Não
é a primeira vez que abordamos o tema da peregrinação. E, à primeira vista, nem
parece um tema muito adequado ao tempo de Natal. No entanto, a Papa Francisco,
na sua homilia da festa da Sagrada Família, este ano a 27 de dezembro, salienta
a dimensão familiar da peregrinação. E, se muitos aproveitam a época para
viagens de férias, diversão, turismo e negócios, muitos demandam a casa de família
e os centros de espiritualidade pessoal e de celebração comunitária. E muitos e
muitas se beiram do presépio de Belém ou com referência a Belém.
Peregrinar
("peregrinare", de pero+ager) é caminhar pelo campo, ir ao longe, ao estrangeiro. E a
peregrinação é assumida como metáfora da vida do homem sobre a terra. Aquilino
Ribeiro considerava a sua vida, feita de uma boa carrada de anos, como a sua
peregrinação a Compostela.
Quer
o homem detenha ou não o estatuto de peregrino, a sua vida em trânsito no mundo
é feita de pequenas caminhadas: de casa para o trabalho, para a escola, para o
templo, para o estádio, para o estabelecimento comercial, para o clube, etc. E
registam-se também as caminhadas imateriais: pela história, pela cultura, pela
literatura, pela política, pelo mundo do pensamento, pelo santuário da consciência…
Porém,
desde tempos imemoriais, a peregrinação, ao mesmo tempo que evoca as romagens
ou as deambulações com sentido ou à toa, assume um sentido religioso. E o Papa
argentino, com o lançamento do ano jubilar da Misericórdia, propõe um conjunto
coerente de peregrinações de purificação pessoal e de celebração comunitária que
a abertura das diversas “portas santas” inaugurou em Roma, nas diversas cidades
episcopais do mundo e em muitíssimos santuários.
Pretende-se
o empenhamento pessoal na marcha ao encontro do pai misericordioso, mas também
a atenção a algum momento em que Ele nos queira surpreender vindo como
peregrino ao nosso encontro para fazer em nós a sua morada. E, às vezes, a
marcha ao encontro do rosto misericordioso de Cristo, espelho da misericórdia
do Pai, concretiza-se, não tanto na corrida para o templo físico, mas para o
santuário do coração dos irmãos que precisam e onde lateja o sangue do Cristo
sofredor e indigente a clamar por atenção e justiça. De igual modo, não teremos
que estar à espera de uma qualquer teofania extraordinária, mas atender o
Cristo na pessoa daquele ou daquela que vem ao nosso encontro ou nos bate à
porta a solicitar acolhimento e ajuda.
Mas
não entremos em facilitismos de superfície. A marcha ao encontro de Cristo
treina-se na rota do templo, não para ficarmos por lá, mas para irmos em missão
pelo mundo dos pobres, dos que bradam aos céus por pão, justiça, dignidade e
participação na vida comum. Essa marcha exercita-se a nível pessoal e
comunitário, mesmo em multidão abraçando a fraternidade dos filhos em torno do Pai
comum, dos que habitam a grande Casa de todos – a “ecoeclésia” da igualdade nas
diferenças.
***
Entretanto,
na recente Festa da Sagrada Família, Francisco destaca a dimensão familiar da
peregrinação e da vida, apresentando um modelo de peregrinação de família à
Casa de Deus. Do Antigo Testamento, menciona o caso de Elcana e Ana, que levam
o filho Samuel ao templo de Silo e o consagram ao Senhor (cf 1Sm 1,20-22.24-28); do Novo Testamento, destaca o
facto de José e Maria, levando consigo Jesus, de 12 anos de idade, irem como
peregrinos a Jerusalém pela festa da Páscoa (cf Lc 2,41-52).
Não
é a primeira vez que Maria e José levam Jesus ao Templo. Diz-nos o Evangelho de
Lucas:
“Quando se cumpriu o tempo da sua purificação,
segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém para o apresentarem ao Senhor, conforme está escrito na Lei do
Senhor: Todo o primogénito
varão será consagrado ao Senhor e
para oferecerem em sacrifício, como se diz na Lei do Senhor, duas rolas ou duas pombas” (Lc 2,22-24).
Aí se deu um encontro. Simeão encontrou-se com o
Messias menino e, tomando-o nos braços, confessou poder morrer em paz, porque
seus olhos viram a Salvação de todos os povos. E Ana, filha de Fanuel,
aparecendo nessa ocasião, pôs-se a louvar a Deus e a falar do Menino a todos os
que esperavam a redenção. Contudo, Simeão também profetizou o desencontro,
porque, se Ele era motivo de ressurgimento, também iria servir de pretexto para
queda de muitos e uma espada de dor havia de trespassar o coração da Mãe. (cf Lc 2,29-38).
Já na peregrinação aos 12 anos de idade de Jesus,
o evangelista salienta que Maria e José, ao chegarem a casa vindos da
peregrinação do Templo, deram conta da perda do Menino. Não sabiam onde o
tinham perdido. Pensando que ele viera com os outros meninos, procuraram-no. E,
não o encontrando, voltaram a Jerusalém e encontraram-no no Templo entretido a
responder às perguntas dos doutores da Lei e fazer-lhes perguntas a eles.
Quando Maria o interpela dando-lhe conta da sua
aflição e da de José, o Menino releva a importância da sua ocupação nas coisas
do Pai (uma resposta messiânica, embora não entendida
como tal) – palavras que Maria guardava no coração. (cf Lc 2,41-50).
Daqui, a importância do Templo como espaço de
ensino/aprendizagem! Mas Jesus não persistiu em permanecer indefinidamente no
Templo. E o evangelista salienta a influência benéfica do Templo na vida
familiar: “Voltou com eles para Nazaré e
era-lhes submisso (…). E Jesus crescia em sabedoria, em estatura e em graça, diante de
Deus e dos homens.” (Lc 2,51.52). O evangelista já referia algo parecido após a apresentação no
Templo, chegados os dias da purificação: “Entretanto, o menino crescia e
robustecia-se, enchendo-se de sabedoria, e a graça de Deus estava com Ele”
(Lc 2,40).
***
O Santo
Padre, verificando que deparamos “com os peregrinos que vão a santuários e
lugares queridos da devoção popular” e que, nestes dias, muitos “se puseram a
caminho para penetrarem na Porta Santa” aberta em todas as catedrais do mundo e
também em muitos santuários, acentua a peregrinação feita pela família
inteira: “pai, mãe e filhos vão, todos juntos, à casa do Senhor a fim de
santificarem a festa pela oração”. E julga que a peregrinação de Elcana e Ana,
com Samuel, e a de José e Maria, com Jesus, constituem “uma lição importante
oferecida também às nossas famílias”. Depois, avança para a dimensão da vida da
família como “um conjunto de pequenas e grandes peregrinações”. Assim, refere:
- “Maria e José ensinaram
Jesus a rezar as orações” – a peregrinação da educação para a oração.
– “Durante o dia, rezavam juntos”.
- “Ao sábado, iam juntos à sinagoga ouvir as Sagradas
Escrituras da Lei e dos Profetas e louvar o Senhor com todo o povo”.
- “Certamente rezaram, durante a peregrinação para Jerusalém,
cantando estas palavras do Salmo: “Que alegria, quando me disseram: Vamos para a casa do Senhor! Os nossos
passos detêm-se às tuas portas, ó Jerusalém” (122/121,1-2) – o cântico
típico das peregrinações hebraicas.
A partir da
lição da família de Nazaré, o Pontífice releva a importância de os membros das
nossas famílias “caminharem
juntos e terem a mesma meta em vista”. Neste “percurso comum”, que é “uma
estrada onde encontramos dificuldades” e “momentos de alegria e consolação”, devemos
partilhar também “os momentos da oração”. E os pais devem “abençoar os seus
filhos ao início do dia e na
sua conclusão”.
A este respeito, o Papa recorda o sentido inaugural de
bênção do sinal da cruz feito na fronte do filho no dia do Batismo – gesto a
replicar ao longo da vida como sinal de pertença ao Senhor e de confiança na
sua proteção.
Depois, comentando o final da peregrinação da família de
Nazaré quando Jesus tinha 12 anos, em que o evangelista afirma que “Jesus
voltou para Nazaré e era submisso a seus pais” (cf Lc 2,51), Francisco ensina:
“Também esta imagem contém um ensinamento estupendo
para as nossas famílias; é que a peregrinação não termina quando se alcança a
meta do santuário, mas quando
se volta para casa e se retoma a vida de todos os dias, fazendo valer os
frutos espirituais da experiência vivida”.
Porém, anota
que Jesus, “em vez de voltar para casa com os seus, ficou em Jerusalém no
Templo, causando uma grande aflição a Maria e a José que não O encontravam”. E entende
que, por este facto, Jesus terá pedido desculpa aos pais, embora o Evangelho o
não explicite, já que na interpelação de Maria se percebe “uma repreensão,
ressaltando a preocupação e angústia dela e de José”. E, apesar de, a meu ver, o
Menino não desperdiçar o ensejo para abrir um pouco o véu do ser e da missão messiânica,
voltou com eles para casa reforçando o valor da educação em família e, no dizer
do Papa, “para lhes demonstrar toda a sua afeição e obediência”.
E sobre a peregrinação
familiar Francisco diz que fazem parte dela “também estes momentos que, com o Senhor,
se transformam em oportunidades de crescimento, em ocasiões de pedir e receber
o perdão, de demonstrar amor e obediência”.
Finalmente, o
Pontífice considera o Ano da Misericórdia uma peregrinação especial em que se
perde a vida de pecado e se encontra e “experimenta a alegria do perdão”. E pretende que, nesta peregrinação,
cada família cristã possa “tornar-se um lugar privilegiado” em que se
vive o perdão como “a essência do amor, que sabe compreender o erro e pôr-lhe
remédio”, já que “é no seio da família que as pessoas são educadas para o
perdão, porque se tem a certeza de serem compreendidas e amparadas, não
obstante os erros que se possam cometer”.
Apelando a
que não se perca “a confiança na família” confia a todas as famílias “esta
peregrinação doméstica de todos os dias, esta missão tão importante de que,
hoje, o mundo e a Igreja têm mais necessidade do que nunca”.
***
Assim,
por mais perdas que a peregrinação, sobretudo a peregrinação da vida, nos
ocasione, maiores e melhores devem ser os pontos de encontro que nós dela
poderemos haurir. Requer-se para isso atenção e disponibilidade. Por outro
lado, a família – no seu sentir, decidir e caminhar em conjunto – pode constituir
espaço privilegiado para a aprendizagem e para o exercício da sinodalidade a que é chamada a Igreja a
ser e a exercitar.
2015.12.28 –
Louro de Carvalho
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