quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Sobre o VIII Centenário da Magna Carta

Estava a ver que deixava terminar o ano de 2015 sem me referir ao VIII Centenário da Magna Carta, não só pela importância do texto em si como da mitificação que dele se fez e cujas repercussões influenciaram o devir dos povos.
Com efeito a Magna Carta vale menos pelo que sucedeu há 800 anos do que por aquilo que os séculos dela fizeram: um poderoso mito na longa história da limitação do poder absoluto dos monarcas e no caminho que permitiu abrir na rota da democracia representativa e da aposta na afirmação das liberdades individuais.
Assim, em vários países do mundo, com relevo para a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, se comemorou, a 15 de junho deste ano de 2015, o 8.º centenário da mítico-histórica Magna Carta.
Certamente que os seus subscritores de 15 de junho de 1215 devem ter dado inúmeras voltas e cambalhotas na tumba face à excecional notoriedade de que os vindouros revestiram o célebre escrito enquanto fonte de inspiração da democracia moderna.
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Efetivamente, naquele dia do ano de 1215, os principais dignitários do clero e os barões ingleses impuseram a John Lackland (João sem Terra), ante a fragilidade do medíocre rei em consequência da sua derrota em Bouvines e das dificuldades que as relações com a Igreja lhe criaram, uma espécie de tratado que seria mais tarde designado por Magna Carta ou Grande Carta das Liberdades. É um complexo e desordenado documento de 63 artigos – redigido em latim, negociado e assinado na pradaria de Runnymede, junto ao rio Tamisa, perto de Windsor – em que alguns veem a mais remota origem do regime parlamentar. Foi originalmente designado como Carta de Runnymede, depois como Grande Carta e, no século XVII, foi-lhe atribuído o título, que perdura como designação consagrada, de Magna Carta.
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João deve o cognome “sem Terra” ao facto de o pai não o haver dotado de terras por ocasião do nascimento. Tornado rei após a morte de três irmãos. Foi um soberano azarento e de má fama. Violento e sem escrúpulos, em breve entrou em desavenças com o alto clero e os barões. Apresentou oposição à eleição do novo arcebispo de Cantuária, Stephen Langton, que tradicionalmente ocupava o lugar de ministro principal do Reino. Recusou a arbitragem do Papa Inocêncio III e apoderou-se de terras do arcebispado. Inocêncio III, por sua vez, excomungou o rei, depois de ter ordenado como represália contra ele a paralisação da vida religiosa no país, com a proibição do toque de sinos e a celebração dos sacramentos e de outros ofícios religiosos.
Entretanto, o rei aliou-se ao conde de Flandres e ao imperador da Alemanha contra Filipe Augusto, rei de França. E, tendo ficado vencido, em 1214, na batalha de Bouvines, perdeu  a maioria dos domínios que tinha em França, designadamente o ducado da Normandia, de onde partira Guilherme, o Conquistador, para se apossar de Inglaterra. João voltou abalado pela pesada derrota e com a Coroa à beira da bancarrota. Furiosos com o comportamento régio, abusos continuados e novas subidas de impostos, que consideravam ilegítimos, para financiar as expedições militares, os barões ingleses revoltaram-se; e, em maio de 1215, sublevaram-se também os habitantes de Londres, que se uniram aos nobres e ao alto clero. Ao rei não restou outra alternativa que não a submissão.
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Todavia, de acordo com Duroselle (1990), esta oposição ao poder real não é inédita nem tão singular como poderia parecer, como se explica a seguir.
A monarquia anglo-normanda, tornada angevina e aquitana, em razão das conquistas de Henrique II, o Plantageneta, em 1154, “terá sido o primeiro Estado verdadeiramente organizado na Europa” ou, se quisermos, o embrião ou ensaio do Estado moderno. No entanto, nessa monarquia, as comunas (forma de progresso irreversível na marcha para a autonomia das comunidades) encontravam-se mais submissas ao rei que em qualquer outro lado – situação que se iria modificar mercê da força tradicional dos governos locais autónomos que a descentralização da Grã-Bretanha foi estabelecendo.
Nos reinos escandinavos, os reis não decidiam nada sem a aprovação de assembleias populares locais herdadas dos Vikings. Na Islândia e na Gronelândia, o governo era assegurado pela assembleia geral. Na Península Hispânica, as municipalidades autónomas dependiam dos reis, mas também aqui havia, há vários decénios, uma certa forma de parlamentarismo plasmada nas Cortes (as cortes de Leão surgiram em 1188), onde se reuniam os bispos, os nobres e os representantes das municipalidades autónomas, aliás numa certa evolução a partir das monarquias visigóticas em que o rei era eleito, embora vitaliciamente, e se apoiava nas decisões dos concílios visigóticos, enquanto assembleias nacionais mistas (políticas e religiosas).
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Apesar de muitos historiadores sublinharem que o texto da Magna Carta não é radicalmente inovador, ele consagra um princípio fundamental hoje badalado aos quatro ventos: ninguém está acima da lei. No caso de João sem Terra, exigia-se fundamentalmente que as determinações reais não resultassem da vontade momentânea e caprichosa do soberano, mas baseadas em lei previamente elaborada, promulgada e dada a conhecer.
O arcebispo Langton apresentou na prática a John Lackland (João sem Terra) a “Carta das liberdades”, assinada já anteriormente por Henrique I (filho de Guilherme) após a sua coroação em 1100, em que garantia os direitos da nobreza e prometia “abolir todos os maus costumes pelos quais o Reino de Inglaterra era injustamente oprimido.” O texto de 1215 vem garantir expressamente os privilégios do clero, regulamentar os direitos de sucessão e herança da nobreza, conceder a liberdade de circulação aos negociantes e confirmar os privilégios das cidades, dos portos e de Londres em particular. Por outro lado, nenhum imposto poderia vir a ser decretado sem o consentimento do “conselho comum do reino”, composto pelos dignitários do clero e principais chefes da nobreza (é fundamentalmente este o dado mais parlamentarista da Carta de Runnymede) – disposição que, séculos depois, havia de ter explosiva ressonância na América.
A este respeito, Carpenter (2011) escreve: “Essencialmente, o que aconteceu em 1215 reside no facto de o reino se ter revoltado e dito ao rei que tinha de obedecer às suas próprias regras”. Ou seja, o rei ficou a saber que não está acima da lei e que, se o monarca violar a lei e as normas do reino ou se se recusar a fazer justiça, os súbditos têm o direito de se insurgir “até que os abusos tenham sido reparados”.
A Magna Carta, que não sai do quadro da ordem feudal e até a consolida, segundo alguns historiadores, não significa, de modo algum, o esboço de um projeto constitucional no sentido moderno dos termos. Servia, antes, os interesses de uma pequena minoria de poderosos. Todavia, o complexo das suas disposições viria ser usado contra o arbítrio real e contra a tirania em geral.
Outra das suas mais simbólicas disposições é o estabelecimento da proibição das detenções arbitrárias: em nome do princípio habeas corpus ad subiiciendum, o corpo de homem livre não será detido ou preso ou desapossado dos seus bens, declarado fora da lei, exilado ou executado, exceto por julgamento dos seus pares segundo as leis do país. É a disposição que antecipa a instituição da figura do habeas corpus Act, em 1679.
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Negociada entre o rei e barões que falavam francês e redigida em latim, não se destinava ao povo, que falava inglês e era analfabeto. Porém, os bispos tinham imposto disposições de largo alcance, ainda hoje válidas, embora facilmente vilipendiadas O rei pretendia que o tratado ficasse em sigilo, mas o clero distribuiu cópias por todo o país. Traduzido em francês, e no fim do século XIII em inglês, tornou-se um texto público, que podia ser invocado e utilizado. Não obstante, a sua relevância não foi significativa nos tempos que se seguiram.
No fim da negociação, João sem Terra, que já não queria assinar o documento e sobreviveu apenas por um ano, terá perguntado aos inimigos porque é que com todas estas injustas extorsões não pediam o reino.
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Ao longo do tempo, a Carta foi revista várias vezes e depois praticamente esquecida. Reemerge, porém, no século XVII, no quadro da luta do Parlamento contra o absolutista Carlos I, transformada numa das principais armas contra a monarquia. Constituirá a base da Petição de Direitos que o soberano será forçado assinar. Decapitado o rei, a Carta passou de moda na Inglaterra.
Viria a reviver nas colónias americanas como instrumento de luta contra a tirania e os abusos da Coroa e do Parlamento britânicos – reinterpretada e transformada em símbolo do império da lei – e serviria de texto inspirador da independência da América e do seu modelo de democracia. O primeiro Congresso Continental de 1774 reivindica o direito à rebelião através da Magna Carta.
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O significado moderno da Magna Carta ultrapassa a sua história. O documento é reinventado e passa a ser o texto fundador do direito constitucional moderno, das liberdades individuais, do governo representativo, da separação dos poderes e da limitação das prerrogativas do Estado. Nesta perspetiva, será desviante olhar a Magna Carta no contexto da época em que foi redigida, dado que é mais relevante o papel revolucionário e institucional que veio a desempenhar. Com efeito, nenhum outro documento na História universal foi capaz de funcionar tantas vezes e em tantos lugares como paladino de um ideal e como tal objeto de celebração coletiva.
Cf:
- Afonso, A. Martins. Curso de História da Civilização Portuguesa. 6.ª ed. Porto: Porto Editora, s/d
- Carpenter, David. “Archbishop Langton and Magna Carta: his contribution, his douts and his hypocrisy”. In English Historical Review, CXXVI (2011), 1042-1065
- Duroselle, Jean-Baptiste. História da Europa. Lisboa: Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1990
- Fernandes, Jorge Almeida. “Magna Carta: Pouco interessa o que aconteceu em 1215”. In Público on line, de 15.06.2015


2015.12.30 – Louro de Carvalho

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