A
Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, vem, em
cumprimento do art.º 5.º da Convenção do
Conselho da Europa contra a Exploração Sexual e o Abuso Sexual de Crianças
(CCEESASC), estabelecer medidas de
proteção de menores e proceder à 2.ª alteração à Lei n.º 57/98, de 18 de agosto,
que estabelece os princípios gerais que regem a organização e o funcionamento do
registo criminal.
A
mencionada lei de 2009 estabelece no n.º 1 do seu art.º 2.º:
“No recrutamento para
profissões, empregos, funções ou atividades, públicas ou privadas, ainda que
não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, a
entidade recrutadora está obrigada a pedir ao candidato a apresentação de
certificado de registo criminal e a ponderar a informação constante do
certificado na aferição da idoneidade do candidato para o exercício das funções”.
Porém, na reta final da XII legislatura, em que pontificou Assunção
Esteves, foi aprovada, promulgada e publicada a Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto,
cujo artigo 5.º altera a susodita lei de 2009, nomeadamente, introduzindo um
n.º 2 (novo) ao aludido art.º 2.º, cujo
teor é o seguinte:
“Após o recrutamento a
entidade empregadora ou responsável pelas atividades está obrigada a pedir
anualmente a quem exerce a profissão ou as atividades a que se refere o número
anterior certificado de registo criminal e a ponderar a informação constante do
mesmo na aferição da idoneidade para o exercício das funções”.
Além disso, adita-lhe um art.º
6.º, em que a epígrafe “verificação anual” não condiz com o teor do artigo, e que
estipula:
“O disposto no n.º 2 do artigo 2.º é
aplicável ainda que o recrutamento tenha ocorrido em data anterior à entrada em
vigor da presente lei e que perdure durante a sua vigência”.
É de ter em conta que a
referida Lei n.º
103/2015, de 24 de agosto, constitui a 39.ª
alteração ao Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de
setembro, transpondo a Diretiva 2011/93/UE, do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 13 de dezembro de 2011, e criando o sistema de registo de
identificação criminal de condenados pela prática de crimes contra a
autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor. Configura ainda a 1.ª
alteração à Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, a 1.ª alteração à Lei n.º
67/98, de 26 de outubro, e a 2.ª alteração à Lei n.º 37/2008, de 6 de agosto.
***
É certo que o essencial do
procedimento imposto pelos normativos legais supracitados vem na sequência de
uma preocupação geral e de um complexo de ações aceites consensualmente. No entanto,
o aditamento do novo n.º 2 ao art.º 2.º da Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro,
constitui uma forma de excesso de zelo institucionalizada pelo legislador, desnecessária
e totalmente ineficaz. Além disso, no caso dos professores é descabida e só
manifesta o quadro do látego de desconfiança que se abate sobre os docentes,
criado por sucessivos governos e com o agrado de uma fatia considerável da
opinião pública.
A Lei n.º 113/2009, de 17 de
setembro, pretende dar cumprimento ao art.º 5.º da Convenção do Conselho
da Europa para a Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos
Sexuais – conhecida
também como o documento de Lanzarote.
Ora a norma
invocada da Convenção concretiza o estipulado no art.º 4.º do Capítulo II atinente
às “medidas preventivas”, que é do teor seguinte:
“Cada Parte toma as
necessárias medidas legislativas ou outras para prevenir qualquer forma de
exploração sexual e de abusos sexuais das crianças, e para as proteger”.
Em conformidade
com o estabelecido aqui, o art.º 5.º – respeitante ao “recrutamento,
formação e sensibilização das pessoas que trabalham em contacto com crianças” –
estipula que “Cada Parte toma as necessárias medidas legislativas ou outras”
para:
1. Sensibilizar as pessoas que
contactam regularmente com crianças nos setores da educação, saúde, proteção
social, justiça e manutenção da ordem, bem como nos setores relacionados com as
atividades desportivas, culturais e de lazer, para a proteção e os direitos das
crianças;
2. Garantir que essas pessoas tenham
um conhecimento adequado da exploração sexual e abusos sexuais das crianças,
dos meios de os detetar e da possibilidade prevista no n.º 1 do art.º 12.º.
3. Garantir que os candidatos às
profissões cujo exercício implique, de forma habitual, contactos com crianças não
foram anteriormente condenados por atos de exploração sexual ou abusos sexuais
de crianças.
E que
estabelece o n.º 1 do art.º 12.º, atinente à “comunicação de suspeitas de
exploração sexual ou abusos sexuais”?
“Cada Parte toma as necessárias
medidas legislativas ou outras para que as regras de confidencialidade impostas
pelo direito interno a determinados profissionais que estejam a trabalhar em
contacto com crianças não constituam obstáculo à possibilidade, para esses
profissionais, de comunicarem aos serviços responsáveis pela proteção à
infância qualquer situação relativamente à qual tenham razões para crer que uma
criança é vítima de exploração sexual ou de abusos sexuais”.
Por sua vez, os artigos 10.º, 16.º
e 23.º da Diretiva 2011/93/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de
dezembro de 2011 – que dispõem respetivamente sobre prevenção da reincidência, comunicação
e prevenção destes crimes de exploração sexual, abuso sexual e pornografia infantil
– nada impõem sobre a apresentação de certificados de registo criminal.
***
Sendo assim, parece-me que efetivamente
o velho n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, tem pleno cabimento,
pois, a apresentação do certificado do registo criminal, aquando da entrada ao serviço
da administração pública e/ou aquando do
recrutamento para profissões, empregos, funções ou atividades, públicas ou privadas,
cujo exercício envolva contacto regular com menores, constitui um importante
instrumento de conhecimento das entidades responsáveis para aferir da
idoneidade dos seus colaboradores.
No entanto,
dada a generalização eletrónica do sistema de informação, não haveria necessidade
de serem os candidatos e os profissionais a arrostar individualmente com a incumbência
de requerer o certificado do seu registo criminal, embora lhes fosse imputada a
respetiva taxa.
A contrario, o novo
n.º 2 adicionado ao art.º 2.º pelo art.º 5.º da Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, não faz sentido, dado que um processo
condenatório em que seja acusado um cidadão funcionário é do domínio público,
facto que dificilmente escapa ao conhecimento dos gestores dos serviços em que
as referidas pessoas prestam serviço. Ademais, só são objeto de registo os
crimes sobre os quais recaiu sentença condenatória definitiva. Nestes termos, a
anualidade da apresentação do certificado de registo criminal não oferece qualquer
vantagem para a abonação da idoneidade do funcionário ou empregado.
Em coerência com o acabado de afirmar,
parece excrescente o art.º 6.º, também aditado à aludida lei de 2009, desde que
no arquivo da instituição ou serviço já esteja arquivado um certificado de registo
criminal oportunamente apresentado.
Não faz também sentido, embora
tolerável, a obrigatoriedade da apresentação anual do certificado por parte dos
professores que celebram contratos de trabalho a termo por mais de 180 dias e estiverem
ao serviço em anos consecutivos, uma vez que, mesmo que mudem de entidade
empregadora pública, o seu processo documental individual é convenientemente transferido.
Por isso, não deveria ter razão a Fenprof quando lamenta perante os factos:
“Mais uma obrigação burocrática
que recai sobre os docentes, nuns casos anualmente, mas, em outros, várias
vezes no mesmo ano, bastando a um professor que não pertence aos quadros ser
contratado, no mesmo ano, por mais que uma “entidade recrutadora”, passado que esteja o curto prazo de
validade da certidão”.
Mais: não se entende que esta
medida preventiva se aplique indistintamente a todos os professores, já que a
maior parte deles não trabalha permanentemente com uma turma e sendo o seu risco
de ocorrência de crime normalmente escrutinado. Ou será que também vão exigir a
apresentação do certificado a professores universitários ou a autarcas, que
podem trabalhar eventualmente com estudantes que não tenham ainda 18 anos? É
que as referidas Convenção e Diretiva consideram como “criança” uma pessoa com menos de 18 anos de idade (vd alínea a do art.º 2.º da Diretiva 2011/93/UE, do Parlamento
Europeu e do Conselho, e a mesma do art.º 3.º da CCEESASC).
Depois, há que fazer um reparo.
Várias instâncias nacionais e internacionais pretendem a declaração de
imputabilidade, a capacidade e eleitoral ativa e passiva, a maioridade aos
jovens que tenham completado os 16 anos de idade e a maior parte das nações
estabelecem aquela como idade núbil. Porém, para o efeito das citadas Convenção
e Diretiva, continuam a ser considerados “crianças”, apesar de toda a
maturidade que lhe reconhecem. Será plausível que o pediatra atenda na mesma consulta
filho ou filha e mãe e pai casados, só porque ainda não completaram 18 anos?
***
O que vem sendo dito contra a
recente lei de agosto não invalida a concordância com a obrigatoriedade da
comunicação de quaisquer factos que possam configurar sustentadamente a prática
crimes de pedofilia, abuso sexual de menores e exploração infantil (sexual ou outra). No entanto, os
recetores das aludidas comunicações deverão, a meu ver, ponderar a fiabilidade
das comunicações e a idoneidade de quem as produz. Não vá suceder que tudo não
passe de intriga, produto de imaginação e/ou pretexto para ajuste de contas e hábil
candidatura a indemnização.
Também não quero tirar uma vírgula
ao legalmente estabelecido quanto a verdadeiras medidas de prevenção e combate
aos crimes que estão sobre a mesa da discussão, bem como em relação às necessárias
e sempre insuficientes medidas educativas. Todavia, elas terão mais força e
eficácia se enquadradas no contexto de preocupação e educação para, com e pelos
valores – não só os da sexualidade, mas de todos os que devem emoldurar o
perfil do cidadão de corpo inteiro.
Não me parecem suficientemente justificativos
para a devida tomada de posição cívica:
O entupimento dos tribunais com os pedidos de certidão de registo
criminal; a inundação das secretarias dos mega-agrupamentos pelas ditas certidões;
ou a isenção do pagamento dos 5 euros estabelecidos.
Concordo com a FENPROF, que propõe a
revisão do procedimento na forma de concretização, e com o SPZ,
que censura o ME por não dispor de uma base de dados dos funcionários que obste
à apresentação anual do cadastro, ou com Filinto Lima, da Andaep, que defende o
cruzamento de dados das escolas com o MAI para detetar casos de risco. Talvez os
serviços respetivos do Estado devessem fazer com que deputados e governo
produzissem melhor legislação em termos de lucidez, equidade e texto.
Será
que o Primeiro-Ministro “Pingo Doce” (António de Jerónimo e Martins!) vai conseguir isso?
2015.12.04 – Louro de Carvalho
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