Estava
a ver que deixava terminar o ano de 2015 sem me referir ao VIII Centenário da Magna Carta, não só pela importância do
texto em si como da mitificação que dele se fez e cujas repercussões
influenciaram o devir dos povos.
Com
efeito a Magna
Carta vale menos pelo que sucedeu há 800 anos do que por aquilo que os séculos dela
fizeram: um poderoso mito na longa história da limitação do poder absoluto dos
monarcas e no caminho que permitiu abrir na rota da democracia representativa e
da aposta na afirmação das liberdades individuais.
Assim, em vários países do mundo, com relevo para a Grã-Bretanha e os Estados Unidos,
se comemorou, a 15 de junho deste ano de 2015, o 8.º centenário da
mítico-histórica Magna Carta.
Certamente
que os seus subscritores de 15 de junho de 1215 devem ter dado inúmeras voltas
e cambalhotas na tumba face à excecional notoriedade de que os vindouros
revestiram o célebre escrito enquanto fonte de inspiração da democracia
moderna.
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Efetivamente, naquele dia do ano de 1215, os principais dignitários
do clero e os barões ingleses impuseram a John Lackland (João sem Terra), ante a fragilidade do medíocre rei
em consequência da sua derrota em Bouvines e das dificuldades que as relações
com a Igreja lhe criaram, uma espécie de tratado que seria mais tarde designado
por Magna Carta ou Grande Carta das Liberdades. É um
complexo e desordenado documento de 63 artigos – redigido em latim, negociado e
assinado na pradaria de Runnymede, junto ao rio Tamisa, perto de Windsor – em
que alguns veem a mais remota origem do regime parlamentar. Foi originalmente
designado como Carta de Runnymede,
depois como Grande Carta e, no século
XVII, foi-lhe atribuído o título, que perdura como designação consagrada, de Magna Carta.
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João deve o
cognome “sem Terra” ao facto de o pai não o haver dotado de terras por ocasião
do nascimento. Tornado rei após a morte de três irmãos. Foi um soberano
azarento e de má fama. Violento e sem escrúpulos, em breve entrou em desavenças
com o alto clero e os barões. Apresentou oposição à eleição do novo arcebispo
de Cantuária, Stephen Langton, que
tradicionalmente ocupava o lugar de ministro principal do Reino. Recusou a
arbitragem do Papa Inocêncio III e apoderou-se de terras do arcebispado. Inocêncio III, por sua vez, excomungou o rei,
depois de ter ordenado como represália contra ele a paralisação da vida
religiosa no país, com a proibição do toque de sinos e a celebração dos sacramentos
e de outros ofícios religiosos.
Entretanto, o
rei aliou-se ao conde de Flandres e ao imperador da Alemanha contra Filipe
Augusto, rei de França. E, tendo ficado vencido, em 1214, na batalha de
Bouvines, perdeu a maioria dos domínios que tinha em França,
designadamente o ducado da Normandia, de onde partira Guilherme, o
Conquistador, para se apossar de Inglaterra. João voltou abalado pela pesada derrota
e com a Coroa à beira da bancarrota. Furiosos com o comportamento régio, abusos
continuados e novas subidas de impostos, que consideravam ilegítimos, para
financiar as expedições militares, os barões ingleses revoltaram-se; e, em maio
de 1215, sublevaram-se também os habitantes de Londres, que se uniram aos
nobres e ao alto clero. Ao rei não restou outra alternativa que não a
submissão.
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Todavia,
de acordo com Duroselle (1990), esta oposição ao poder real não é
inédita nem tão singular como poderia parecer, como se explica a seguir.
A
monarquia anglo-normanda, tornada angevina e aquitana, em razão das conquistas
de Henrique II, o Plantageneta, em
1154, “terá sido o primeiro Estado verdadeiramente organizado na Europa” ou, se
quisermos, o embrião ou ensaio do Estado moderno. No entanto, nessa monarquia,
as comunas (forma de progresso irreversível na marcha para a autonomia das comunidades) encontravam-se mais submissas ao
rei que em qualquer outro lado – situação que se iria modificar mercê da força
tradicional dos governos locais autónomos que a descentralização da
Grã-Bretanha foi estabelecendo.
Nos
reinos escandinavos, os reis não decidiam nada sem a aprovação de assembleias
populares locais herdadas dos Vikings.
Na Islândia e na Gronelândia, o governo era assegurado pela assembleia geral.
Na Península Hispânica, as municipalidades autónomas dependiam dos reis, mas
também aqui havia, há vários decénios, uma certa forma de parlamentarismo
plasmada nas Cortes (as cortes de Leão surgiram em 1188), onde se reuniam os bispos, os
nobres e os representantes das municipalidades autónomas, aliás numa certa
evolução a partir das monarquias visigóticas em que o rei era eleito, embora
vitaliciamente, e se apoiava nas decisões dos concílios visigóticos, enquanto
assembleias nacionais mistas (políticas e religiosas).
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Apesar
de muitos historiadores sublinharem que o texto da Magna
Carta não é radicalmente inovador, ele consagra um princípio fundamental
hoje badalado aos quatro ventos: ninguém
está acima da lei. No caso de João sem Terra, exigia-se fundamentalmente que
as determinações reais não resultassem da vontade momentânea e caprichosa do
soberano, mas baseadas em lei previamente elaborada, promulgada e dada a
conhecer.
O arcebispo Langton apresentou na prática a John
Lackland (João sem
Terra) a “Carta das
liberdades”, assinada já anteriormente por Henrique I (filho de Guilherme) após a sua coroação em 1100, em que
garantia os direitos da nobreza e prometia “abolir todos os maus costumes pelos
quais o Reino de Inglaterra era injustamente oprimido.” O texto de 1215 vem garantir expressamente os privilégios do
clero, regulamentar os direitos de sucessão e herança da nobreza, conceder a
liberdade de circulação aos negociantes e confirmar os privilégios das cidades,
dos portos e de Londres em particular. Por outro lado, nenhum imposto poderia
vir a ser decretado sem o consentimento do “conselho comum do reino”, composto
pelos dignitários do clero e principais chefes da nobreza (é fundamentalmente este o dado mais
parlamentarista da Carta de Runnymede) – disposição que, séculos depois,
havia de ter explosiva ressonância na América.
A este
respeito, Carpenter (2011) escreve: “Essencialmente, o que
aconteceu em 1215 reside no facto de o reino se ter revoltado e dito ao rei que
tinha de obedecer às suas próprias regras”. Ou seja, o rei ficou a saber
que não está acima da lei e que, se o monarca violar a lei e as normas do reino
ou se se recusar a fazer justiça, os súbditos têm o direito de se insurgir “até
que os abusos tenham sido reparados”.
A Magna Carta, que não sai do quadro da
ordem feudal e até a consolida, segundo alguns historiadores, não significa, de
modo algum, o esboço de um projeto constitucional no sentido moderno dos termos.
Servia, antes, os interesses de uma pequena minoria de poderosos. Todavia, o
complexo das suas disposições viria ser usado contra o arbítrio real e contra a
tirania em geral.
Outra das
suas mais simbólicas disposições é o estabelecimento da proibição das detenções
arbitrárias: em nome do princípio habeas corpus ad subiiciendum, o corpo de homem livre não
será detido ou preso ou desapossado dos seus bens, declarado fora da lei,
exilado ou executado, exceto por julgamento dos seus pares segundo as leis do
país. É a disposição que antecipa a instituição da figura do habeas corpus Act, em 1679.
***
Negociada
entre o rei e barões que falavam francês e redigida em latim, não se destinava
ao povo, que falava inglês e era analfabeto. Porém, os bispos tinham imposto
disposições de largo alcance, ainda hoje válidas, embora facilmente
vilipendiadas O rei pretendia que o tratado ficasse em sigilo, mas o clero
distribuiu cópias por todo o país. Traduzido em francês, e no fim do século XIII
em inglês, tornou-se um texto público, que podia ser invocado e utilizado. Não
obstante, a sua relevância não foi significativa nos tempos que se seguiram.
No fim da
negociação, João sem Terra, que já não queria assinar o documento e sobreviveu
apenas por um ano, terá perguntado aos inimigos porque é que com todas estas
injustas extorsões não pediam o reino.
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Ao longo do
tempo, a Carta foi revista várias vezes e depois praticamente esquecida.
Reemerge, porém, no século XVII, no quadro da luta do Parlamento contra o
absolutista Carlos I, transformada numa das principais armas contra a
monarquia. Constituirá a base da Petição de Direitos que o soberano será
forçado assinar. Decapitado o rei, a Carta passou de moda na Inglaterra.
Viria a
reviver nas colónias americanas como instrumento de luta contra a tirania e os
abusos da Coroa e do Parlamento britânicos – reinterpretada e transformada em
símbolo do império da lei – e serviria de texto inspirador da independência da
América e do seu modelo de democracia. O primeiro Congresso Continental de 1774 reivindica o direito à rebelião
através da Magna Carta.
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O significado
moderno da Magna Carta ultrapassa a
sua história. O documento é reinventado e passa a ser o texto fundador do
direito constitucional moderno, das liberdades individuais, do governo
representativo, da separação dos poderes e da limitação das prerrogativas do
Estado. Nesta perspetiva, será desviante olhar a Magna Carta no contexto da época em que foi redigida, dado que é
mais relevante o papel revolucionário e institucional que veio a desempenhar.
Com efeito, nenhum outro documento na História universal foi capaz de funcionar
tantas vezes e em tantos lugares como paladino de um ideal e como tal objeto de
celebração coletiva.
Cf:
- Afonso, A. Martins. Curso de História da Civilização Portuguesa.
6.ª ed. Porto: Porto Editora, s/d
-
Carpenter, David. “Archbishop Langton and Magna Carta: his contribution, his
douts and his hypocrisy”. In English
Historical Review, CXXVI (2011), 1042-1065
- Duroselle, Jean-Baptiste. História da Europa. Lisboa: Círculo de
Leitores e Publicações Dom Quixote, 1990
- Fernandes, Jorge Almeida. “Magna Carta: Pouco
interessa o que aconteceu em 1215”. In Público
on line, de 15.06.2015
2015.12.30 – Louro de
Carvalho
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