terça-feira, 9 de novembro de 2021

Dar tudo o que nos faz falta tem o selo de Deus, que é dom, generosidade

 

Francisco olha para a cena descrita no Evangelho da liturgia do XXXII domingo do Tempo Comum no Ano B (Mc 12,38-44) com olhar crítico e postura reflexiva e exortativa.

Na preleção que antecedeu a recitação do Angelus com os fiéis, peregrinos e visitantes que ocupavam a Praça de São Pedro no assado dia 7 de novembro, o Papa começou por anotar que o episódio ocorria no interior do Templo de Jerusalém com Jesus a apontar como os escribas faziam questão de caminhar para o espetáculo, adulação e posicionamento em lugares de honra. Ao mesmo tempo, “devoram os bens das viúvas sob o manto de longas orações” (Mc 12,40). Em contraste, os olhos de Jesus prestavam redobrada atenção à cena da pobre viúva, uma das tantas pessoas exploradas pelos poderosos, a depositar na arca do Tesouro “tudo o que possuía” (“pánta hósa eîkhen”:Mc 12,44). Quer dizer que o Evangelho nos coloca ante surpreendente assimetria: os ricos, que dão o que lhes sobra para que todos vejam; e a mulher pobre que, sem fingir, oferece todo o que pouco tem, sem que alguém o tenha em conta, por ser pouco aos olhos do mundo.

Ora, segundo o Pontífice, tudo tem a ver com a direção do verbo “olhar”. A fé postula que olhemos para aqueles escribas para evitarmos a sua postura e que olhemos para a viúva para a assumirmos como nosso modelo.

Aqueles escribas são hipócritas (a hipocrisia é uma perigosa doença da alma), pois baseiam a vida e a religiosidade “no culto da aparência, da exterioridade, no cuidado exagerado da própria imagem” subordinando a fé aos interesses pessoais e de clã e usando a religião para, sob a capa do nome de Deus, fazerem vingar o próprio orgulho, crescer os negócios e explorar os pobres, abusando da autoridade e poder que se lhes reconheciam. E são, para o Santo Padre, aspetos destes que vêm à tona em muitos cargos inerentes ao clericalismo. Com efeito, em muitos lugares, há clérigos que se julgam perfeitos e se colocam “acima dos humildes, explorando-os”.

E o Papa deixa aviso, para todos os tempos e para todas as pessoas, à Igreja e à sociedade: nunca aproveitar o próprio cargo ou papel para esmagar os outros, nada ganhando na pele dos mais fracos; e estar sempre alerta para não cair na vaidade ou na obcecação das aparências, “perdendo substância e vivendo na superficialidade”. 

A questão reside em nós falarmos e procedermos para a apreciação e gratificação ou para o serviço a Deus e ao próximo, especialmente aos mais fracos. Por isso, temos de estar “atentos às falsidades do coração, à hipocrisia” ao cultivo do duplo pensamento, do duplo julgamento, da dupla atitude. E, como antídoto à doença da hipocrisia, diz o Santo Padre, Jesus convida-nos a olhar para a pobre viúva, que, “para dar a oferta, deve voltar para casa sem nem mesmo o pouco que tem para viver”. Na verdade, Jesus já havia dito noutra ocasião: não se pode servir a dois senhores. Ou se serve a Deus ou se serve o dinheiro (o poder do diabo). De facto, do dinheiro ou o diabo armam-se em “senhor”, mas “Jesus diz que não devemos servi-lo”. 

Assim, Jesus elogia o facto de esta viúva dar para o Tesouro (“gazophylákion”), da sua penúria, tudo o que tem. Não tem mais nada, mas encontra tudo em Deus. Não tem medo de perder o pouco que tem, porque confia mesmo em Deus, pois “Deus multiplica a alegria de quem doa”. 

E, com esta certeza, o Papa Francisco remete-nos para o trecho que narra a ação da viúva de Sarepta no texto bíblico tomado como 1.ª leitura (cf 1Rs 17,10-16). Esta viúva veterotestamentária “ia fazer pão com a última farinha e o último azeite” para ela e o filho se alimentarem e esperarem a morte. Porém, o Profeta Elias ordena que lhe dê de comer a ele, que a farinha e o azeite nunca vão faltar ou diminuir. Na verdade, como diz o Pontífice, “o Senhor sempre, diante da generosidade do povo, vai além, é mais generoso”, mas repugna-lhe “a nossa ganância”. 

Por consequência, temos de registar e aprender que Jesus nos propõe “como mestra de fé” a viúva do Evangelho, que vem na linha da viúva de Sarepta (esta não é exemplo por si, mas por ter cedido perante a clarividência do profeta): “ela não vai ao Templo para ter a consciência tranquila, não reza para ser vista, não exibe a sua fé, mas dá de coração, com generosidade e gratuitidade”. Por isso, as suas pequenas e poucas moedas “têm um som mais bonito do que as grandes ofertas dos ricos, porque expressam uma vida dedicada a Deus com sinceridade, uma fé que não vive das aparências, mas da confiança incondicional”. É, pois, salutar que aprendamos com ela a fé sem adornos externos, mas sincera, a fé amassada de amor humilde a Deus e aos irmãos”.

E, por fim, o Santo Padre apela a que nos dirijamos à Virgem Maria, que fez de toda a sua vida, com um coração humilde e transparente, “um dom para Deus e para o seu povo.  

O trecho evangélico em referência compõe-se de duas partes.

Na primeira (Mc 12,38-40), Jesus dirige a atenção dos discípulos para o grupo dos escribas, quais figuras intocáveis da comunidade, com irrepreensível postura religiosa. O povo, que os tem em alta consideração, estima-os, admira-os e adula-os. Porém, o olhar de Jesus não se detém na aparência, antes penetra a realidade. Os escribas (ou doutores da Lei) são hipócritas e incoerentes, pois fazem as coisas, não por convicção, mas para serem considerados e admirados; procuram os primeiros lugares, preocupam-se em afirmar a sua superioridade diante dos outros, exibem uma devoção de fachada, fazem do cumprimento dos ritos e regras espetáculo para os outros os aplaudirem. E, como se isso não bastasse, aproveitam-se, não raro, da sua posição e da confiança que inspiram – como intérpretes da Lei – para explorarem os mais pobres, que são os preferidos de Deus; servem-se da religião para satisfazerem a avareza, sem escrúpulos em aproveitarem-se da boa-fé das pessoas para aumentarem os seus proveitos; exploram as viúvas, que lhes confiam a administração dos próprios bens, alinham em esquemas de corrupção e de exploração. Sem quererem, mostram que os ritos externos, os gestos teatrais, o cumprimento das regras não aproximam os homens de Deus e da santidade divina. Por isso, os discípulos de Jesus têm de estar conscientes de que este não é o comportamento que Deus pede aos seus.

Na segunda parte (Mc 12,41-44), Jesus convida os discípulos a perceberem a essência do culto, da verdadeira atitude religiosa. Em nítido contraponto com o quadro dos escribas, Jesus aponta a figura da pobre viúva, que se aproxima de um dos 13 recipientes situados no átrio do Templo, onde se depositavam as ofertas para o tesouro do Templo. A mulher deposita aí duas moeditas. Ninguém, exceto Jesus, repara nela ou exprime admiração pelo seu gesto. Apenas Jesus – que lê com os olhos de Deus e vê para lá da aparência – percebe nas duas insignificantes moedas ora oferecidas a marca do dom total, do completo despojamento, da entrega radical e sem medida. O culto que Deus quer passa por gestos simples e humildes, que, embora despercebidos, são sinceros e significam a entrega generosa e o compromisso total. O verdadeiro crente não é o que cultiva gestos vistosos e pavoneantes, que impressionam as multidões e são aplaudidos pelos homens; mas é o que se despoja de tudo, prescinde dos interesses e projetos pessoais, em prol da entrega completa e gratuita nas mãos de Deus, com humildade, generosidade, total confiança, amor verdadeiro e inteira disponibilidade para o serviço ao próximo, como Jesus fez e ensinou.

É esse o culto verdadeiro que os discípulos devem prestar a Deus.

***

Chegado a Sarepta e correspondendo à indicação de Javé, Elias, homem de Deus e conduzido por Deus dirige-se a uma viúva da cidade, a quem, nesta terra quase a terminar, onde já mal se tem pé, nesta vida quase a expirar, estende mais um fio de voz e lança mais uma tábua de esperança a que se agarrar: Deus. Pede-lhe água para beber e um pedaço de pão para comer, pedido que, feito em dramático tempo de fome e de seca, esbarra na pobreza da mulher que dispõe só dum punhado de farinha e dum pouco de azeite e, tendo apanhado um braçado de gravetos, se prepara para comer com o seu filho único, antes de se deitar à espera da morte. Todavia, instada pelo profeta e crente nas suas palavras, prepara-lhe o pão. Em recompensa, por ação de Deus, em todo o tempo que Elias ali permaneceu, nem se acabou a farinha na panela, nem faltou o azeite na almotolia. Não é a quantidade que importa, mas a qualidade da pessoa que dá, a premência e virtualidade da dádiva e, sobretudo, a totalidade e a definitividade.

Com esta narrativa popular, o escritor deuteronomista evidencia que na luta pela supremacia entre Javé e Baal, o Deus de Israel é o vencedor, pois é Ele quem dá o trigo e o azeite de que o Povo se alimenta; e atua mesmo em casa do adversário e entre os seus súbditos (Baal era o deus mais popular na Fenícia). O facto de a ação de Javé ter como beneficiários a viúva e o órfão – exemplos bíblicos clássicos dos pobres, débeis, desfavorecidos, marginalizados – mostra que Javé tem predileção especial pelos fracos, pelos pobres, pelos que nada têm, pelos que necessitam especialmente da proteção, bondade e misericórdia de Deus. O pão e o azeite da mulher repartidos com o profeta multiplicam-se milagrosamente, o que faz entender que, se alguém é capaz de sair do seu egoísmo e se disponibiliza a partilhar os dons recebidos de Deus, esses dons chegam para todos e sobram. Assim, a generosidade, partilha e solidariedade, porque trazem a marca de Deus, não empobrecem, mas são geradoras de vida e vida em abundância.

Enfim, a narrativa da história de Elias e da viúva de Sarepta ajudam a burilar a ideia de que a graça de Deus é universal e se destina a todos, sem distinção de raças, fronteiras ou crenças.

Pela voz e esperança de Elias, Deus não reclama algo, mas tudo: o coração todo, a alma toda, a confiança toda, as forças todas – aliás como se requer no primeiro e grande mandamento.

E Dom António Couto, Bispo de Lamego, situa neste contexto de querer bem, bendizer e bem-fazer, “a linha poética e melódica do Salmo 146, que põe Deus tão perto de nós, a fazer justiça aos oprimidos, a dar pão aos que têm fome, a tomar a seu cuidado o órfão e a viúva, e a atirar-me todo para Deus, com aquele grito repetido: ‘Ó minha alma, louva o Senhor’!”. Mais aponta que este Salmo “é uma espécie de carrilhão musical”, convidando-nos a cantar os doze nomes de Deus, nomes que “não celebram tanto a essência divina, mas a sua ação em favor das suas criaturas, sobretudo dos mais pobres e desfavorecidos”. Assim, o Salmo evoca: “o Deus que fez o céu, a terra, o mar, o Deus Criador”; “o Deus da verdade”; “o Deus que faz justiça aos oprimidos, o defensor dos últimos”; o Deus “que dá pão aos famintos”; o Deus “que liberta os prisioneiros”; o Deus “que abre os olhos aos cegos”; o Deus “que levanta os abatidos”; o Deus “que ama os justos”, o Deus “que protege os estrangeiros”; o Deus “que sustenta o órfão e a viúva”; o Deus “que entrava o caminho dos ímpios”; “o Deus que reina eternamente”.

***

No fio condutor da confiança, surge a passagem da Carta aos Hebreus, tomada como 2.ª leitura (Heb 9,24-28). No termo da sua peregrinação terrena com os homens, Jesus, o sacerdote perfeito, entrou no santuário celeste – a profundeza da realidade de Deus – e, vivendo em ininterrupta e plena comunhão com o Pai, continua a interceder por nós e a dispor o coração do Pai em favor dos homens. Mais, enquanto o sumo sacerdote veterotestamentário tinha de entrar no santuário todos os anos (no Dia da Expiação – “Yom Kippur” – o único dia em que o sumo sacerdote entrava no Santo dos Santos para aspergir o propiciatório com o sangue do animal imolado e obter o perdão de Deus para os pecados do Povo), Cristo entrou uma só vez no santuário perfeito e, levando o seu próprio sangue, obteve a redenção de toda a humanidade, desde a fundação do mundo, até ao fim dos tempos.

Essa entrega sacrifical de Cristo, consumada no dom da vida, teve total e universal eficácia. Com ela, Cristo conseguiu a destruição da condição pecadora do homem, ou seja, a humanidade fica, a partir desse instante, definitivamente salva. E, quando Cristo voltar a manifestar-Se, no final dos tempos (“parousía”), não será para oferecer novo sacrifício, nem para condenar o homem, mas para oferecer a salvação definitiva a quem, pelo seu sacrifício, libertou do pecado.

Por isso, enquanto rezamos e cantamos “Vem, Senhor!” (marana tha’), pois sabemos que “o Senhor vem!” (maran ’atta’), estamos em jubilosa espera da sua Vinda. Por isso, a oração, feita dádiva e sacrifício, em correspondência ao dom de Deus, atrela-nos para sempre na liberdade de filhos e irmãos ao Senhor que Vem. Por isso, como diz o Bispo de Lamego, “o Dia de Domingo deve imprimir em nós o ‘tique’ da esperança, deixando-nos com o pescoço esticado para Deus, situação de quem O espera e vive da sua Vinda a todo o momento”.

Em coerência com a predita atitude de confiança e esperança, importa, como quer o Papa, olhar para a viúva pobre do Evangelho “que dá a Deus a sua vida toda, em contraste com os escribas, “que fazem bom teatro religioso”. De facto, como acentua António Couto, “da primeira vez que Jesus aparece a ensinar em público, neste Evangelho, o povo exclama: ‘Este ensina com autoridade, e não como os escribas’!” (Que doutrina nova, com autoridade – “Didákê kainê kat’ exoudzían!”: Mc 1,27); e, “a terminar a sua atividade pública neste Evangelho, é Jesus que mostra bem que não é como os escribas”. E o prelado frisa que a cena central se passa no átrio das mulheres do Templo de Jerusalém, na Casa do Tesouro (bêt ha-gazît: gazophylákion) (Mc 12,41-44), onde muita gente deitava “muito do que lhe sobrava, mas a viúva pobre deu ‘tudo quanto tinha, a sua vida (bíos) toda’!”.

Trata-se duma viúva pobre, portanto desfavorecida em dobro, como viúva e como pobre, mas que, mesmo que tenha sido pouco o que deu, deu tudo: duas moeditas (“leptà dýo), isto é, um quadrante (“kodrántês). Ora, o quadrante era 64.ª parte do denário; e o denário era o salário dum dia de trabalho, que a pobre viúva recuperaria em breve, logo que se pusesse a pedir. Porém, a cena serve para aprendermos a passar da ajuda para a doação de nós mesmos.

Nestes termos, o discípulo, à maneira de Jesus, deve aceitar pôr em jogo a própria vida, e não apenas os adereços: “tudo, e não apenas o supérfluo”, pois dar do que sobra não faz a verdadeira e subversiva memória de Jesus, que Se entregou a Si mesmo (“heautòn”) por nós (“hypèr hêmôn”: Ef 5,2), por mim (“hypèr emoû”: Gl 2,20). E, como diz o Bispo de Lamego, “o supérfluo deixa a vida intacta”, ao passo que “o dom de si mesmo transforma a vida para sempre”, pois “a marca deste dom é a totalidade e a definitividade”.

Há que aprender com os simples, os humildes e os pobres. A sua vida é um livro!

2021.11.09 – Louro de Carvalho

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