Francisco
olha para a cena descrita no Evangelho da liturgia do XXXII domingo do Tempo
Comum no Ano B (Mc 12,38-44) com olhar crítico e postura
reflexiva e exortativa.
Na preleção
que antecedeu a recitação do Angelus
com os fiéis, peregrinos e visitantes que ocupavam a Praça de São Pedro no
assado dia 7 de novembro, o Papa começou por anotar que o episódio ocorria no
interior do Templo de Jerusalém com Jesus a apontar como os escribas faziam
questão de caminhar para o espetáculo, adulação e posicionamento em lugares de
honra. Ao mesmo tempo, “devoram os bens das viúvas sob o manto de longas
orações” (Mc 12,40). Em contraste, os olhos de
Jesus prestavam redobrada atenção à cena da pobre viúva, uma das tantas pessoas
exploradas pelos poderosos, a depositar na arca do Tesouro “tudo o que possuía”
(“pánta hósa eîkhen”:Mc 12,44). Quer dizer que o Evangelho nos coloca ante surpreendente
assimetria: os ricos, que dão o que lhes sobra para que todos vejam; e a mulher
pobre que, sem fingir, oferece todo o que pouco tem, sem que alguém o tenha em
conta, por ser pouco aos olhos do mundo.
Ora, segundo
o Pontífice, tudo tem a ver com a direção do verbo “olhar”. A fé postula que
olhemos para aqueles escribas para evitarmos a sua postura e que olhemos para a
viúva para a assumirmos como nosso modelo.
Aqueles
escribas são hipócritas (a
hipocrisia é uma perigosa doença da alma), pois baseiam a vida e a religiosidade “no culto da aparência,
da exterioridade, no cuidado exagerado da própria imagem” subordinando a fé aos
interesses pessoais e de clã e usando a religião para, sob a capa do nome de
Deus, fazerem vingar o próprio orgulho, crescer os negócios e explorar os
pobres, abusando da autoridade e poder que se lhes reconheciam. E são, para o
Santo Padre, aspetos destes que vêm à tona em muitos cargos inerentes ao
clericalismo. Com efeito, em muitos lugares, há clérigos que se julgam
perfeitos e se colocam “acima dos humildes, explorando-os”.
E o
Papa deixa aviso, para todos os tempos e para todas as pessoas, à Igreja e
à sociedade: nunca aproveitar o próprio cargo ou papel para esmagar os outros,
nada ganhando na pele dos mais fracos; e estar sempre alerta para não cair
na vaidade ou na obcecação das aparências, “perdendo substância e vivendo na
superficialidade”.
A questão
reside em nós falarmos e procedermos para a apreciação e gratificação ou para o
serviço a Deus e ao próximo, especialmente aos mais fracos. Por isso, temos de
estar “atentos às falsidades do coração, à hipocrisia” ao cultivo do duplo
pensamento, do duplo julgamento, da dupla atitude. E, como antídoto à doença da
hipocrisia, diz o Santo Padre, Jesus convida-nos a olhar para a pobre viúva,
que, “para dar a oferta, deve voltar para casa sem nem mesmo o pouco que tem
para viver”. Na verdade, Jesus já havia dito noutra ocasião: não se pode
servir a dois senhores. Ou se serve a Deus ou se serve o dinheiro (o poder do diabo). De facto, do dinheiro ou o
diabo armam-se em “senhor”, mas “Jesus diz que não devemos servi-lo”.
Assim, Jesus
elogia o facto de esta viúva dar para o Tesouro (“gazophylákion”), da sua penúria, tudo o que tem. Não tem mais nada, mas encontra tudo em
Deus. Não tem medo de perder o pouco que tem, porque confia mesmo em Deus,
pois “Deus multiplica a alegria de quem doa”.
E, com esta
certeza, o Papa Francisco remete-nos para o trecho que narra a ação da viúva de
Sarepta no texto bíblico tomado como 1.ª leitura (cf 1Rs 17,10-16). Esta viúva veterotestamentária “ia
fazer pão com a última farinha e o último azeite” para ela e o filho se
alimentarem e esperarem a morte. Porém, o Profeta Elias ordena que lhe dê de
comer a ele, que a farinha e o azeite nunca vão faltar ou diminuir. Na verdade,
como diz o Pontífice, “o Senhor sempre, diante da generosidade do povo, vai
além, é mais generoso”, mas repugna-lhe “a nossa ganância”.
Por
consequência, temos de registar e aprender que Jesus nos propõe “como mestra de
fé” a viúva do Evangelho, que vem na linha da viúva de Sarepta (esta não é exemplo por si, mas por
ter cedido perante a clarividência do profeta): “ela não vai ao Templo para ter a consciência
tranquila, não reza para ser vista, não exibe a sua fé, mas dá de coração, com
generosidade e gratuitidade”. Por isso, as suas pequenas e poucas moedas “têm
um som mais bonito do que as grandes ofertas dos ricos, porque expressam uma
vida dedicada a Deus com sinceridade, uma fé que não vive das aparências, mas
da confiança incondicional”. É, pois, salutar que aprendamos com ela a fé
sem adornos externos, mas sincera, a fé amassada de amor humilde a Deus e aos
irmãos”.
E, por fim, o
Santo Padre apela a que nos dirijamos à Virgem Maria, que fez de toda a sua
vida, com um coração humilde e transparente, “um dom para Deus e para o seu
povo.
O trecho evangélico em referência compõe-se de duas partes.
Na primeira (Mc 12,38-40), Jesus dirige a
atenção dos discípulos para o grupo dos escribas, quais figuras intocáveis da
comunidade, com irrepreensível postura religiosa. O povo, que os tem em alta consideração,
estima-os, admira-os e adula-os. Porém, o olhar de Jesus não se detém na
aparência, antes penetra a realidade. Os escribas (ou doutores da Lei) são hipócritas e incoerentes, pois fazem as coisas, não por
convicção, mas para serem considerados e admirados; procuram os primeiros
lugares, preocupam-se em afirmar a sua superioridade diante dos outros, exibem
uma devoção de fachada, fazem do cumprimento dos ritos e regras espetáculo para
os outros os aplaudirem. E, como se isso não bastasse, aproveitam-se, não raro,
da sua posição e da confiança que inspiram – como intérpretes da Lei – para
explorarem os mais pobres, que são os preferidos de Deus; servem-se da religião
para satisfazerem a avareza, sem escrúpulos em aproveitarem-se da boa-fé das
pessoas para aumentarem os seus proveitos; exploram as viúvas, que lhes confiam
a administração dos próprios bens, alinham em esquemas de corrupção e de
exploração. Sem quererem, mostram que os ritos externos, os gestos teatrais, o
cumprimento das regras não aproximam os homens de Deus e da santidade divina. Por
isso, os discípulos de Jesus têm de estar conscientes de que este não é o
comportamento que Deus pede aos seus.
Na segunda parte (Mc 12,41-44), Jesus convida os discípulos a perceberem a essência do
culto, da verdadeira atitude religiosa. Em nítido contraponto com o quadro dos
escribas, Jesus aponta a figura da pobre viúva, que se aproxima de um dos 13
recipientes situados no átrio do Templo, onde se depositavam as ofertas para o
tesouro do Templo. A mulher deposita aí duas moeditas. Ninguém, exceto Jesus,
repara nela ou exprime admiração pelo seu gesto. Apenas Jesus – que lê com os
olhos de Deus e vê para lá da aparência – percebe nas duas insignificantes moedas
ora oferecidas a marca do dom total, do completo despojamento, da entrega
radical e sem medida. O culto que Deus quer passa por gestos simples e humildes,
que, embora despercebidos, são sinceros e significam a entrega generosa e o
compromisso total. O verdadeiro crente não é o que cultiva gestos vistosos e pavoneantes,
que impressionam as multidões e são aplaudidos pelos homens; mas é o que se
despoja de tudo, prescinde dos interesses e projetos pessoais, em prol da
entrega completa e gratuita nas mãos de Deus, com humildade, generosidade,
total confiança, amor verdadeiro e inteira disponibilidade para o serviço ao
próximo, como Jesus fez e ensinou.
É esse o culto verdadeiro que os discípulos devem prestar a Deus.
***
Chegado a Sarepta e correspondendo à indicação de Javé, Elias,
homem de Deus e conduzido por Deus dirige-se a uma viúva da cidade, a quem, nesta terra quase a terminar, onde já mal se tem pé,
nesta vida quase a expirar, estende mais um fio de voz e lança mais uma tábua de
esperança a que se agarrar: Deus. Pede-lhe água para beber e um pedaço de pão para comer,
pedido que, feito em dramático tempo de fome e de seca, esbarra na pobreza da
mulher que dispõe só dum punhado de farinha e dum pouco de azeite e, tendo
apanhado um braçado de gravetos, se prepara para
comer com o seu filho único, antes de se deitar à espera da morte. Todavia,
instada pelo profeta e crente nas suas palavras, prepara-lhe o pão. Em
recompensa, por ação de Deus, em todo o tempo que Elias ali permaneceu, nem se
acabou a farinha na panela, nem faltou o azeite na almotolia. Não é a
quantidade que importa, mas a qualidade da pessoa que dá, a premência e
virtualidade da dádiva e, sobretudo, a totalidade e a definitividade.
Com esta narrativa popular, o escritor deuteronomista
evidencia que na luta pela supremacia entre Javé e Baal, o Deus de Israel é o
vencedor, pois é Ele quem dá o trigo e o azeite de que o Povo se alimenta; e atua
mesmo em casa do adversário e entre os seus súbditos (Baal era o deus mais popular na Fenícia). O facto de a ação de Javé ter
como beneficiários a viúva e o órfão – exemplos bíblicos
clássicos dos pobres, débeis, desfavorecidos, marginalizados – mostra que Javé
tem predileção especial pelos fracos, pelos pobres, pelos que nada têm, pelos
que necessitam especialmente da proteção, bondade e misericórdia de Deus. O pão
e o azeite da mulher repartidos com o profeta multiplicam-se milagrosamente, o
que faz entender que, se alguém é capaz de sair do seu egoísmo e se
disponibiliza a partilhar os dons recebidos de Deus, esses dons chegam para
todos e sobram. Assim, a generosidade, partilha e solidariedade, porque trazem
a marca de Deus, não empobrecem, mas são geradoras de vida e vida em
abundância.
Enfim, a narrativa da história de Elias e da viúva de Sarepta
ajudam a burilar a ideia de que a graça de Deus é universal e se destina a
todos, sem distinção de raças, fronteiras ou crenças.
Pela voz e
esperança de Elias, Deus não reclama algo, mas tudo: o coração todo, a alma
toda, a confiança toda, as forças todas – aliás como se requer no primeiro e
grande mandamento.
E Dom
António Couto, Bispo de Lamego, situa neste contexto de querer bem, bendizer e bem-fazer,
“a linha poética e melódica do Salmo 146, que põe Deus tão perto de nós, a
fazer justiça aos oprimidos, a dar pão aos que têm fome, a tomar a seu cuidado
o órfão e a viúva, e a atirar-me todo para Deus, com aquele grito repetido: ‘Ó minha alma, louva o Senhor’!”. Mais
aponta que este Salmo “é uma espécie de carrilhão musical”, convidando-nos a
cantar os doze nomes de Deus, nomes que “não celebram tanto a essência divina,
mas a sua ação em favor das suas criaturas, sobretudo dos mais pobres e
desfavorecidos”. Assim, o Salmo evoca: “o Deus que fez o céu, a terra, o mar, o
Deus Criador”; “o Deus da verdade”; “o Deus que faz justiça aos oprimidos, o
defensor dos últimos”; o Deus “que dá pão aos famintos”; o Deus “que liberta os
prisioneiros”; o Deus “que abre os olhos aos cegos”; o Deus “que levanta os
abatidos”; o Deus “que ama os justos”, o Deus “que protege os estrangeiros”; o
Deus “que sustenta o órfão e a viúva”; o Deus “que entrava o caminho dos
ímpios”; “o Deus que reina eternamente”.
***
No fio condutor da confiança, surge a passagem da Carta aos
Hebreus, tomada como 2.ª leitura (Heb 9,24-28). No termo da sua
peregrinação terrena com os homens, Jesus, o sacerdote perfeito, entrou no
santuário celeste – a profundeza da realidade de Deus – e, vivendo em ininterrupta
e plena comunhão com o Pai, continua a interceder por nós e a dispor o coração
do Pai em favor dos homens. Mais, enquanto o sumo sacerdote veterotestamentário
tinha de entrar no santuário todos os anos (no
Dia da Expiação – “Yom Kippur” – o único dia em que o sumo sacerdote entrava no
Santo dos Santos para aspergir o propiciatório com o sangue do animal imolado e
obter o perdão de Deus para os pecados do Povo), Cristo entrou uma só vez no
santuário perfeito e, levando o seu próprio sangue, obteve a redenção de toda a
humanidade, desde a fundação do mundo, até ao fim dos tempos.
Essa entrega sacrifical de Cristo, consumada no dom da vida,
teve total e universal eficácia. Com ela, Cristo conseguiu a destruição da
condição pecadora do homem, ou seja, a humanidade fica, a partir desse
instante, definitivamente salva. E, quando Cristo voltar a manifestar-Se, no
final dos tempos (“parousía”), não será para oferecer novo sacrifício, nem para condenar o
homem, mas para oferecer a salvação definitiva a quem, pelo seu sacrifício,
libertou do pecado.
Por isso,
enquanto rezamos e cantamos “Vem, Senhor!” (marana tha’), pois sabemos que “o Senhor vem!” (maran
’atta’), estamos em
jubilosa espera da sua Vinda. Por isso, a oração, feita dádiva e sacrifício, em
correspondência ao dom de Deus, atrela-nos para sempre na liberdade de filhos e
irmãos ao Senhor que Vem. Por isso, como diz o Bispo de Lamego, “o Dia de Domingo deve imprimir em nós o
‘tique’ da esperança, deixando-nos com o pescoço esticado para Deus, situação
de quem O espera e vive da sua Vinda a todo o momento”.
Em coerência
com a predita atitude de confiança e esperança, importa, como quer o Papa,
olhar para a viúva pobre do Evangelho “que dá a Deus a sua vida toda, em
contraste com os escribas, “que fazem bom teatro religioso”. De facto, como
acentua António Couto, “da primeira vez que Jesus aparece a ensinar em público,
neste Evangelho, o povo exclama: ‘Este ensina com autoridade, e não como os escribas’!”
(Que doutrina
nova, com autoridade – “Didákê kainê kat’
exoudzían!”: Mc 1,27); e, “a
terminar a sua atividade pública neste Evangelho, é Jesus que mostra bem que
não é como os escribas”. E o prelado frisa que a cena central se passa no átrio
das mulheres do Templo de Jerusalém, na Casa do Tesouro (bêt
ha-gazît: gazophylákion) (Mc
12,41-44), onde muita gente deitava “muito do
que lhe sobrava, mas a viúva pobre deu ‘tudo quanto tinha, a sua vida (bíos)
toda’!”.
Trata-se duma
viúva pobre, portanto desfavorecida em dobro, como viúva e como pobre, mas que,
mesmo que tenha sido pouco o que deu, deu tudo: duas moeditas (“leptà
dýo”), isto é, um quadrante (“kodrántês”). Ora, o quadrante era 64.ª parte do denário; e o denário era o salário dum
dia de trabalho, que a pobre viúva recuperaria em breve, logo que se pusesse a
pedir. Porém, a cena serve para aprendermos a passar da ajuda para a doação de
nós mesmos.
Nestes
termos, o discípulo, à maneira de Jesus, deve aceitar pôr em jogo a própria
vida, e não apenas os adereços: “tudo, e não apenas o supérfluo”, pois dar do
que sobra não faz a verdadeira e subversiva memória de Jesus, que Se entregou a
Si mesmo (“heautòn”) por nós (“hypèr hêmôn”: Ef 5,2), por mim (“hypèr emoû”: Gl 2,20). E, como
diz o Bispo de Lamego, “o supérfluo deixa a vida intacta”, ao passo que “o dom
de si mesmo transforma a vida para sempre”, pois “a marca deste dom é a
totalidade e a definitividade”.
Há que
aprender com os simples, os humildes e os pobres. A sua vida é um livro!
2021.11.09 – Louro de Carvalho
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