Hoje
o mundo é outro, mas os homens e mulheres são, de igual modo, feitos e feitas da
mesma carne e do mesmo sangue. E, nestes dias de Natal, multiplicam-se as
preocupações, as azáfamas, as viagens, as prendas; montam-se ações policiais de
segurança e apoio nas estradas e nos espaços de aglomeração de povo; e assiste-se
ao fluxo e refluxo de migrantes pelas mais diversas razões, em que pontificam a
guerra e a exploração do homem pelo homem. Também assim era há dois mil e
poucos anos.
Então,
eram, a par das guerras, ciladas e sedições, as deslocações para responder a um
recenseamento que o imperador determinou para saber quem tinha e com quem podia
contar. Todos iam recensear-se, deslocando-se cada um à sua cidade de origem. O
movimento, a azáfama as preocupações eram tantas e tamanhas que, no meio da
confusão, não restavam vagas para José e para Maria, que se encontrava grávida
e estava a chegar o tempo de dar à luz.
Contrastando
com o ambiente buliçoso da Cidade de Belém, aonde se deslocaram os membros da
família do que havia de nascer, descendentes de David, Maria deu à luz, com a
tranquilidade possível, numa gruta dos arredores, que servia de estábulo, o seu
filho primogénito, que envolveu em panos e reclinou na “acolhedora” e disponível
manjedoura (vd Lc 2,1ss).
E
o nascimento do Menino criou uma esfera de Glória nos Céus e inaugurou a paz na
Terra – disponível desde então aos homens de “boa vontade”. Os anjos cantaram e
os pastores, avisados pelos espíritos celestes, acorreram a visitar e adorar o
Deus feito menino, aparentemente igual a tantos outros meninos, mas sinalizado pelos
anjos e encontrado pelos pastores como o menino envolto em panos e reclinado
numa manjedoura.
O
sinal dado pelo profeta Isaías era o da normalidade, “a virgem conceberá e dará à luz um filho” (Is
7,14); o sinal dado
pelo anjo a Maria e, depois, a José é o da excecionalidade: “é obra do “Espírito Santo” (Mt
1,20); “o Espírito Santo virá sobre ti e a força do
Altíssimo te cobrirá com a sua sombra” (Lc 1,35); e o sinal dado aos pastores é
o da normalidade, mas da normalidade humilde e pobre: “Isto vos
servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa
manjedoura” (Lc 2,12).
Se
o nascimento de Jesus tivesse ocorrido num palácio ou mesmo numa casa da
cidade, dificilmente os anjos não seriam escutados no meio do bulício; e os pastores,
arredados da cidade e marcados pela simpleza de espírito e de vida, não teriam
acesso fácil ao Menino.
Diferentemente
do mundo dos homens, que fazem ruído e tumulto por causa dum importante acontecimento
– o censo populacional, o Céu prefere o ambiente de recolhimento (à
partida, não fácil e nada confortável)
em que pontifique a discrição, o sossego, a contemplação e, sobretudo, a
serenidade. Tanto assim é que os anjos cantam e avisam os que estão atentos; e
os pastores, atentos e pressurosos, mobilizam-se para irem ver o que aconteceu.
“E, depois de terem visto, começaram
a divulgar o que lhes tinham dito a respeito daquele menino. Todos os
que ouviram se admiravam do que lhes diziam os pastores.” (Lc
2,17-18).
Este ambiente de serenidade ativa levou os
pastores a divulgar
efetivamente “o que lhes tinha sido dito a respeito do menino” (Lc
2,17) e a voltar, “glorificando e louvando a Deus por tudo o que
tinham visto e ouvido, conforme lhes fora anunciado” (Lc 2,20). Por seu turno, na sua
serenidade contemplativa e sem descurar os cuidados maternos, “Maria conservava todas estas coisas,
ponderando-as no seu coração” (Lc 2,19).
***
Não podemos deixar de atender a
que, por ocasião da exultação do Batista no seio materno e do reconhecimento da
maternidade divina de Maria por Isabel, a mãe do Messias, lembrada das palavras
do anjo de que o Senhor está com ela,
entoou o Magnificat pela misericórdia
de Deus, que se estende de geração em geração (cf Lc 1,50.54), e Zacarias procedeu de forma
similar louvando o Senhor, que, “mercê do seu coração misericordioso, nos
visita como sol nascente, para iluminar os que jazem nas trevas e na
sombra da morte e dirigir os nossos passos no
caminho da paz” (cf Lc 1,72.78-79).
Ora, já o
nascimento de João se operou para que ele fosse “à frente do Senhor com o espírito
e o poder de Elias, para fazer voltar os corações dos pais a seus
filhos e os rebeldes à sabedoria dos justos, a fim de proporcionar ao Senhor um povo com boas disposições”
(Lc
1,17). Agora o Natal do Senhor surge para Glória de Deus
e paz aos homens tirando do mundo todo o pecado (cf Mt 1,21; Lc 1,77; Jo 1,29) (pecado pessoal e o pecado estrutural).
Porém,
esta glória de Deus e esta paz aos homens não se impõem pela força, mas pela
serenidade ativa, concitando a boa vontade dos homens e testemunhando a proximidade
misericordiosa de Deus pela contemplação de Deus e do mundo e pelas atitudes para
com os outros. E, neste sentido, é mister propor com serenidade e convicção e
travar persistentemente a batalha da educação. Não é, pois, com a guerra, a perseguição,
a exploração e o poder do dinheiro que se faz a paz. A filiação divina e a
fraternidade conquistam-se, indo ao encontro da iniciativa de Deus, que nos
apresenta o dom, mas não se compram por bens perecíveis, sobretudo pelo veneno
do dinheiro.
A misericórdia
é lúcida e límpida como o olhar da criança, serena como o luar da noite
estrelada, quente como o sol de primavera de céu límpido, ardente como a fogueira
calma e calibrada, ágil como o movimento dos anjos, ativa como a caminhada curiosa
dos pastores e natural ou franciscana como o ambiente ecológico e cósmico do
presépio.
***
Temos de encontrar um lugar para o Natal sereno
de Cristo por entre os folhos e refolhos deste mundo de conflito, azáfama e hipocrisia,
de adulteração das festas e dias santos/feriados (cujo sentido se ignora, apouca ou despreza, mas de
cujo benefício se goza), de postergação daqueles que temos por
incómodos ou inúteis, de carne para canhão do espezinhamento, exploração e mercantilização
dos indefesos e carentes.
O presépio
edificado nas igrejas, nas casas e nas capelas tem de vir para a rua – não tanto
para a rua das exposições culturais e folclóricas, mas para a rua dos
peregrinos, dos refugiados, dos migrantes, dos sem-abrigo, dos doentes, das escolas
e dos que têm de trabalhar em tempos incómodos para que os outros disponham do conforto
necessário. O presépio tem de vir para os centros comerciais, mas não para
ficar arredado na dobra da vitrina ou amalgamado com o Pai Natal ou com meia
dúzia de geringonças, mas para servir de luzeiro de verdade e de serenidade
para as pessoas, de modo que elas sejam humanas, justas, fraternas e solidárias.
Será
na serenidade que os homens compreenderão que o natal de Deus será
verdadeiramente natal de Deus quando for natal do homem todo e de todos os
homens. Santo Natal!
2015.12.24 – Louro de Carvalho
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