segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Transignificação da manjedoura e do presépio

Na quadra natalícia, o olhar dos cristãos dirige-se para a gruta de Belém e foca-se em especial no berço em que foi reclinado o corpo do Menino Infante. É óbvio que, dado que a gruta não era um palácio nem sequer uma casa, mas um estábulo de animais, o berço também não era berço de ouro ou berço de gente normal, mas a manjedoura de animais.
Quando nós falamos de presépio, poderíamos referir-nos à manjedoura ou à gruta, mas temos em conta – e bem – todo o cenário que emoldura o lugar do nascimento de Jesus, com as figuras dos anjos (os primeiros cantores do Natal) e dos pastores, os primeiros visitantes e adoradores. Mas focamo-nos sobretudo no Menino com a Mãe e José. No entanto, o presépio cristão é humano e lá constam também as figuras humanas representativas de todos os tempos e, em especial, os que vêm de longe, figurados nos magos que ofereceram incenso, ouro e mirra (vd Mt 2,12). Mas o presépio também é cósmico e dele fazem parte a água, as pedras, os musgos, as árvores, as fontes e os rios, com suas pontes, os caminhos, os montes, os vales e os animais, nomeadamente as ovelhas e os cordeiros dos pastores e, ainda, o burro e a vaca, que Bento XVI não expulsou do presépio, como dizem os que não leram os seus livros sobre Jesus de Nazaré, mas apenas que os evangelhos não mencionam esses animais.
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Em todo o caso, gostaria de fazer uma reflexão sobre o significado menos imediato da manjedoura. A manjedoura aparece como o berço de Jesus na gruta onde se recolhiam animais, que serviam de transporte e outros apoios aos forasteiros na sua ida a Belém. Isto, porque, segundo o evangelista Lucas não havia lugar nas hospedarias belemitas para Maria e José e, consequentemente, para Jesus (cf Lc 2,7). Todavia, o significado da manjedoura ultrapassa o circunstancialismo evocado. Tanto assim é que os anjos assumiram como sinal do nascimento do Salvador, a dar aos pastores, o encontro de um menino envolto em panos e reclinado numa manjedoura (cf Lc 2,12). Com efeito, diz-nos o evangelista que Maria, completados os dias de dar à luz, teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura (cf Lc 2,6-7).
Lucas utiliza a palavra φάτνη (fátne), que significa tanto o “estábulo” como a “manjedoura”, conforme o contexto. Ora aqui, significa “manjedoura”. E “manjedoura” é uma espécie de tabuleiro fixo coloca a comida aos animais.
Sendo assim, a manjedoura de Belém é um expositor de Jesus que José e Maria contemplam com ternura, cantam os anjos do céu e visitam e adoram os pastores. Mas a manjedoura, que era lugar de exposição de alimento a animais famintos, não perdeu esta função alimentar. Tem é de ser entendida como prefiguração da mesa da ceia em que o Senhor, na véspera da sua Paixão, expôs o pão e o vinho – seu corpo e sangue – entregues pela multidão dos homens e Se deu em alimento. Já não se trata da manjedoura em que o Menino repousa em palhinhas, com frio neutralizado pela ternura da mãe e do pai adotivo e quiçá pelo bafo de animais, mas o Mestre e Senhor que sobre a mesa da ceia dá graças ao Pai, e, em sinal de aliança nova e eterna, Se entrega em alimento e em comunhão de caridade fraterna, tornando-se amigo e tornando seus amigos os discípulos.
A manjedoura é figura do altar do sacrifício de comunhão – mesa de refeição e cruz – que, unindo Céu e Terra e abraçando os quatro cantos do mundo, ostenta o Cristo crucificado a entregar-Se ao Pai e a derramar sangue e água do seu lado adormecido (vd Jo 19,31-35), donde nasce e onde se alimenta a Igreja como da mesa celeste.
Não é verdade que o sacrifício de comunhão (ou pacífico: zebah shelamîm) veterotestamentário intentava a comunhão com Deus dando-Lhe graças, incluía a imposição das mãos, a imolação da vítima e o derramamento de sangue sobre o altar, sendo que a parte melhor era pertença de Deus e, das outras, uma era para o sacerdote e outra para o oferente ou oferentes (Lv 3,1-17)?
Então, a manjedoura tem um significado futuro eucarístico, sacrificial, de imolação, de dádiva, de comunhão. O homem que olhe para a manjedoura de Belém tem de passar a focar-se na ceia (vd Lc 22,14-20) e na cruz (vd Lc 23,44-49) para ter a possibilidade de participar na bênção e na fração do pão à semelhança dos discípulos de Emaús (vd Lc 24,13-32). A manjedoura é, por antecipação, símbolo da mesa da eucaristia, da Cruz – em que Cristo dá a vida pela vida do mundo – e da Igreja, que dá Cristo em comunhão e conduz os homens a Cristo.
Por seu turno, φάτνη como estábulo, redil ou gruta há de significar lugar propício ao retempero de forças, à adoração/contemplação, ao exercício da ternura, e abrigo onde se ganha força para o apostolado, refúgio onde a Igreja, sob a proteção de Maria e de José, recebe e oferece o conforto de Cristo, espaço onde se entra em comunhão e intimidade e onde o alimento sabe melhor.
Não é verdade que o Natal, início da encarnação, se dirige à redenção, à cruz, à comunhão, à Igreja, ao mundo? Não é verdade que o Natal é o grande apelo à fé e o signo da esperança?

2015.12.14 – Louro de Carvalho

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