terça-feira, 30 de novembro de 2021

Ter “comunidades vivas e atuantes”

 

É o grande sonho do novo Bispo da Diocese de Viana do Castelo, Dom João Pimentel Lavrador, que partilhou com os presentes, no passado dia 27 de novembro, aquando da sua tomada de posse como prelado diocesano, sonhos, preocupações e prioridades, dizendo que a Igreja tem que “se empenhar decididamente” na construção de uma “humanidade nova”.

No encontro, organizado pela diocese do Alto Minho, no Centro Pastoral Paulo VI, o seu novo Bispo, na presença do Núncio Apostólico, Dom Ivo Scapolo, do até então Administrador Diocesano, Monsenhor Sebastião Ferreira Pires, e do Colégio dos Consultores, afirmou que “há uma humanidade nova, há uma sociedade nova, há uma civilização nova a construir”, é aqui que é preciso atuar e são “todos necessários”, tendo a Igreja aqui presente e atuante que “se empenhar decididamente”.

Em conferência de imprensa, pelas 12 horas, Dom João Lavrador frisou:

Um momento muito significativo para mim, sem dúvida, mas significativo para todos nós, estamos aqui para querer construir uma humanidade nova”.

Aos jornalistas, que prolongam a voz da Igreja a quem “só” a pode ouvir pela comunicação social, salientou que chegou a esta nova diocese “com confiança, com entusiasmo” e com a experiência que foi acumulando.

Escutar, dialogar e discernir” são verbos que significam as ações que o prelado enunciou ao iniciar o serviço pastoral naquela diocese minhota no Alto Minho.

No âmbito da escuta está o “desejo de querer conhecer até ao limite”, do que for possível, a realidade do “mais intimo e da riqueza” que aquele povo tem para oferecer, pelo que, entre as preocupações que partilhou, a principal “é fazer que todos participem”, que todos possam “dar a sua opinião, a sua sugestão”. Sobre o diálogo recordou que o Concílio Vaticano II ensina que a Igreja “está no mundo para dialogar com este mundo”. E, no quadro do discernimento, vincou a importância de discernir “num tempo com alguma perplexidade, às vezes, muito baralhado”, mas com “desejo de valores”. E acrescentou:

É preciso discernir o que é bom, o que interessa, aquilo que pode defender a dignidade humana, o que temos de valorizar como verdadeiro valor no meio do mundo.

O novo Bispo, provindo da Diocese de Angra, Açores garantiu a “ânsia de aprender”, de se oferecer, “o sonho de trazer tudo o que a Igreja hoje é” e, como bispo do Concílio Vaticano II, “não pode ser teórico”, mas “real, muito prático, e muito atento às pessoas”. E o novo responsável pela diocese que abarca o Minho, o Lima, o Neiva e o Âncora, revelando o sonho de ter “comunidades vivas e atuantes”, porfiou:

Gostaria de estar muito atento e procurar fazer sobressair na minha existência e atuação aquilo que é a alma deste povo do Alto Minho”.

O Bispo manifestou-se preocupado com o “grau de marginalidade” no mundo e alertou para os “gritos terríveis” dos refugiados e, em Portugal, para a pobreza, para as pessoas em situação de sem-abrigo, e para quem trabalha, mas sem “o necessário para o sustento da família”.

Referiu que a pandemia Covid-19 “criou” novas situações de pobreza e potenciou as situações que já existiam, referindo que há “interesses do mundo” que “não olham à condição da pessoa”. E, sublinhando que “a solidariedade pedida a partir do vírus podia ser aproveitada para livremente, conscientemente, humanamente, desenvolver uma maior equidade, uma maior solidariedade, fraternidade”, adiantou que “aumentou a procura de ajuda” na Cáritas Diocesana, e partilhou “apreço” pelo rendimento de inserção social. Por outro lado, os jovens, a quem é necessário “dar a formação para estarem conscientes da sua juventude, do mundo atual e do que a Igreja lhe pede”, e a família também são uma prioridade do Bispo que alertou para “uma mentalidade” que projeta para uma “sociedade envelhecida”.

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No domingo, dia 28, pelas 15,30 horas, decorreu a Eucaristia da entrada solene do novo bispo, na Sé de Viana do Castelo, com a presença de autoridades civis, eclesiásticas e militares.

Dom João Lavrador começou a homilia a “convidar à alegria”, porque a Igreja é de alegria “ou então não cativa”, nomeadamente os jovens, que têm uma linguagem própria e a “Igreja tem este desafio”.

O novo Bispo, defendendo “uma nova etapa de evangelização”, sublinhou que a “alegria contagia” e possui “uma transcendente maneira de se comunicar”.

Mais referiu que a “missão evangelizadora da Igreja”, que toca a cada batizado, “exige a formação cristã capaz de capacitar os cristãos para a sua vivência comunitária alicerçada na celebração da Eucaristia e, a partir dela, saber estabelecer um diálogo sereno, convicto e frutuoso com o mundo atual”. E sublinhou:

Numa atitude ecuménica e interconfessional, queremos caminhar em conjunto”.

O responsável católico indicou que a evangelização coloca a Igreja “ao serviço da pessoa e da sociedade cujo palco é o mundo concreto em que se vive” e, neste contexto, é o “mundo familiar, profissional, associativo, de serviço publico, cultural e político a exigir de todos os cristãos, pessoal e de forma associada, a presença renovadora do Evangelho”.

O venerando prelado sustentou que urge mudar os “paradigmas económicos, que só se corrigirão se colocarem a pessoa humana no centro das decisões e cujos projetos partam da primazia a dar aos pobres e excluídos”. Em relação aos excluídos e marginalizados que sentem a “dignidade amordaçada”, destacou que devem gritar, com o intuito de despertar a consciência “tantas vezes adormecida”. E, em termos gerais, apelou:

Ensinai-nos os caminhos que nos levam a ser uma única humanidade, fraterna, despojada e aberta para a partilha”.

Dom João Lavrador, realçando que a Igreja presente no mundo “terá de se empenhar na verdadeira ecologia ou ecologia integral”, explicitou:

A sua preocupação com a criação, partilhada com diversos sectores da sociedade, deve levar o cunho próprio que advém de uma autêntica teologia da criação e que se traduz em comportamentos de ascese, de austeridade, de defesa de recursos e de simplicidade”.

O também presidente da Comissão Episcopal da Cultura, dos Bens Culturais e das Comunicações Sociais dirigiu uma palavra aos jovens que estão a caminhar rumo à Jornada Mundial da Juventude 2023, em Lisboa, que considerou o “presente” da sociedade e da Igreja, não só o seu futuro. E exortou:

Convido-vos a integrardes as comunidades cristãs e a dar-lhes a força e o vigor, a renovação e a alegria que brotam do vosso entusiasmo e dinamismo”.

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O Bispo da diocese do Alto Minho é o sucessor de Dom Anacleto de Oliveira, que faleceu vítima de um acidente de viação, em setembro de 2020.

Dom João Evangelista Pimentel Lavrador nasceu a 18 de fevereiro de 1956, em Seixo, concelho de Mira, Diocese de Coimbra, e entrou, em 1967, no Seminário de Buarcos.

Em 1972 transitou para o Seminário Maior de Coimbra, completando os estudos liceais em 1974, prestando provas de exame no Liceu Dom Duarte, em Coimbra. Entre 1974 e 1980 frequentou o Instituto Superior de Estudos Teológicos (ISET), terminando o curso de Teologia em 1980. Após a ordenação sacerdotal em Coimbra, a 14 de junho de 1981, foi colocado como vice-pároco na paróquia de Pombal onde se dedicou especialmente à Pastoral Juvenil. Nesse período, lecionou nas Escolas Preparatória e Secundária de Pombal a disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC).

Em 1986, passou a integrar o Conselho Presbiteral sendo escolhido para secretário e, entre 1988 e 1990, frequentou a Universidade Pontifícia de Salamanca, terminando a sua licenciatura canónica na área da Teologia Dogmática com a apresentação da Dissertação “O Laicado no Magistério dos Bispos Portugueses, a partir do Vaticano II”. Em 1991 fez o curriculum escolar para o Doutoramento, cujo grau descrito em 1993, modificou e defendeu o “Pensamento Teológico de Dom Miguel da Annunciação – Bispo de Coimbra (1741-1779) e renovador da Diocese”. Em 24 de setembro de 1991, foi nomeado Reitor do Seminário de Coimbra e, a 21 de setembro de 1997, passa a exercer o cargo de Pró-Vigário Geral da Diocese e é designado membro do Conselho Episcopal e seu Secretário.

Em 19 de outubro de 1998, é nomeado Diretor do Instituto Universitário de Justiça e Paz e coordenador da Pastoral Universitária de Coimbra. Em 11 de agosto de 1999, é nomeado Cónego do Cabido da Catedral e Capelão do Carmelo de Coimbra. Entretanto, a Conferência Episcopal Portuguesa designa-o Secretário da Comissão Episcopal da Cultura, das Bens Culturais e das Comunicações Sociais.

Em 7 de maio de 2008 é nomeado Bispo Titular de Luperciana e Auxiliar do Porto. Em 29 de setembro de 2015 é nomeado Bispo Coadjutor de Angra, passando a titular a 25 de março de 2016. Desde 2017, é Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, dos Bens Culturais e das Comunicações Sociais. Foi nomeado Bispo de Viana do Castelo a 21 de setembro de 2021, Festa litúrgica de São Mateus.

Uma entrevista ao Bispo de Viana do Castelo, nomeado pelo Papa Francisco a 21 de setembro, foi o destaque do Programa ECCLESIA do domingo, dia 28, pelas 6 horas, na Antena 1.

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Deste Bispo é proverbial a invetiva da Irmã Lúcia, quando o sacerdote era capelão do Carmelo de Coimbra, de que não era por falar muito alto que iria converter as pessoas, sem que se especifique se, na ótica da freira que está a caminho dos altares, o capelão tinha dificuldade em escutar ou se era muito ativo e palavroso.

Devo dizer que, tendo-me cabido, por indigitação da respetiva professora de EMRC, dirigir umas palavras a Dom João Lavrador em nome dos professores presentes, aquando da sua visita à Escola Secundária de Santa Maria da Feira, na sua qualidade de Bispo auxiliar do Porto e no âmbito da sua Visita Pastoral à cidade e paróquia de Santa Maria da Feira, fiquei surpreendido com a agilidade, capacidade de diálogo e firmeza com os jovens, que o interpelavam, com os professores, que o acolheram de forma cordata e simpática. De igual modo, apreciei a sua demora e conversa com os professores no Open Space, onde permaneciam muitos professores em trabalhos nos grupos disciplinares e dos departamentos curriculares, apesar das instâncias do reverendo pároco em razão do tempo que deslizava sem que se desse conta.         

E, em sentido eclesial e social, o meu gosto é que o seu trabalho pastoral seja coroado de êxito: que a língua não lhe doa e fale, o silêncio seja eloquente, a ação seja profícua e a liderança seja mobilizadora por e para uma Igreja em marcha sinodal e a diocese seja exemplar.

2021.11.30 – Louro de Carvalho

Diminuição da idade legal da reforma devido à covid-19

 

Idade legal da reforma/aposentação recua em 2023 e penalizações por reforma antecipada são aliviadas já para 2022. É medida inédita moderada em Portugal a reversão, ainda que parcial, dum agravamento das condições de benefício ao cidadão.

O aumento da mortalidade da covid-19 levou a um recuo da esperança de vida a partir dos 65 anos e dita uma diminuição da idade legal da reforma/aposentação para 66 anos e 4 meses, em 2023 (menos 3 meses que o estipulado para 2022 – 66 anos e 7 meses) e do corte, em 2022, nas pensões antecipadas associado ao fator de sustentabilidade, que ficará então em 0,85943152, implicando uma penalização de 14,06% no valor da reforma/aposentação.

Isto quer dizer que a justificação deste pequeno desagravamento se estriba nas piores razões, ou seja, na redução da esperança de vida aos 65 anos mercê do acréscimo de mortalidade associado ao contexto de pandemia em que o país vive desde março de 2020, como refere o INE (Instituto Nacional de Estatística), que publicou novos dados sobre a matéria neste dia 29.

Efetivamente, o INE publicou o valor provisório da esperança de vida aos 65 anos no período entre 2019 e 2021, que foi estimado em 19,35 anos. Este valor traduz o número médio de anos que uma pessoa que atinja a idade exata 65 anos pode esperar ainda viver, mantendo-se as taxas de mortalidade por idades observadas no momento, e diminuiu 0,34 anos (4 meses) relativamente ao triénio anterior (2018-2020), em que a esperança de vida aos 65 anos se situou em 19,69 anos.

Esta é a primeira redução na esperança de vida aos 65 anos em Portugal desde, pelo menos, o triénio 1999-2001, quando começa a série de dados do INE sobre esta variação e em que a esperança média de vida aos 65 anos se situava nos 16,63 anos.

Armindo Silva, economista e ex-diretor na Comissão Europeia na área do emprego e da proteção social, vincando que “é a primeira vez que diminui” a esperança média de vida aos 65 anos e que se trata de “uma descida importante”, anota que “tinha havido um aumento secular em Portugal e nos outros países desenvolvidos” e que, ficando perto do nível registado no triénio 2014-2016, significa que “recuámos 5 anos na esperança de vida aos 65 anos”.

Segundo o INE, autoridade estatística nacional, a diminuição da esperança de vida aos 65 anos é “resultado do aumento do número de óbitos no contexto da pandemia de covid-19”. E os especialistas convergem na explicação. Assim, Armindo Silva afirma que “resulta da pandemia” e lembra que a taxa de mortalidade em Portugal oscilou entre os 10 por mil e os 11 por mil entre 2010 e 2019, enquanto em 2020 “passou para praticamente 12 por mil”, sendo que o pico da mortalidade por covid-19 aconteceu já nos primeiros meses de 2021.

Porém, é de ter em conta que este acréscimo da mortalidade resulta não apenas do impacto direto da pandemia, ou seja, óbitos por covid-19, mas também da mortalidade indireta, como óbitos associados ao adiamento de diagnósticos, cirurgias e acesso a cuidados médicos por o sistema de saúde estar sobrecarregado pelo contexto pandémico. Nestes termos, Jorge Bravo, professor da NOVA IMS (Information Management School da Universidade Nova de Lisboa) e especialista no tema das pensões, assegura que “a mortalidade, mesmo sem covid, está acima da média”.

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Segundo a fórmula prevista na lei, é a evolução da esperança de vida aos 65 anos a ditar a idade da reforma/aposentação e o fator de sustentabilidade das pensões, a cada ano. Assim, a idade legal da reforma/aposentação em Portugal que se situava em 65 anos, subiu para os 66 anos em 2014, com o Governo PSD/CDS-PP de Pedro Passos Coelho e, a partir daí, passou a evoluir de acordo com a esperança de vida aos 65 anos no triénio de referência, pelo que tem vindo a subir, em regra, um mês por ano. Já o fator de sustentabilidade das pensões, criado pela reforma da Segurança Social de Vieira da Silva, em 2007, visa refletir no valor das pensões os ganhos de longevidade e, por isso, evolui com a esperança de vida aos 65 anos. Inicialmente, este fator aplicava-se a todas as pensões, mas no Governo de Passos Coelho foi agravado e passou a incidir apenas sobre as reformas/pensões antecipadas.

Assim, a idade legal para acesso à pensão de velhice vai diminuir. No entanto, primeiro ainda subirá. Em 2022, a idade legal da reforma/aposentação já está definida nos 66 anos e 7 meses, mais um mês do que este ano. Contudo, a diminuição da esperança de vida aos 65 anos entre 2019 e 2021 vai ditar a redução da idade legal da reforma em 2023 para os 66 anos e 4 meses. A redução será de 2 meses face a este ano e de 3 meses na comparação com 2022. Desta forma, a idade legal da reforma/aposentação em 2023 recua para o patamar de 2018. Todavia, este valor terá de ser confirmado por portaria do Governo.

Também, fruto da queda na esperança de vida aos 65 anos, o corte sobre as reformas/pensões antecipadas associado ao fator de sustentabilidade das pensões diminuirá para 14,06% em 2022, valor que compara com 15,5% este ano e ficará perto do patamar de 2017 e 2018. É esse o corte, a ser confirmado por portaria do Governo, que enfrentará no valor da sua pensão, por esta via, quem se reformar antecipadamente em 2022 e não esteja protegido deste fator.

No atinente à susodita proteção do fator de sustentabilidade, é de recordar que nem todas as pensões antecipadas sofrem o corte ditado por este fator. Mercê de várias alterações legislativas desde 2017, um conjunto de reformas antecipadas deixou de sofrer esta penalização. É o caso de quem tem muitos anos de descontos, as longas carreiras contributivas. Assim, quem aos 60 anos de idade acumulou pelo menos 40 anos de descontos fica a salvo do fator de sustentabilidade, embora se aplique a penalização de 0,5% por cada mês de antecipação face à idade legal de reforma, pois, além do corte associado ao fator de sustentabilidade, as reformas/aposentações antecipadas sofrem ainda uma penalização de 0,5% por cada mês que falte para atingir a idade da reforma, tanto no caso dos funcionários públicos como no setor privado. Porém, quem só depois dos 60 anos perfaça 40 anos de carreira contributiva (por exemplo, aos 61 anos ou depois) sofre o corte do fator de sustentabilidade. Esta foi uma das principais fraturas entre PS e BE, que culminaram no voto contra dos bloquistas sobre proposta do Orçamento do Estado para 2022. 

É, entretanto, de referir que estas são indicações genéricas, já que podem verificar-se variações de caso para caso, uma vez que as regras também preveem bonificações por tempo de descontos que, nalgumas situações, podem atenuar os cortes.

Deve ainda considerar-se que da redução da idade legal da reforma/aposentação e da diminuição do fator de sustentabilidade pode resultar um aumento do número de reformas/aposentações em Portugal. Neste sentido, Armindo Silva vaticina:

Terá impacto, certamente, no número de novas reformas, que deve aumentar, porque vai mexer com os incentivos e, logo, com o comportamento das pessoas”.

Na verdade, quem estiver a pensar em reformar-se/aposentar-se antecipadamente terá, em 2022, um corte menor no valor da pensão pela via do fator de sustentabilidade. Além disso, em 2023, com a redução da idade legal da reforma/aposentação, sofrerá um corte também menor pela via da penalização de 0,5% por cada mês de antecipação (6% ao ano) face a essa idade legal. É que o cálculo para o número de meses de antecipação passa a ser feito tendo como referência uma idade legal da reforma de 66 anos e quatro meses e já não de 66 anos e sete meses como em 2022, ou de 66 anos e seis meses como em 2021.

Face a tais dados, é pertinente colocar a questão se a queda na idade da reforma/aposentação e no corte associado ao fator de sustentabilidade é pontual ou pode prolongar-se. A este respeito, os especialistas creem num efeito que se prolongará para lá de um ano. Assim, Jorge Bravo sustenta que “este ano e o próximo serão muito afetados na esperança de vida aos 65 anos por causa da pandemia, não só por causa da mortalidade direta, como indireta, que já se sente”, e aponta como “grande incógnita para os próximos anos a forma como vai evoluir a mortalidade indireta, devido à falta de assistência médica e adiamento de diagnósticos durante a pandemia”. E Armindo Silva considera que “o efeito é prolongado”.

Por conseguinte, a idade da reforma/aposentação pode voltar a descer em 2024 por causa da forma de cálculo da idade da reforma/aposentação e do fator de sustentabilidade em cada ano, que tem em conta a evolução da esperança de vida aos 65 anos e as taxas de mortalidade no triénio de referência. Por isso, os dados ora publicados pelo INE para o período entre 2019 e 2021 determinam o fator de sustentabilidade em 2022 e a idade da reforma/aposentação em 2023. E, em 2022, os números que o INE divulgará para o triénio 2020-2022 determinarão o fator de sustentabilidade em 2023 e a idade da reforma/aposentação em 2024. E, “nesse cálculo, já não será tido em conta o ano de 2019, que foi de baixa mortalidade, sendo considerados os anos de 2020 a 2022, com efeito total da pandemia”, como adverte Armindo Silva, cuja expectativa é “nova descida da idade da reforma em 2024”.

Armindo Silva chama ainda a atenção para duas variáveis. Uma delas é “como se vai comportar a mortalidade direta associada à covid-19 em 2021 e em 2022, na sequência da vacinação, e ainda para mais com a complicação do surgimento de novas variantes, como estamos a assistir”; outra, “ainda mais difícil de estimar, é a evolução da mortalidade não covid”, que dependerá da severidade da gripe este ano e da capacidade de ‘resiliência’ do SNS à pandemia”.

O especialista, falando de “fatores que tornam muito difícil estimar como a mortalidade vai evoluir”, defende que “a tendência aponta para uma redução da esperança de vida aos 65 anos que não é pontual”, e “para uma diminuição da idade da reforma que também não é pontual”.

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Recentemente, o Parlamento votou o fim dos cortes nas pensões antecipadas para pessoas com grau de incapacidade mínimo de 80% que, aos 60 anos, acumulem carreira contributiva de 15 anos com este grau de deficiência. Porém, a medida só entrará em vigor com o próximo OE 2022, cabendo ao próximo governo regulamentá-la num prazo de 6 meses. Porém, segundo o Boletim do Banco de Portugal, de junho de 2019, com as regras em vigor e recorrendo às projeções demográficas do Eurostat (EUROPOP2015), sobretudo na evolução dos ganhos de esperança média de vida aos 65 anos, é projetável a tendência para a evolução da idade da reforma/aposentação. Assim, os cerca de 5 anos de ganhos médios de longevidade projetados entre 2018 e 2070 traduzem-se no aumento da idade de reforma de 3 anos nesse horizonte.

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Face dos dados técnicos do INE, resta saber se os decisores políticos agirão em conformidade. Desde que Ferreira Leite exigiu a quem se aposentasse com menos de 60 anos a não auferição de pensão no valor do melhor vencimento ilíquido dos últimos e anos de serviço e sofresse desconto de 4,5% por cada ano que faltasse, a peregrinação das pensões é dolorosa. Haja luz!

2021.11.30 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Da memória subversiva à ousadia da esperança paciente e jubilosa

 

Não se trata de fazer a apologia da sedição, motim, terrorismo ou golpe de Estado, mas de tirar consequências do dinamismo inerente à economia da Salvação pela revolução sem violência.

Como escreve Frei Bento Domingues, quem se limita a repetir o Novo Testamento (NT) mata-o. Por isso, em vez da repetição mais ou menos floreada, a Bíblia, particularmente o NT, deve ser entendida à luz dos factos hodiernos e estes devem ser analisados à luz da Escritura para aí se divisarem os sinais de Deus nos tempos da atualidade, como preconiza o Vaticano II e como tão bem escreveu o Cardeal Dom José Policarpo em “Sinais dos Tempos(Ed. Sampedro, 1971).

Bento Domingues vê no Papa Francisco a referência para esta aplicação dinâmica da Sagrada Escritura nos tempos de hoje. Ora, falando no início de novo Ano Litúrgico, a 28 de novembro, no Ano C, em cujos domingos habitualmente nos acompanhará o evangelista Lucas, Francisco comentou, com os fiéis, peregrinos e visitantes presentes na Praça de São Pedro para a oração mariana do Angelus, “o Evangelho da liturgia do 1.º domingo do Advento, ou seja, o primeiro domingo de preparação para o Natal” (Lc 21,25-28.34-36), que nos fala da vinda do Senhor no fim dos tempos. Neste contexto, “Jesus anuncia acontecimentos desoladores e tribulações” em modo de literatura apocalíptica, mas convida-nos “a não ter medo”.

Com efeito, todo o Antigo Testamento (AT) estabelece a orientação do Povo escolhido, como sinal do rosto poderoso e misericordioso Deus junto dos demais povos, para a vinda do Messias. E tal orientação, em lugar de ser assumida como memória subversiva que levasse as estruturas sociais e económicas e as pessoas, nomeadamente os decisores políticos e religiosos (tantas vezes coincidentes) a questionarem-se e a ajustarem-se aos critérios de Deus, perderam-se muitas vezes ou na devassidão, na inquestionada confiança nos recursos humanos, na adoração aos deuses pagãos e no culto da religião marcada pelas práticas exteriores, ocas e sem sentido, sendo que os doutores da Lei carregaram as normas da Aliança com centenas de normas que tentavam impor aos membros mais fragilizados do Povo de Deus, do que resultou, em nome da impureza legal, a ostracização de doentes, nomeadamente leprosos, de cegos, de surdos, de surdos-mudos, de coxos, de hidrópicos, de pecadores (nomeadamente cobradores de impostos, meretrizes e adúlteras)

Hoje, corremos o mesmo risco de comodamente entendermos a Bíblia à nossa maneira, usá-la a nosso gosto e, por consequência, instalarmo-nos nas nossas modorras e interesses, ostracizando os que não pensam, não sentem ou não agem como nós ou não são do nosso grupo de eleitos. Nada se reforma, nada se subverte na nossa vida e as comunidades passam em tom repetitivo a agir como sempre se fez. E, se há motivo para agressão e revolta, é quando alguém, movido pelo espírito evangélico transposto para o hoje, parece beliscar as tradições que se apresentam erradamente como pluricentenárias ou os interesses de grupos com poder, prestígio ou riqueza.

Assim, o Messias esperado e que veio ao mundo tem dificuldade em entrar nas nossas vidas, subvertê-las e dar a volta completa às nossas comunidades tornando-as abertas, equitativas, solidárias e humanas. Assim, instala-se nas pessoas e nas comunidades o medo da morte, dos cataclismos, do futuro. Assim, a memória da vinda do Messias não passa dum dado romântico.

Por isso, o Santo Padre quer que esconjuremos da nossa vida o medo, não porque supostamente “tudo vai ficar bem”, mas porque Ele virá. Jesus voltará como prometeu e nos incitou: “Olhai e levantai as cabeças, porque a vossa libertação está próxima(“anakýpsate kaì aparate tàs kephlàs hymôn, dióti eggídzei hê apolýtrôsis hymôn”: Lc 21,28). É palavra de encorajamento: erguermo-nos e erguer a cabeça, pois, nos momentos em que tudo parece acabado, o Senhor vem para nos salvar. De facto, esperá-Lo com alegria mesmo no coração das tribulações, no furacão das crises da vida e dramas da história, é imperativo da fé na Salvação que Ele veio trazer. E Jesus mostra-nos, com uma forte advertência, o caminho para erguermos a cabeça, sem sermos absorvidos pelas dificuldades, sofrimentos e derrotas: “Tende cuidado para não vos pesar o coração (…) ficai acordados o tempo todo orando(“prosékete dè heautoîs mê pote barêthôsin hymîn hai kardíai… argrypneîte dè en pantè khairôi deómenoi”: Lc 21,34.36).

Nas palavras de Cristo, diz o Papa, vemos que a vigilância está ligada à atenção: estar atento, vigilante, sem distração, ficar acordado. Ora, estar vigilante significa “não deixar que o coração se torne preguiçoso e a vida espiritual se amoleça na mediocridade”. E há muitos cristãos adormecidos ou anestesiados pelo mundanismo espiritual: rezam como papagaios, sem ardor na oração, sem entusiasmo espiritual e pela missão, sem paixão pelo Evangelho. São cristãos que olham para dentro, incapazes de olhar o horizonte – o que leva a empurrar a barriga para a frente puxando as coisas por inércia, caindo na apatia, indiferente a tudo, exceto ao que lhes convém. Assim, a vida é tíbia e triste, sem esperança, sem felicidade.

Devemos, pois, como recomenda o Pontífice, estar vigilantes para não nos arrastarmos na rotina dos dias, para não sermos oprimidos pelas angústias da vida (cf Lc 21,34) e não nos pesarem os problemas da vida. E o trecho evangélico em referência constituirá belo e oportuno ensejo para nos interrogarmos sobre o que nos pesa no coração, nos sobrecarrega o espírito, nos faz sentar na cadeira da preguiça, enredados nos vícios, que esmagam e impedem de levantar a cabeça e que nos tornam indiferentes às cargas que impendem sobre os ombros dos irmãos.

Tais interrogações são boas, porque nos “ajudam a manter o coração longe da preguiça”. E há que advertir que a preguiça “é um grande inimigo da vida espiritual, da vida cristã”, pois faz-nos precipitar ou resvalar na tristeza, tira o prazer de viver e o desejo de fazer o bem. É um espírito negativo e maligno que lança a alma em torpor, roubando-lhe a alegria. Por isso, diz o livro dos Provérbios “Guarda o teu coração, porque dele flui a vida(Pr 4,23), pois guardar o coração significa estar vigilante. Concomitantemente com a vigilância temos o ingrediente essencial da oração . Na verdade, Jesus diz: “Ficai sempre acordados orando(Lc 21,36). A oração é que mantém acesa a lâmpada do coração. Assim, ao sentimos que o entusiasmo esfria, devemos rezar, porque a oração reacende o entusiasmo e leva-nos de volta a Deus, ao centro das coisas, ao sentido da existência. Por isso, até nos dias mais movimentados, não podemos negligenciar a oração, nem que seja proferindo invocações curtas. E é própria do Advento a invocação “Vem, Senhor Jesus(“Érkhou Kýrie Iêsoû”: Ap 22,20), importando que, tendo historicamente vindo há mais de 2000 anos, a sua memória e ação presentificantes questionem e remexam as nossas vidas pessoais e comunitárias, atirando para fora de nós os momentos e estruturas de injustiça, repressão, espezinhamento e opressão. A Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo não podem constituir peças, ainda que importantes, de romance histórico, mas têm de causar subversão nas pessoas, na Igreja e na Sociedade. De facto, o maior inimigo do cristianismo é o cristianismo descafeinado, que gera a barata rotina e a abominável tibieza (cf Ap 3,17).  

É belo este tempo de preparação para o Natal litúrgico e torna-se salutar se o coração de cada crente se abrir ao desígnio de Deus e nele abranger todos os irmãos e irmãs, privilegiando os mais frágeis. E o clamor “Vem, Senhor Jesus” torna-se compromisso para com Deus e com o próximo, sendo que a Senhora do Advento, “que esperava o Senhor com coração vigilante”, nos acompanha nesta caminhada ao encontro do Senhor que vem e quer fazer comunidades.

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Este passo do Evangelho proclamado na inauguração do Ano Litúrgico leva-nos aos últimos dias da vida terrena de Jesus, após a entrada triunfal em Jerusalém. Ele completa a catequese dos discípulos, anuncia-lhes tempos difíceis de perseguição e martírio e avisa-os de que será sitiada e destruída a cidade de Jerusalém (cf Lc 21,20-24), sendo neste contexto que surge o trecho em referência. E o vetor em torno do qual se estrutura este passo é a referência à vinda do Filho do Homem “com grande poder e glória” (“metà dynámeôs kaì dóxês pollês”: Lc 21,27) e no convite a cobrar ânimo e a levantar a cabeça porque “a libertação está próxima” (Lc 21,28). A palavra “libertação” (“apolytrôsis” – “resgate de cativo”) é palavra típica da teologia paulina (1Cor 1,30; cf Rm 3,24; 8,23; Cl 1,14…), a definir o fruto da ação redentora de Jesus em prol dos homens.

O projeto de libertação, concretizado nas palavras e gestos de Jesus, é apresentado como o resgate da humanidade prisioneira do egoísmo, pecado e morte. Trata-se, portanto, da libertação de tudo o que escraviza os homens e os impede de viver na dignidade de filhos de Deus.

A mensagem é clara: espera-nos um caminho de sofrimento e perseguição (cf Lc 21,12-19); no entanto, não podemos deixar-nos afundar no desespero porque Jesus vem. E, com a sua vinda gloriosa (de ontem, de hoje, de amanhã), cessará a escravidão que nos impede de conhecer a vida em plenitude e nascerá um mundo novo, de alegria e felicidade plenas.

Os sinais apocalípticos apresentados no Evangelho não são um quadro do fim do mundo, mas são imagens proféticas para falar do “Dia do Senhor”, o dia em que Ele intervirá na história para libertar definitivamente o Povo da escravidão, inaugurando uma era de vida, fecundidade e paz sem fim (cf Is 13,10; 34,4). O escopo não é amedrontar, mas abrir os corações à esperança, pois, quando Jesus vier com a sua autoridade soberana, cairá o mundo velho do egoísmo e escravidão e surgirá o dia novo da salvação/libertação sem fim. Por isso, é oportuno o convite à vigilância (cf Lc 21,34-36), já que é necessário manter atenção constante para que as preocupações terrenas e as cadeias escravizantes não nos impeçam de reconhecer e acolher o Senhor que vem.

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A passagem de Jeremias, que serviu de 1.ª leitura (Jr 33,14-16) contribui para esta subversão da memória da economia da Salvação. É o 10.º ano do reinado de Sedecias (587 a.C.). O exército de Nabucodonosor, da Babilónia, cerca Jerusalém e Jeremias está detido no cárcere do palácio real, acusado de derrotismo e traição (cf Jr 32,1). Parece a derrocada das esperanças e seguranças do Povo. Entretanto, o profeta proclama, em nome de Javé, a chegada dum tempo novo, em que Deus “pensa as feridas” do seu Povo e as cura e proporcionará a Judá “abundância de paz e segurança” (Jr 33,6). Porque o futuro imediato é tido como sem saída, a mensagem é tão surpreendente que o profeta é acusado de profetizar a inutilidade de resistir aos exércitos caldeus, a destruição de Jerusalém e o exílio de Sedecias (cf Jr 32,3-5). Não obstante, Jeremias anuncia a fidelidade de Javé às promessas davídicas (cf 2Sm 7): Deus fará surgir um descendente de David (“rebento justo”), que assegurará a paz e a salvação a todo o Povo e a todos os povos. Será um tempo de fecundidade e vida em abundância, sugerido pela palavra “zemah(“rebento”), nome com que o profeta Zacarias designa o “Messias” (cf Zc 3,8; 6,12).

A mostrar que o tempo do descendente de David é subversivo contra a ordem instalada, os profetas usam vocábulos ligados à área da justiça, que desempenham papel fundamental no anúncio profético. O descendente de David será justo e a sua tarefa consistirá em assegurar a justiça e o direito (“mishpat” e “zedaqa”), ou seja, funcionarão retamente os tribunais enquanto instituições responsáveis pela administração da justiça, que proporcionarão uma correta ordem social, fundamento da paz e prosperidade. E, enquanto Sedecias não garantiu a justiça nem assegurou a paz, tornando iminente a catástrofe, o rei, da descendência de David, anunciado pelo profeta, será o “ungido” de Deus, pelo que terá por missão restaurar a justiça e transmitir a abundância de vida e de salvação ao Povo de Deus. Por isso, chamar-se-á “o Senhor é a nossa justiça” e, por ele, Deus garante ao Povo um futuro fecundo, de justiça, bem-estar, salvação.

Face às promessas de Deus, o profeta elimina a nostalgia do passado, o medo do presente e instaura o regime da esperança. Fica para trás o saudosismo e abre-se a era da esperança.

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Em sede de 2.ª leitura (1Tes 3,12 – 4,2), vemos a comunidade cristã de Tessalónica fundada por Paulo, Silvano e Timóteo na segunda viagem missionária do Apóstolo, pelo ano 50 (cf At 17,1ss). No pouco tempo que ali pregou, Paulo desenvolveu intensa atividade missionária que originou numerosa e entusiasta comunidade, na sua maioria formada por pagãos convertidos (cf 1Ts 1,9-10). Porém, a obra paulina foi brutalmente interrompida pela reação agressiva da colónia judaica e teve o Apóstolo de fugir, deixando uma comunidade em perigo, pouco catequizada e meio desarmada na perseguição e provação. Preocupado, Paulo envia-lhe, depois, Timóteo a saber notícias e a encorajá-la na fé. E Timóteo, de regresso, encontra Paulo em Corinto e comunica-lhe notícias animadoras: continuam bem vivos e até se aprofundaram com as provações a fé, a esperança e o amor dos tessalonicenses (cf 1Ts 1,3; 3,6-8), os quais podem ser apontados como modelos aos cristãos das regiões vizinhas (cf 1Ts 1,7-8).

Todavia, apesar de tudo o que Deus edificara no coração daqueles crentes, a caminhada cristã dos tessalonicenses não estava concluída. Há que “progredir sempre” (“hína perisseúête mâllon”: 1Ts 4,1), sobretudo no amor para com todos (“i agápêi eis allêlous”: 1Ts 3,12), pois só nesta atitude de não conformação será possível esperar a “vinda de nosso Senhor Jesus com todos os seus santos(“en têi parousíai toû Kyríou hêmôn Iêssoû metà pántôn tôn agíôn autoû”: 1Ts 3,13).

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Em suma, agarrar o essencial da mensagem profético-evangélica impõe a mudança radical das mentalidades, dos corações, das atitudes e comportamentos nas pessoas e comunidades, erradicando do mundo de hoje todas as estruturas e mecanismos de pecado pessoal e social e transformando os agentes de pecado em apóstolos do bem. Ora isto é subversivo contra todos os interesses instalados, ou seja, contra o olhar de cada um para o seu umbigo, usando e descartando pessoas, objetos e estruturas, mas proclamando romanticamente a adesão ao Evangelho e/ou às causas humanitárias. Porém, este dinamismo subversivo não se constrói através das armas nem com uma espécie de ditadura do Evangelho ou dos cristãos. Esse equívoco deu maus resultados na História e criou muitas vítimas.

O dinamismo da vinda de Cristo no hoje, fundado na vinda histórica de Cristo no passado e na promessa da sua última vinda, consegue-se no trabalho, na vigilância orante, na esperança paciente e jubilosa, na postura da alegria irradiante e solidária. Isto mudará o mundo e criará as benfazejas estruturas de felicidade, mesmo que implique o martírio de muitos.   

2021.11.28 – Louro de Carvalho

sábado, 27 de novembro de 2021

Uma peregrinação às fontes da fraternidade, ancestralidade e humanidade

 

É assim que Francisco define a sua próxima viagem apostólica internacional a Chipre e à Grécia de 2 a 6 de dezembro. Em videomensagem difundida no horizonte da sua 35.ª viagem apostólica, saúda todos os habitantes daquelas “magníficas terras” – “todos, todos, não apenas aos católicos” – e lança um forte apelo em prol da integração dos migrantes, para que o Mediterrâneo não seja mais “um grande cemitério”.

É de registar que esta será a 35.ª viagem apostólica internacional do Pontífice, a terceira neste 2021, após a histórica visita ao Iraque em março e a peregrinação a Budapeste e Eslováquia em setembro passado. Em particular, Francisco será o segundo Papa a visitar Chipre e a Grécia: de facto, Bento XVI havia visitado a ilha do Mediterrâneo Oriental em 2010, enquanto São João Paulo II havia feito uma etapa no país helénico em 2001.

O Papa faz mesmo questão de comunicar “a alegria” de visitar estas “magníficas terras, abençoadas pela história, pela cultura e pelo Evangelho”, nas pegadas de “grandes missionários”, como “os apóstolos Paulo e Barnabé”. Com efeito, voltando às origens, a Igreja descobrirá a alegria do Evangelho.

A primeira grande fonte que poderá saciar a sede do Pontífice é a da fraternidade, “tão preciosa”, especialmente no contexto do caminho sinodal. E, a este respeito, considera:

Há ‘uma graça sinodal’, uma fraternidade apostólica que tanto desejo e com muito respeito: é a expectativa de visitar as queridas Beatitudes Chrysostomos e Ieronymos, Chefes das Igrejas Ortodoxas locais. Como um irmão na fé, terei a graça de ser recebido por vós e de vos encontrar em nome do Senhor da Paz.”.

E o abraço fraterno abarcará também “as irmãs e irmãos católicos” que se reúnem, nessas terras, em “pequenos rebanhos” amados pelo Senhor. A eles e a elas, o Papa levará “com carinho o encorajamento de toda a Igreja católica”.

A segunda fonte selecionada pelo Pontífice é a ancestralidade: “a antiga fonte da Europa”. Na verdade, Chipre representa “um ramo da Terra Santa no continente”, enquanto “a Grécia é a pátria da cultura clássica”. Portanto, na ótica de Francisco, a Europa “não pode prescindir do Mediterrâneo, mar que viu a difusão do Evangelho e o incremento de grandes civilizações”. Por consequência, diz o Papa, “o mare nostrum’, que liga tantas terras, convida a navegar juntos, a não nos dividir, indo cada um sozinho, especialmente neste período em que a luta contra a pandemia ainda exige muito empenho e a crise climática se avoluma”. De facto, prossegue, “o mar, que abraça muitos povos, com seus portos abertos, lembra-nos que as fontes de convivência estão no acolhimento recíproco”. Daí o forte apelo a não esquecermos os migrantes e refugiados:

Pensando naqueles que, nos últimos anos e ainda hoje, fogem das guerras e da pobreza, que chegam às costas do continente e em outros lugares, e não encontram hospitalidade, mas hostilidade e são até mesmo instrumentalizados. Eles são nossos irmãos e irmãs. Quantos perderam suas vidas no mar! Hoje, o ‘Nosso Mar’, o Mediterrâneo, é um grande cemitério.”.

A terceira fonte será, então, a da humanidade: será concretamente representada pela etapa em Mytilene – Lesbos, aonde o Papa irá na manhã de 5 de dezembro, para se encontrar com os refugiados, tal como fez há cinco anos. Neste âmbito, o seu propósito é como segue:

Peregrino na fonte da humanidade, irei novamente a Lesbos, na convicção de que as fontes do viver em comum só florescerão novamente na fraternidade e na integração: juntos. Não há outro caminho. E com esta ‘ilusão’ vou até vós.”.

Por fim, o Santo Padre invoca a bênção do Senhor para todos os habitantes de Chipre e da Grécia, levando no coração a suas “expectativas, preocupações e esperanças”.

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Cinco dias, nove discursos, duas homilias e um Angelus: eis são alguns dos números que marcam a viagem apostólica. A primeira etapa será em Chipre; e a segunda, na Grécia.

Segundo o programa anunciado pela Sala de Imprensa do Vaticano, Francisco, que partirá de Roma às 11 horas de 2 de dezembro, após um voo de cerca de 4 horas, terá a receção oficial no Aeroporto Internacional de Larnaca, em Nicósia, e uma tarde cheia de compromissos.

O primeiro discurso está marcado para as 16 horas no encontro com sacerdotes, religiosos, diáconos, catequistas, associações e movimentos eclesiais de Chipre, na Catedral Maronita de Nossa Senhora das Graças. Daí o Papa irá ao Palácio Presidencial para a cerimónia de boas-vindas às 17,15 horas e, logo depois, para o “Salão Cerimonial” para o encontro com as Autoridades, a Sociedade Civil e o Corpo Diplomático, para quem fará o seu segundo discurso.

O dia seguinte abrirá, às 8,30 horas, com a visita de cortesia a Sua Beatitude Chrysostomos II, Arcebispo ortodoxo de Chipre, no Palácio do Arcebispo; e, às 9 horas, haverá o encontro com o Santo Sínodo na Catedral Ortodoxa de Nicósia, onde Francisco fará um discurso. A primeira homilia do Papa será proferida na missa das 10 horas, também em Nicósia, no “GSP Stadium”. À tarde, haverá um único compromisso a partir das 16 horas: oração ecuménica com migrantes na igreja paroquial da Santa Cruz em Nicósia, onde o Santo Padre fará um discurso.

A etapa em Chipre terminará na manhã de 4 de dezembro. Pouco depois das 9 horas, será a partida do Aeroporto Internacional de Larnaca em direção a Atenas, onde está prevista a chegada do Papa para às 11,10 horas. No Aeroporto Internacional, terá lugar a cerimónia oficial de boas-vindas e, depois, a receção no Palácio Presidencial a partir das 12 horas. Após a visita de cortesia ao Presidente da República no Gabinete Privado, às 12,30 horas, será o encontro com o Primeiro-Ministro e, a seguir, o encontro com as Autoridades, a Sociedade Civil e o Corpo Diplomático, com discurso do Pontífice.

À tarde, em Atenas, a partir das 16 horas, ocorrerá uma série de encontros religiosos. Primeiro, a visita de cortesia a Sua Beatitude Ieronymos II, Arcebispo de Atenas e Toda a Grécia, no Arcebispado Ortodoxo da Grécia, depois o encontro com as respetivas comitivas na Sala do Trono do Arcebispado, onde o Papa fará um discurso. Às 17,15 horas, o Papa irá para a Catedral de São Dionísio em Atenas para o encontro e o discurso dirigido aos bispos, sacerdotes, religiosos, seminaristas e catequistas. O dia do Papa terminará às 18,45 horas, na Nunciatura Apostólica, onde está previsto um encontro com membros da Companhia de Jesus.

No dia 6, pela manhã, o Papa irá de avião de Atenas para Mytilene – Lesbos onde chegará pelas 10,10 horas para visitar ao “Centro de Acolhimento e Identificação” para o encontro e seu discurso para os refugiados acolhidos no local. No final, estará de volta a Atenas. Em Atenas, às 16,45 horas, presidirá à celebração eucarística no “Megaron Concert Hall”, após o que retornará à nunciatura onde, às 19horas, receberá a visita de cortesia de Sua Beatitude Ieronymus II.

O último dia na Grécia, 6 de dezembro, será marcado por dois compromissos principais antes da cerimónia de despedida. Às 8,15 horas, Francisco receberá a visita do Presidente do Parlamento na Nunciatura e, às 9,45 horas, irá à Escola São Dionísio das Irmãs Ursulinas em Maroussi para o caloroso encontro com os jovens aos quais fará o último discurso programado para a viagem. E, às 11,15 horas, a transferência para o Aeroporto Internacional de Atenas para a cerimónia de despedida e partida para Roma, estando a chegada programada para as 12,35 horas.

Enfim, um programa recheadíssimo para um Pontífice mais que octogenário!

A uma semana da viagem de Francisco a Chipre e à Grécia, o Cardeal Kurt Koch, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos destaca o alto valor ecuménico da visita que Francisco levará a dois países de maioria ortodoxa.

Importante impulso ecuménico, significativo momento de diálogo e encontro, chamada à atenção da comunidade internacional para manter os seus corações e consciências abertos face à tragédia dos refugiados e migrantes – tudo isto será pertinente na visita que o Papa realizará de 2 a 6 de dezembro próximo a Chipre e à Grécia, com importantes encontros em Nicósia, Atenas e Ilha de Lesbos, etapas que marcarão a oportunidade de estreitar as relações entre as Igrejas Católica e Greco-Ortodoxa, como confirma o Cardeal Kurt Koch.

Na verdade, o Santo Padre deseja visitar novamente dois países onde a maioria da população professa a fé da Igreja Ortodoxa – sinal muito positivo para aprofundar e fortalecer o diálogo e as relações entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa.

Entre os desafios do diálogo entre a Igreja Católica e a Igreja Greco-Ortodoxa, com um olhar particular para a Igreja na Grécia, o purpurado faz ressaltar o diálogo da caridade e o diálogo da verdade. O primeiro visa aprofundar as relações de amizade entre as Igrejas, ao passo que o diálogo da verdade implica o trabalho teológico para superar todos os obstáculos recebidos do passado. As Igrejas Ortodoxas decidiram iniciar o diálogo teológico não a nível bilateral, com as várias Igrejas Ortodoxas, mas a nível multilateral. Há, pois, uma Comissão internacional mista, com 14 diferentes Igrejas Ortodoxas autocéfalas. E é com elas que se realiza esse diálogo. E a viagem do Santo Padre será um grande passo para aprofundar o diálogo da caridade.

Em relação à Igreja Ortodoxa local de Chipre, há boas relações. O arcebispo Crisóstomo II tem um coração aberto ao ecumenismo e será um bem aprofundar esta relação entre a Igreja de Roma, com o Papa como Pontífice de toda a Igreja Católica, e a Igreja Ortodoxa de Chipre.

Sendo mais uma vez premente o tema dos migrantes, haverá também uma oração ecuménica em Chipre. Na verdade, também ali o Santo Padre deseja chamar a atenção para a situação dos migrantes e refugiados e quer celebrar uma oração ecuménica com os migrantes, ao passo que, na Grécia, quer visitar novamente a ilha de Lesbos-Mytilene, para dar um claro sinal de que a ajuda aos migrantes e refugiados é um grande desafio ecuménico, que também precisa de uma colaboração comum.

Na verdade, migrantes, refugiados e diálogo ecuménico são pontos prementes no Pontificado de Francisco. Pela oração persistente e pela esperança cooperante, aguardam-se resultados!

2021.11.27 – Louro de Carvalho

Do controlo manual dos produtos ao código de barras

 

Antes do GTIN (Global Trade Item Number), que deu origem ao código de barras, os produtos eram identificados sobretudo manualmente. Assim, a gestão de stocks, de entradas e saídas, no ponto de venda, em armazém, ao longo de toda a cadeia de valor, fazia-se com fluxos revistos à unidade, de modo manual, quase só com recurso a intervenção humana, com tudo o que isso significava, à data, em termos de trabalho, agilidade, rigor, margem de erro…

Porém, os anos 50 e 60 abrem uma era de inovações tecnológicas desenvolvidas na II Guerra Mundial e nos primórdios da Guerra Fria para fins geopolíticos e geoestratégicos, e adaptadas para fins civis, socioeconómicos, contribuindo para o desenvolvimento das sociedades em recuperação. Por exemplo, é apresentado o protótipo dum leitor de ondas de luz, o laser (Light Amplification by Stimulated Emission of Radiation) que alavancou o processo de leitura dos códigos de barras. Na verdade, o início do crescimento económico e a recuperação das economias evidenciaram a necessidade dum substancial aumento da eficiência das cadeias de valor. A assunção de tal necessidade norteou a concertação dos principais operadores (produtores e retalhistas) quanto ao standard, o identificador-chave, que esteve na base do processo. Assim, em 1968, a Grocery Manufacturers of America e a National Association of Food Chains reuniram para discutir a criação dum código de produto, com potencial para servir toda a indústria e que origina, em 1971, a adoção do GTIN e, em 1973, o código de barras que o integra.

O GTIN faz 50 anos e, embora o nome não seja reconhecido à primeira, é a ele que se deve o código de barras. É uma sequência numérica que identifica, de forma única, cada produto, sendo a matriz para as barras que se encontramos em todo o tipo de artigos à venda. Atualmente, o GTIN é lido mais de 6 mil milhões de vezes por dia, estando registado em 100 milhões de produtos. Segundo a GS1 Portugal, empresa responsável pelo código de barras no mercado nacional, é um dos identificadores mais confiáveis do Mundo – razão por que é utilizado por dois milhões de empresas. E, cinco décadas apos a sua criação, o GTIN serve de base para outros códigos mais modernos, que tiram partido da evolução da tecnologia. É o caso do QR code (sigla do inglês Quick Response, “resposta rápida” ), bidimensional, que oferece mais informações além do preço: basta ler este código para saber, por exemplo, se um alimento é orgânico ou qual o seu impacto ambiental. Isto se a empresa que desenvolve o produto quiser disponibilizar dados adicionais aos clientes.

A este respeito, João de Castro Guimarães, diretor executivo da GS1 Portugal, diz que está em mudança (mudou decisivamente com a pandemia)a constatação dos benefícios da disponibilização de informação de produto, rastreável e fiável, assente em dados de qualidade e disponível em plataformas a que os vários elos da cadeia de valor têm acesso”. E, em entrevista à Marketeer, adianta que estão a ser desenvolvidas e implementadas em Portugal soluções neste âmbito e qual o principal entrave ao progresso (a efetiva transição digital, transversal a toda a sociedade) e faz um balanço dos 50 anos do GTIN e da sua importância para a atividade económica.

GTIN e código de barras não são propriamente a mesma coisa. O GTIN é a origem do código de barras que conhecemos atualidade e que está na génese da distribuição moderna; o código de barras, impresso em qualquer produto, de qualquer categoria, legível nos scanners de qualquer ponto de venda, integra, necessariamente, um GTIN. No código de barras, o GTIN é apenas uma sequência numérica de 13 ou 8 dígitos (para produtos de pequenas dimensões) que as barras verticais (quase sempre a preto e branco) representam. O GTIN identifica um produto de forma única e universal através dessa sequência numérica e em qualquer ponto da cadeia de abastecimento – do produtor ao consumidor, garantindo a rastreabilidade do processo de produção e distribuição.

O código de barras, na sua forma mais conhecida, com um GTIN com 13 dígitos (esta fórmula denomina-se European Article Number-13 ou EAN-13), originou um sistema de identificação (único e inequívoco) capaz de responder às necessidades e especificidades de todos os elementos da cadeia de valor. É esse sistema que a GS1 Portugal representa desde 1985, em Portugal, e que tem permitido a produtores, distribuidores e retalhistas aumentar a eficiência do seu negócio.

O GTIN e o código de barras permitem integrar informação sobre produtos, ou seja, dados, num símbolo com elementos gráficos e numéricos, tendo levado, há 50 anos a uma verdadeira revolução do retalho e das economias, a nível global. Ao assegurarem a leitura automatizada permitem identificar produtos em ambiente logístico, durante o transporte ou no ponto de venda, integrando a referência ao país emissor e à empresa responsável pela comercialização do produto, identificando-o de forma única e inequívoca.

A 31 de março de 1971, líderes de algumas das maiores empresas produtoras internacionais, nomeadamente, Heinz, General Mills, Kroger e Bristol Meyer, reuniram-se em Nova Iorque e criaram a sequência numérica que transformaria irreversivelmente a economia global, ganhando as cadeias de valor eficiência e visibilidade sem precedentes com um potencial futuro que ainda se está a explorar e não se esgotou.

É, pois, o GTIN a chave de identificação na base das formas mais inovadoras de codificação (como a codificação bidimensional, de que são exemplo o GS1 Data Matriz e os QR codes). Além disso, o GTIN continua a salvaguardar a verificação dos dados de produtos quando se consideram soluções de partilha de informação fundamentais a plataformas de comércio online, estruturantes, por exemplo, para o e-commerce. O GTIN marca a história da distribuição moderna e da economia por ter originado o código de barras e marcará a economia mundial nas suas expressões futuras.

Há 36 anos (26 de novembro de 1985), foi criada a CODIPOR (associação na génese da GS1 Portugal), que introduziu em Portugal o sistema de codificação EAN.UCC – European Article Numbering – Uniform Code Council (hoje o sistema GS1), o qual integra o código de barras, de cuja aplicação resultaram transformações verdadeiramente disruptivas na cadeia de abastecimento e logística, nos setores do retalho e bens de consumo.

A sociedade portuguesa registava alterações profundas e aceleradas, sobretudo com a assinatura do Tratado de Adesão de Portugal à então CEE (Comunidade Económica Europeia), mais tarde UE (União Europeia). Os fundos comunitários permitiam o investimento na construção e modernização de infraestruturas essenciais ao desenvolvimento do país. A pari, registava-se socialmente a explosão do consumo e da distribuição moderna, com a inserção do Sistema de Codificação EAN.UCC. Esta disponibilização do código de barras e do sistema subjacente representou uma revolução na produção e distribuição, levando à adoção de meios de controlo e funcionalidades que, de outra forma, sem este sistema, não seriam possíveis.

Em princípio, todos os tipos de produtos podem conter um código de barras e um GTIN, que será ajustado à dimensão e categoria do produto. Aliás, foi esta capacidade de adaptação que deu origem à codificação bidimensional aplicada a medicamentos e dispositivos médicos, por exemplo, com o GS1 Data Matrix, em espaços de embalagem exíguos e, se necessário, em dispositivos e unidoses de tamanho milimétrico. É infindável o potencial desta sequência numérica. Quando aliado à inovação tecnológica, são inimagináveis as soluções possíveis e os benefícios em rastreabilidade e sustentabilidade. Assim, a colaboração da GS1, a nível global, com a Aanika Biosciences resultou na possibilidade de aposição de etiquetas biomoleculares naturais, de dimensão microscópica, virtuais e indestrutíveis, garantindo melhor rastreabilidade ao longo de toda a cadeia de valor dos vegetais de folha verde, frágeis e altamente perecíveis, e permitindo a aplicação de standards GS1, de que o GTIN é exemplo.

Entretanto, o sistema está a evoluir para novos tipos de códigos. Já foi dito que mudou com a pandemia a constatação dos benefícios da disponibilização de informação de produto, rastreável e fiável, em dados de qualidade, e disponível em plataformas a que os vários elos da cadeia de valor têm acesso. O GTIN e, em geral, a codificação são condições fundamentais para essa disponibilização e à evolução para novas codificações como a codificação bidimensional mas também a codificação com recurso a suportes biomoleculares ou outros. Por outro lado, o GTIN é o bastião último e o garante de sistemas de partilha de dados em blockchain (um tipo de Base de Dados Distribuída que guarda um registro de transações permanente e à prova de violação), como o agora em curso, em parceria com a Deloitte (parceira no desenho do conceito), com dois distribuidores (Jerónimo Martins e  Sonae), 4 produtores dos setores alimentar e de bebidas (Gelpeixe, Unilever, CentralCer e Delta Cafés), um operador logístico (Grupo Luís Simões) e um parceiro tecnológico (TE-Food). Com estes parceiros está a testar-se uma solução de identificação que permita a rastreabilidade de produtos, desde a produção da matéria-prima, passando pela transformação e distribuição, até à entrada em loja, cumprindo os mais rigorosos critérios de segurança e confidencialidade. O projeto servirá de prova de conceito que se espera evoluir para uma solução de mercado, oferecendo às empresas participantes resposta válida e segura de identificação e rastreabilidade de produtos na sua cadeia de abastecimento, culminando com o ambiente de loja.  Esta amplitude, prevendo a integração da rastreabilidade em loja, constitui um elemento extremamente diferenciador. Além disso, o reconhecimento da importância da codificação e do respetivo potencial evoluiu para a procura de soluções de verificação da qualidade desses dados, que a codificação, cada vez mais robusta, interconectada e acessível, permite. É exemplo disso a solução Verified by GS1.

A GS1 Portugal dispõe duma plataforma certificada por entidade independente internacional, que permite registar e partilhar os dados que integram o “bilhete de identidade do produto”, um conceito adotado pela GS1 para facilitar a respetiva comunicação e que designa um conjunto de até sete atributos que consubstanciam a respetiva identidade: GTIN, marca, descrição, URL de acesso a imagem do produto, categoria, peso líquido e país de venda. Tal certificação garante que, sob autorização dos brand owners, os dados sejam integrados numa plataforma global e harmonizada, que lhes dá visibilidade internacional e que podem ter verificados a sua identidade e a validade dos atributos registados com a Verified by GS1. A GS1 Portugal foi convidada a ser uma das 19 organizações-membro da GS1 participantes da 2.ª vaga de implementação do Verified by GS1, em 2020, com benefícios a nível da eficiência dos negócios e garantia de qualidade e capacidade de rastreabilidade ao longo de toda a cadeia de valor.

A codificação bidimensional (como os QR Codes e o GS1 Data Matrix), no atinente aos standards GS1, tem um muito elevado potencial de agregação de informação (diferenciada em tipologia e volume). E as empresas portuguesas, como as demais empresas, a nível internacional, reconhecem cada vez mais a importância da disponibilização e acesso a informação que, por vezes, exige suportes mais abrangentes, de que estes são exemplo. E há circunstâncias em que é necessária tal adoção, como é o caso dos medicamentos e dispositivos médicos, em que legislação europeia, transposta para o nosso ordenamento jurídico, a impõe. No referente aos restantes setores, é claro um crescente reconhecimento dos benefícios dessa codificação pela quantidade e complexidade de dados de produto que permite disponibilizar num espaço relativamente reduzido.

Por sua vez, o consumidor está cada vez mais recetivo. O estudo “A resposta da Cadeia de Valor às exigências do Consumidor” divulgado por Ana Paula Barbosa (Retail Services director da Nielsen Portugal), revela que a pandemia teve muito impacto no comportamento do consumidor, sendo os seus principais fatores o revenge spending, a crise económica, a continuidade do teletrabalho e a experiência em e-commerce. Agora, a manutenção dessas tendências em contexto de novo normal dependerá “da experiência e nível de satisfação dos consumidores no momento de compra”, sendo fundamentais a afirmação do propósito das marcas, a componente ética e o acesso a evidências (informação, dados…) que o confirmem. Por certo, a codificação bidimensional, como suporte de tais narrativas, corresponderá às expectativas do consumidor.

Finalmente, a expansão dos QR codes requer a efetiva transição digital, transversal a toda a sociedade. E os consumidores estão preparados, quer do ponto de vista da apetência, pelo interesse, curiosidade no acesso a informação, quer do ponto de vista dos recursos, pelo acesso generalizado a equipamentos móveis com acesso a dados. Só importa acelerar a transição digital das empresas, que registou com a crise pandémica uma aceleração sem precedentes, tirar partido do momento e avançar.

2021.11.26 - Louro de Carvalho