da
rejeição parlamentar do seu programa, pela maioria de esquerda, contra, formada
na Assembleia da República.
Não
caíram governos maioritários com maioria feita de um só partido. Já o VIII
Governo Constitucional, de maioria constituída por coligação pré-eleitoral de três
partidos (PSD, CDS e PPM),
acabou por colapsar por desentendimento interpartidário (não
parece despiciendo o facto de o PSD ter escolhido, em Conselho Nacional, o
sucessor de Sá Carneiro sem consulta ao CDS); e o XVI Governo Constitucional, de maioria constituída
por coligação pós-eleitoral de dois partidos, ruiu por decisão presidencial de
dissolução do Parlamento. Em nenhum destes casos era previsível a rutura entre
os partidos coligados, dada a proximidade de pontos de vista expostos, jurados
e publicados.
Embora
a proximidade de pontos de vista expostos, jurados e publicados em torno da
necessidade conjuntural do país, o IX Governo Constitucional, de maioria constituída
por coligação pós-eleitoral de dois partidos (PS e PSD), caiu porque, durante a sua
vigência faleceu o líder do segundo partido, o sucessor imediato não tinha dado
o rosto em eleições nacionais nem partidárias e o segundo sucessor denunciou o acordo,
talvez à espera de gerir os benefícios da adesão do país à então CEE (diga-se
fundos comunitários).
***
Em
relação ao XXI Governo Constitucional, minoritário, mas apoiado por uma maioria
parlamentar constituída por coligação pós-eleitoral de quatro partidos, os
comentadores acentuam as divergências.
Esquecem-se
de que o PS e o CDS, que estabeleceram um acordo de governação de suporte ao II
Governo Constitucional, ostentavam divergências maiores, sustentadas ideologicamente:
o PS era confessadamente socialista, quando o CDS era visceralmente
antissocialista; o PS era visceralmente pró-Constituição, ao passo que o CDS
tinha votado contra a Constituição; o PS prometeu colocar o socialismo na
gaveta, mas as bases do CDS começaram a hostilizar os seus representantes no Parlamento
e no Governo em razão da arrojada política social – o primeiro ato de criação
do Serviço Nacional de Saúde foi um despacho do Ministro dos Assuntos Sociais António
Arnaut, a contragosto daqueles que defendiam a liberdade absoluta da escolha de
médico.
Esquecem-se
de que, apesar da proximidade ideológica entre os dois partidos que apoiavam o
XIX Governo Constitucional, a postura pragmática criou situações de pré-rutura –
por exemplo, nas questões da TSU, da sobretaxa em sede de IRS e das pensões. E o
mês de julho de 2013 ofereceu ao país o cenário da irrevogabilidade revogável,
a ponto de o Presidente da República, em desespero de causa, ter proposto um
acordo entre os três partidos ditos do arco da governabilidade e apelado à formação
de um governo de salvação nacional, prometendo bizarramente para daí a um ano a
dissolução da Assembleia da República e a marcação de eleições legislativas.
Por
isso, o XXI Governo Constitucional pode cair no decurso da legislatura, mas não
por insuficiência de acordo ou por via das divergências. Cairá se o Primeiro-Ministro
se cansar da governação, se as negociações o esgotarem, se as pressões do
exterior forem demasiadas, se os comparsas de coligação não tiverem a paciência
de equilibrar as suas linhas prioritárias com as exigências pontuais do país e/ou
da União Europeia ou se o futuro Presidente da República se colocar na
necessidade ou no capricho de lhe fazer essa maldade – e não pela questão de princípio
de não gostarem da NATO, da Zona EURO e outras coisas mais.
Não
esqueço que o PCP que teve larga influência em cinco (ao
todo foram seis)
governos provisórios não exigiu a rutura com a NATO nem hostilizou na prática qualquer
acordo internacional.
Enfim,
a continuidade ou não do XXI Governo Constitucional depende apenas de as partes
tomarem ou não juízo. E o país merece ser governado e precisa de ser governado.
2015.12.12 – Louro
de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário