terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Peregrinação: perda e/ou encontro

Não é a primeira vez que abordamos o tema da peregrinação. E, à primeira vista, nem parece um tema muito adequado ao tempo de Natal. No entanto, a Papa Francisco, na sua homilia da festa da Sagrada Família, este ano a 27 de dezembro, salienta a dimensão familiar da peregrinação. E, se muitos aproveitam a época para viagens de férias, diversão, turismo e negócios, muitos demandam a casa de família e os centros de espiritualidade pessoal e de celebração comunitária. E muitos e muitas se beiram do presépio de Belém ou com referência a Belém.
Peregrinar ("peregrinare", de pero+ager) é caminhar pelo campo, ir ao longe, ao estrangeiro. E a peregrinação é assumida como metáfora da vida do homem sobre a terra. Aquilino Ribeiro considerava a sua vida, feita de uma boa carrada de anos, como a sua peregrinação a Compostela.
Quer o homem detenha ou não o estatuto de peregrino, a sua vida em trânsito no mundo é feita de pequenas caminhadas: de casa para o trabalho, para a escola, para o templo, para o estádio, para o estabelecimento comercial, para o clube, etc. E registam-se também as caminhadas imateriais: pela história, pela cultura, pela literatura, pela política, pelo mundo do pensamento, pelo santuário da consciência…
Porém, desde tempos imemoriais, a peregrinação, ao mesmo tempo que evoca as romagens ou as deambulações com sentido ou à toa, assume um sentido religioso. E o Papa argentino, com o lançamento do ano jubilar da Misericórdia, propõe um conjunto coerente de peregrinações de purificação pessoal e de celebração comunitária que a abertura das diversas “portas santas” inaugurou em Roma, nas diversas cidades episcopais do mundo e em muitíssimos santuários.
Pretende-se o empenhamento pessoal na marcha ao encontro do pai misericordioso, mas também a atenção a algum momento em que Ele nos queira surpreender vindo como peregrino ao nosso encontro para fazer em nós a sua morada. E, às vezes, a marcha ao encontro do rosto misericordioso de Cristo, espelho da misericórdia do Pai, concretiza-se, não tanto na corrida para o templo físico, mas para o santuário do coração dos irmãos que precisam e onde lateja o sangue do Cristo sofredor e indigente a clamar por atenção e justiça. De igual modo, não teremos que estar à espera de uma qualquer teofania extraordinária, mas atender o Cristo na pessoa daquele ou daquela que vem ao nosso encontro ou nos bate à porta a solicitar acolhimento e ajuda.
Mas não entremos em facilitismos de superfície. A marcha ao encontro de Cristo treina-se na rota do templo, não para ficarmos por lá, mas para irmos em missão pelo mundo dos pobres, dos que bradam aos céus por pão, justiça, dignidade e participação na vida comum. Essa marcha exercita-se a nível pessoal e comunitário, mesmo em multidão abraçando a fraternidade dos filhos em torno do Pai comum, dos que habitam a grande Casa de todos – a “ecoeclésia” da igualdade nas diferenças.
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Entretanto, na recente Festa da Sagrada Família, Francisco destaca a dimensão familiar da peregrinação e da vida, apresentando um modelo de peregrinação de família à Casa de Deus. Do Antigo Testamento, menciona o caso de Elcana e Ana, que levam o filho Samuel ao templo de Silo e o consagram ao Senhor (cf 1Sm 1,20-22.24-28); do Novo Testamento, destaca o facto de José e Maria, levando consigo Jesus, de 12 anos de idade, irem como peregrinos a Jerusalém pela festa da Páscoa (cf Lc 2,41-52).
Não é a primeira vez que Maria e José levam Jesus ao Templo. Diz-nos o Evangelho de Lucas:
“Quando se cumpriu o tempo da sua purificação, segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém para o apresentarem ao Senhor, conforme está escrito na Lei do Senhor: Todo o primogénito varão será consagrado ao Senhor e para oferecerem em sacrifício, como se diz na Lei do Senhor, duas rolas ou duas pombas” (Lc 2,22-24).

Aí se deu um encontro. Simeão encontrou-se com o Messias menino e, tomando-o nos braços, confessou poder morrer em paz, porque seus olhos viram a Salvação de todos os povos. E Ana, filha de Fanuel, aparecendo nessa ocasião, pôs-se a louvar a Deus e a falar do Menino a todos os que esperavam a redenção. Contudo, Simeão também profetizou o desencontro, porque, se Ele era motivo de ressurgimento, também iria servir de pretexto para queda de muitos e uma espada de dor havia de trespassar o coração da Mãe. (cf Lc 2,29-38).
Já na peregrinação aos 12 anos de idade de Jesus, o evangelista salienta que Maria e José, ao chegarem a casa vindos da peregrinação do Templo, deram conta da perda do Menino. Não sabiam onde o tinham perdido. Pensando que ele viera com os outros meninos, procuraram-no. E, não o encontrando, voltaram a Jerusalém e encontraram-no no Templo entretido a responder às perguntas dos doutores da Lei e fazer-lhes perguntas a eles.
Quando Maria o interpela dando-lhe conta da sua aflição e da de José, o Menino releva a importância da sua ocupação nas coisas do Pai (uma resposta messiânica, embora não entendida como tal) – palavras que Maria guardava no coração. (cf Lc 2,41-50).
Daqui, a importância do Templo como espaço de ensino/aprendizagem! Mas Jesus não persistiu em permanecer indefinidamente no Templo. E o evangelista salienta a influência benéfica do Templo na vida familiar: “Voltou com eles para Nazaré e era-lhes submisso (…). E Jesus crescia em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens.” (Lc 2,51.52). O evangelista já referia algo parecido após a apresentação no Templo, chegados os dias da purificação: Entretanto, o menino crescia e robustecia-se, enchendo-se de sabedoria, e a graça de Deus estava com Ele” (Lc 2,40).
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O Santo Padre, verificando que deparamos “com os peregrinos que vão a santuários e lugares queridos da devoção popular” e que, nestes dias, muitos “se puseram a caminho para penetrarem na Porta Santa” aberta em todas as catedrais do mundo e também em muitos santuários, acentua a peregrinação feita pela família inteira: “pai, mãe e filhos vão, todos juntos, à casa do Senhor a fim de santificarem a festa pela oração”. E julga que a peregrinação de Elcana e Ana, com Samuel, e a de José e Maria, com Jesus, constituem “uma lição importante oferecida também às nossas famílias”. Depois, avança para a dimensão da vida da família como “um conjunto de pequenas e grandes peregrinações”. Assim, refere:
- “Maria e José ensinaram Jesus a rezar as orações” – a peregrinação da educação para a oração.
– “Durante o dia, rezavam juntos”.
- “Ao sábado, iam juntos à sinagoga ouvir as Sagradas Escrituras da Lei e dos Profetas e louvar o Senhor com todo o povo”.
- “Certamente rezaram, durante a peregrinação para Jerusalém, cantando estas palavras do Salmo: “Que alegria, quando me disseram: Vamos para a casa do Senhor! Os nossos passos detêm-se às tuas portas, ó Jerusalém” (122/121,1-2) – o cântico típico das peregrinações hebraicas.
A partir da lição da família de Nazaré, o Pontífice releva a importância de os membros das nossas famílias “caminharem juntos e terem a mesma meta em vista”. Neste “percurso comum”, que é “uma estrada onde encontramos dificuldades” e “momentos de alegria e consolação”, devemos partilhar também “os momentos da oração”. E os pais devem “abençoar os seus filhos ao início do dia e na sua conclusão”. 
A este respeito, o Papa recorda o sentido inaugural de bênção do sinal da cruz feito na fronte do filho no dia do Batismo – gesto a replicar ao longo da vida como sinal de pertença ao Senhor e de confiança na sua proteção.
Depois, comentando o final da peregrinação da família de Nazaré quando Jesus tinha 12 anos, em que o evangelista afirma que “Jesus voltou para Nazaré e era submisso a seus pais” (cf Lc 2,51), Francisco ensina:
“Também esta imagem contém um ensinamento estupendo para as nossas famílias; é que a peregrinação não termina quando se alcança a meta do santuário, mas quando se volta para casa e se retoma a vida de todos os dias, fazendo valer os frutos espirituais da experiência vivida”.

Porém, anota que Jesus, “em vez de voltar para casa com os seus, ficou em Jerusalém no Templo, causando uma grande aflição a Maria e a José que não O encontravam”. E entende que, por este facto, Jesus terá pedido desculpa aos pais, embora o Evangelho o não explicite, já que na interpelação de Maria se percebe “uma repreensão, ressaltando a preocupação e angústia dela e de José”. E, apesar de, a meu ver, o Menino não desperdiçar o ensejo para abrir um pouco o véu do ser e da missão messiânica, voltou com eles para casa reforçando o valor da educação em família e, no dizer do Papa, “para lhes demonstrar toda a sua afeição e obediência”.
E sobre a peregrinação familiar Francisco diz que fazem parte dela “também estes momentos que, com o Senhor, se transformam em oportunidades de crescimento, em ocasiões de pedir e receber o perdão, de demonstrar amor e obediência”.
Finalmente, o Pontífice considera o Ano da Misericórdia uma peregrinação especial em que se perde a vida de pecado e se encontra e “experimenta a alegria do perdão”. E pretende que, nesta peregrinação, cada família cristã possa “tornar-se um lugar privilegiado” em que se vive o perdão como “a essência do amor, que sabe compreender o erro e pôr-lhe remédio”, já que “é no seio da família que as pessoas são educadas para o perdão, porque se tem a certeza de serem compreendidas e amparadas, não obstante os erros que se possam cometer”.
Apelando a que não se perca “a confiança na família” confia a todas as famílias “esta peregrinação doméstica de todos os dias, esta missão tão importante de que, hoje, o mundo e a Igreja têm mais necessidade do que nunca”.
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Assim, por mais perdas que a peregrinação, sobretudo a peregrinação da vida, nos ocasione, maiores e melhores devem ser os pontos de encontro que nós dela poderemos haurir. Requer-se para isso atenção e disponibilidade. Por outro lado, a família – no seu sentir, decidir e caminhar em conjunto – pode constituir espaço privilegiado para a aprendizagem e para o exercício da sinodalidade a que é chamada a Igreja a ser e a exercitar.

2015.12.28 – Louro de Carvalho

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