domingo, 6 de dezembro de 2015

Acordo de confidencialidade e segredo de justiça

A Procuradora-Geral da República (PGR), em conversa com os jornalistas, a 4 de dezembro, à margem do IV Seminário do Departamento de Ação e Investigação Penal (DIAP), promovido pelo DIAP de Lisboa, subordinado ao tema “Violência nas relações íntimas e contra pessoas especialmente vulneráveis”, afirmou que o “compromisso de confidencialidade” que se pretende impor no próximo ano judicial exprime a preocupação de proteger o segredo de justiça e tenta evitar as suas violações.
Joana Marques Vidal aludia ao facto de o Plano de Atividades para o DCIAP para o ano judicial 2015/2016 impor o “compromisso de confidencialidade”, a assinar por magistrados e outros investigadores, pelo motivo e com a finalidade referidas.
Interpelada pelos jornalistas sobre se Amadeu Guerra, diretor do DCIAP, ao advogar a necessidade da imposição de um pacto de silêncio no âmbito do departamento que dirige e das entidades que se relacionam com ele, não estará a admitir e a supor que a violação do segredo de justiça parta dos mais altos responsáveis pelos processos, a Procuradora-Geral da República respondeu que não, frisando:
“Claramente que não é uma forma de admitir isso; é uma forma de exprimir a preocupação que decorre de vários procedimentos internos que temos tomado para a proteção do processo”.
Comentando o sentido da expressão “compromisso de confidencialidade” utilizada no Plano de Atividades do DCIAP, considerou tratar-se de “uma frase impressiva”, compaginando “o reflexo da preocupação” do Ministério Público em relação “às sucessivas violações de segredo de justiça”. E, para que se evite a violação do segredo de justiça, defendeu:
“Todos os magistrados do Ministério Público, todos os magistrados judiciais, todos os funcionários, todos os advogados e todos os intervenientes que, por qualquer forma, tenham acesso aos processos têm que fazer um esforço conjunto”.
A Procuradora-Geral, depois, embora admitindo que, nalguns casos, tal desiderato se conseguiu com menos êxito, assegurou que, em matéria de proteção de segredo de justiça, já houve avanços em “processos importantes”. E, neste sentido, apontou a promoção de várias práticas que têm vindo a ser aplicadas no interior do Ministério Público quanto à proteção do segredo de justiça, entre as quais destacou: a limitação do número de pessoas que têm acesso aos processos; a sinalização de quem é que tem acesso aos processos; e o acompanhamento da tramitação processual de forma a permitir responsabilizar todos os intervenientes.
Questionada sobre a divulgação na imprensa do registo audiovisual de interrogatórios a arguidos do caso vistos Gold, em especial o do interrogatório ao Dr. Miguel Macedo pela CMTV (correio da manhã TV), Joana Marques Vidal especificou que não se trata de violação do segredo de justiça, mas de crime de desobediência, “porque nestes casos a comunicação social não pode emitir nem reproduzir os vídeos” e concluiu que, “havendo um crime o Ministério Público decidiu instaurar um inquérito”.
No atinente à necessidade de melhoria do novo mapa judiciário, a magistrada de topo referiu ainda não ter havido qualquer audiência com a ministra da Justiça, Francisca Van Dunen, para abordar o tema.
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O susodito “compromisso de confidencialidade” constitui uma das “Metas, ao nível processual”, que integra o n.º 2 (Orientações de política criminal e prioridades ao nível da investigação criminal e Coordenação) da parte “II. OBJETIVOS PROCESSUAIS” do Plano de Atividades do DCIAP para o Ano Judicial de 2015/2016, subscrito por Amadeu Guerra em 23 de outubro de 2015.
No que a esta matéria diz respeito, o teor do texto referenciado é o seguinte:
“Em relação aos inquéritos mais recentes é fundamental, desde logo, dar primazia aos inquéritos de investigação prioritária, disponibilizando os meios humanos e técnicos necessários [a desenvolver adiante]. O titular do inquérito deve liderar, de forma efetiva, a investigação e procurar – com o contributo e intervenção do(s) órgão(s) de polícia criminal – delimitar, o mais rapidamente possível, o objeto do inquérito, elencar os recursos necessários, propor a constituição de equipas multidisciplinares quando necessárias, bem como sugerir ao Diretor a afetação de pessoas/entidades especializadas que possam coadjuvar o Ministério Público. É imprescindível e fundamental – em função da natureza do processo e dos factos e pessoas que estão sob investigação – estabelecer regras muito claras e eficazes que, desde a instauração do inquérito, assegurem o segredo de justiça. Para além de serem observadas regras especiais de confidencialidade em relação ao registo do inquérito nas aplicações informáticas (face à natureza do mesmo), é fundamental estabelecer regras que acautelem a “reserva do inquérito”, que limitem o acesso ao processo às pessoas afetas à investigação. Por outro lado, devem ser estabelecidos [se necessário por escrito] compromissos e procedimentos a observar na ‘circulação do inquérito’ entre o DCIAP, os OPC e JIC do TCIC. Devem, ainda, ser estimulados “compromissos de confidencialidade” entre a ‘equipa de investigação’.”.
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Como se pode verificar, não se trata apenas de um “compromisso de confidencialidade”, mas do estímulo a ‘compromissos de confidencialidade entre a ‘equipa de investigação. Estes compromissos estão previstos num regime de complementaridade com outras medidas que incluem o estabelecimento, se necessário por escrito, de compromissos e de procedimentos “a observar na ‘circulação do inquérito’ entre o DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal), os OPC (Órgãos de Polícia Criminal) e JIC (Juízes de Instrução Criminal) do TCIC (Tribunal Central de Instrução Criminal) ”. E inscrevem-se no estabelecimento, considerado como fundamental, de “regras que acautelem a ‘reserva do inquérito’, que limitem o acesso ao processo às pessoas afetas à investigação”, bem como o estabelecimento deregras especiais de confidencialidade em relação ao registo do inquérito nas aplicações informáticas”.
Compreende-se que se imponha o estabelecimento de regras práticas que determinem os procedimentos necessários e convenientes para acautelar a reserva do inquérito, no quadro da eficácia na aplicação da lei. Porém, resulta estranho que, para garantir o cumprimento da lei no atinente ao segredo de justiça, nos casos em que a lei o impõe, se equacione a necessidade da formulação de um compromisso de confidencialidade seja entre quem for, sobretudo se escrito. O cumprimento da lei e da sua regulamentação não depende da vontade dos seus destinatários. Era o que faltava! Esta exigência do diretor do DCIAP só mostra a fraqueza do Estado em geral e a impotência do poder judiciário em preservar a índole reservada da tramitação processual.
Por outro lado, a ideia de consignar do plano de Atividades do DCIAP revela, a meu ver, não só a preocupação pela proteção do segredo de justiça nos casos em que a lei o impõe, mas a convicção, para não dizer a verificação, de que a sua violação parte dos operadores de justiça, quiçá do próprio DCIAP ou dos JIC do DCIAP. Não pode aceitar-se, assim, a interpretação de Joana Marques Vidal da expressão “compromisso de confidencialidade” utilizada no Plano de Atividades do DCIAP como sendo apenas “uma frase impressiva”.
Depois, há uma coisa que impressiona e que foi pouco notada pela Comunicação Social: estas medidas dizem respeito “aos inquéritos mais recentes”. Nada se diz em relação aos futuros e a outros mais antigos. E porquê? Gostava de obter uma resposta, que ninguém dá.
É claro que se concorda com o Diretor do DCIAP ao exigir a “primazia aos inquéritos de investigação prioritária” e a disponibilização dos meios humanos e técnicos necessários”, bem como a exigência de liderança efetiva da investigação por parte do titular do inquérito e a necessidade da rápida delimitação do objeto do inquérito, do elenco dos recursos necessários e da proposta de equipas multidisciplinares. Porém, é estranha a definição da necessidade de compromissos de confidencialidade, que devem decorrer da lei e/ou da natureza das coisas.
Não penso que a Procuradora-Geral tenha razão na sua postura de entendimento sobre a publicação de material constante dos processos judiciais ou na publicação de textos e imagens dos interrogatórios. É óbvio que se trata de crime de desobediência a contrariação de uma ordem expressamente formulada pela competente autoridade judicial. Tal é o caso, por exemplo, da publicação de material constante do processo do ex-recluso n.º 44 do Estabelecimento Profissional de Évora à revelia da decisão judicial que impende sobre o grupo Ecofina. Porém, o conhecimento público que se tem de conteúdos do processo judicial de Pinto de Sousa, incluindo excertos de interrogatórios, publicado por alguma imprensa, configura violação do segredo de justiça, tal como acontece com as imagens do interrogatório ao arguido Macedo divulgadas pela CMTV. Alguém, do Ministério Público ou do TCIC forneceu aqueles dados após órgãos de comunicação que os utilizaram para satisfação de seus desígnios.
Pode aduzir-se que tal aconteceu porque jornais e/ou jornalistas se constituíram assistentes nos referidos processos. Ora, a constituição de assistente num processo judicial confere o direito de acesso ao(s) processo(s) em causa e não o da revelação e divulgação dos conteúdos processuais respetivos. Assim, pode haver crime de desobediência se os assistentes foram formalmente advertidos da inibição de revelar, mas há, em todo o caso, revelação do segredo de justiça e abuso de confiança.
Quanto aos acertos a fazer ao mapa judiciário, é efetivamente verdade que a procissão governativa ainda nem saiu para o adro.
Finalmente, importa exigir que as autoridades judiciárias informem a opinião pública com verdade, fazendo a necessária gestão da informação, mas sem defraudar nem a opinião pública e as partes interessadas no inquérito e promovendo a punição dos abusos, nomeadamente aqueles que configuram crime.

2015.12.05 – Louro de Carvalho 

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