sábado, 12 de dezembro de 2015

O XXI Governo Constitucional pode cumprir a legislatura?

De geringonça a casamento com fim à vista, já quase tudo foi dito sobre o XXI Governo Constitucional, com vista a declarar a sua precariedade e, por consequência, a vaticinar que ele pode cair na primeira ocasião a partir do momento em que o futuro Presidente da República esteja munido do poder constitucional de dissolução parlamentar. É certo que também lhe foram tecidos elogios e foi aplaudida a sua composição, competência e postura, mas sem o mesmo relevo público.
Do ponto de vista constitucional, nada se conhece que implique a obrigação de o governo se desfazer por desentendimento interpartidário ou por fratura intrapartidária. Por outro lado, o Governo continuará em pleno, a menos que o seu programa seja rejeitado, o que não é o caso, não seja aprovada uma moção de confiança, o que também só pode acontecer se o Primeiro-Ministro a solicitar (e não é necessário que o faça), seja aprovada uma moção de censura (se os partidos que parlamentarmente se aliarem a fim de a apresentar) e, ainda, se o Presidente da República entender demitir o Primeiro-Ministro para assegurar o funcionamento das instituições democráticas (vd art.º 195.º da CRP) ou se optar por dissolver a Assembleia da República.
Pode suceder que haja fratura no interior do partido que atualmente pontifica na governança? Pode, em tese. No entanto, o líder confessado do movimento de tendência parece ter decretado tréguas, provavelmente à espera do autocolapso do chefe do governo.
Porém, a hipótese mais apontada configura um provável desentendimento surgido no quadro da maioria parlamentar que sustenta o governo minoritário do PS. Aduzem-se razões atingentes às ditas linhas vermelhas que têm caraterizado o ideário e o estatuto reivindicativo do PCP, PEV e BE, especialmente no que diz respeito à política de alianças, designadamente a NATO e o tratado de comércio transatlântico, à política conexa com a União Europeia e, em partilhar, o EURO, e as questões internas de política social, nomeadamente o que respeita aos rendimentos do trabalho e às pensões. Depois, insiste-se no facto de não ter sido celebrado um acordo entre os quatro partidos, mas vários instrumentos ou “documentos” de entendimento bilaterais entre cada um dos partidos à esquerda do PS e o próprio PS, bem como no facto de, em cada um dos instrumentos de entendimento, figurarem não só os termos de convergência em ordem ao apoio ao governo, mas também os pontos de divergência enquanto manifestações de reivindicação a satisfazer se e quando for possível. Além disso, têm-se registado, a par de fortes tiradas de ousadia do sentir comum, alguns pontos de divergência parlamentar e na praça pública, tanto no detalhe como na calendarização.
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Atentando no que tem sido a prática durante a vigência da Constituição da República Portuguesa, de 1976, verifica-se que, para lá do fim dos governos ditos de iniciativa presidencial, das situações de termo de legislatura ou de pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro, em resultado da sua avaliação das condições políticas, a queda de governo ocorreu nas seguintes circunstâncias:
- O I Governo Constitucional, minoritário, caiu após a não aprovação parlamentar de uma moção de confiança solicitada pelo Primeiro-Ministro (se calhar, não havia necessidade);
- O II Governo Constitucional, maioritário, por acordo celebrado entre PS e CDS, caiu por denúncia do acordo de governação por parte do CDS;
O III Governo Constitucional, minoritário e de iniciativa presidencial, caiu em virtude da rejeição parlamentar do seu programa;
- O IX Governo Constitucional, maioritário, por acordo celebrado entre PS e PSD (bloco central), caiu por denúncia do acordo de governação por parte do PSD (Cavaco Silva ganhara a liderança do partido no congresso da Figueira da Foz);
- O X Governo Constitucional, minoritário, caiu após a aprovação parlamentar de uma moção de censura apresentada pelo PRD, com a colaboração de toda a esquerda;
- O XV Governo Constitucional, maioritário, por acordo celebrado entre PSD e CDS/PP, caiu por apresentação pedido de demissão do Primeiro-Ministro Durão Barroso, depois de indigitado para a presidência da Comissão Europeia;
- O XVI Governo Constitucional, maioritário, por acordo celebrado entre PSD e CDS/PP, caiu por dissolução da Assembleia da República por Jorge Sampaio;
- O XVIII Governo Constitucional, minoritário, caiu por apresentação do pedido de demissão pelo Primeiro-Ministro em consequência da rejeição parlamentar de um novo Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC IV);
- O XX Governo Constitucional, minoritário, da coligação PaF, caiu em virtude da rejeição parlamentar do seu programa, pela maioria de esquerda, contra, formada na Assembleia da República.
Não caíram governos maioritários com maioria feita de um só partido. Já o VIII Governo Constitucional, de maioria constituída por coligação pré-eleitoral de três partidos (PSD, CDS e PPM), acabou por colapsar por desentendimento interpartidário (não parece despiciendo o facto de o PSD ter escolhido, em Conselho Nacional, o sucessor de Sá Carneiro sem consulta ao CDS); e o XVI Governo Constitucional, de maioria constituída por coligação pós-eleitoral de dois partidos, ruiu por decisão presidencial de dissolução do Parlamento. Em nenhum destes casos era previsível a rutura entre os partidos coligados, dada a proximidade de pontos de vista expostos, jurados e publicados.
Embora a proximidade de pontos de vista expostos, jurados e publicados em torno da necessidade conjuntural do país, o IX Governo Constitucional, de maioria constituída por coligação pós-eleitoral de dois partidos (PS e PSD), caiu porque, durante a sua vigência faleceu o líder do segundo partido, o sucessor imediato não tinha dado o rosto em eleições nacionais nem partidárias e o segundo sucessor denunciou o acordo, talvez à espera de gerir os benefícios da adesão do país à então CEE (diga-se fundos comunitários).
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Em relação ao XXI Governo Constitucional, minoritário, mas apoiado por uma maioria parlamentar constituída por coligação pós-eleitoral de quatro partidos, os comentadores acentuam as divergências.
Esquecem-se de que o PS e o CDS, que estabeleceram um acordo de governação de suporte ao II Governo Constitucional, ostentavam divergências maiores, sustentadas ideologicamente: o PS era confessadamente socialista, quando o CDS era visceralmente antissocialista; o PS era visceralmente pró-Constituição, ao passo que o CDS tinha votado contra a Constituição; o PS prometeu colocar o socialismo na gaveta, mas as bases do CDS começaram a hostilizar os seus representantes no Parlamento e no Governo em razão da arrojada política social – o primeiro ato de criação do Serviço Nacional de Saúde foi um despacho do Ministro dos Assuntos Sociais António Arnaut, a contragosto daqueles que defendiam a liberdade absoluta da escolha de médico.
Esquecem-se de que, apesar da proximidade ideológica entre os dois partidos que apoiavam o XIX Governo Constitucional, a postura pragmática criou situações de pré-rutura – por exemplo, nas questões da TSU, da sobretaxa em sede de IRS e das pensões. E o mês de julho de 2013 ofereceu ao país o cenário da irrevogabilidade revogável, a ponto de o Presidente da República, em desespero de causa, ter proposto um acordo entre os três partidos ditos do arco da governabilidade e apelado à formação de um governo de salvação nacional, prometendo bizarramente para daí a um ano a dissolução da Assembleia da República e a marcação de eleições legislativas.
Por isso, o XXI Governo Constitucional pode cair no decurso da legislatura, mas não por insuficiência de acordo ou por via das divergências. Cairá se o Primeiro-Ministro se cansar da governação, se as negociações o esgotarem, se as pressões do exterior forem demasiadas, se os comparsas de coligação não tiverem a paciência de equilibrar as suas linhas prioritárias com as exigências pontuais do país e/ou da União Europeia ou se o futuro Presidente da República se colocar na necessidade ou no capricho de lhe fazer essa maldade – e não pela questão de princípio de não gostarem da NATO, da Zona EURO e outras coisas mais.
Não esqueço que o PCP que teve larga influência em cinco (ao todo foram seis) governos provisórios não exigiu a rutura com a NATO nem hostilizou na prática qualquer acordo internacional.
Enfim, a continuidade ou não do XXI Governo Constitucional depende apenas de as partes tomarem ou não juízo. E o país merece ser governado e precisa de ser governado.

2015.12.12 – Louro de Carvalho

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