Disse o Papa
Francisco, na alocução prévia à recitação do Angelus com os fiéis, peregrinos e visitantes presentes na Praça de
São Pedro, que na liturgia da Solenidade de Todos os Santos ressoa a mensagem programática
de Jesus, isto é, as Bem-aventuranças ou felicidades (cf Mt 5,1-12a), que nos mostram o caminho que leva
ao Reino de Deus e à felicidade: o caminho da humildade, da compaixão, da
mansidão, da justiça e da paz.
Por
sua vez, Dom António Couto, Bispo de Lamego, anota que, na mentalidade e língua
hebraicas, ‘felizes’ ou ‘bem-aventurados’ (‘beati’, em latim; ‘makárioi’,
em grego) se
diz ’ashrê, derivado do verbo ’ashar, que significa
“pôr-se a caminho” – significativo modo de designar os bem-aventurados, que figuram
no trecho evangélico susodito, como pioneiros, “os que abrem caminhos novos e
bons e de vida nova e boa para o mundo”. Na verdade,
foram e continuam a ser os Santos e os Pobres quem verdadeiramente abre
caminhos novos neste mundo enlatado, saciado, enjoado, anestesiado e medicado
em que vivemos.
E, como
assegura o Papa, “ser santo é percorrer este caminho”, que postula um estilo de
vida marcado por dois aspetos caraterísticos da vida de santidade: a alegria e
a profecia.
No atinente à alegria, é de reter que Jesus começa cada um dos 9 enunciados com o
termo “Bem-aventurados” (“makárioi”), que é portador do anúncio duma felicidade nunca ouvida, que
o mundo estranha porque pretende encontrar a felicidade noutros caminhos e
lugares. Porém, fica a saber-se que a bem-aventurança, a santidade não é programa
de vida só de esforço e renúncia, mas é, antes de mais, toda a gozosa
descoberta de que somos filhos amados de Deus, o que nos enche de gozo, pois
não se trata de conquista humana, mas de um dom que recebemos: somos santos
porque Deus, que é o Santo, vem habitar a nossa vida e nos dá a santidade, que
nos torna bem-aventurados. Assim, a alegria do cristão, conclui o Santo Padre, não
é emoção do momento, mas a certeza de podermos enfrentar cada situação sob o
olhar amoroso de Deus, com a valentia e a força que procedem d’Ele. E os
santos, no meio de tribulações, viveram e testemunharam esta alegria. Sem ela, a
fé converte-se num exercício rigoroso e opressivo, correndo o risco de se
transformar em tristeza, que corrói a vida. Por consequência, os cristãos devem
interrogar-se se são efetivamente cristãos alegres e se transmitem alegria. Com
efeito, reitera o Pontífice, “não há santidade sem alegria”.
No
respeitante à profecia, Francisco observa que as Bem-aventuranças, em
mensagem contra a corrente, se dirigem aos pobres, aos aflitos, aos famintos e
sedentos de justiça, quando, para o mundo, a felicidade assenta na riqueza,
poder, jovialidade, força, fama e êxito. Ora, Jesus derruba esses critérios e
faz um anúncio profético (é
a dimensão profética da santidade): a verdadeira plenitude de vida obtém-se no seguimento de Jesus,
praticando a sua Palavra – o que implica outra pobreza. Nestes termos, é
preciso ser pobre por dentro, esvaziar-se de si mesmo para deixar espaço a
Deus. Quem se sente rico, seguro e com sucesso faz assentar tudo em si mesmo e
fecha-se a Deus e aos irmãos, ao passo que aquele que está ciente de é pobre e
de que não se basta a si mesmo permanece aberto a Deus e ao próximo. Por isso,
no dizer do Papa, as Bem-aventuranças “são a profecia de uma humanidade
nova, dum modo novo de vida: fazer-se pequeno e entregar-se a Deus, em vez
de se destacar sobre os demais; ser manso, em vez de impor-se; praticar a misericórdia,
em vez de pensar só em si mesmo; trabalhar pela justiça pela paz, em vez de
alimentar, mesmo só com a conivência, injustiças e desigualdades.
A santidade é,
pois, acolher e levar à prática, com a preciosa ajuda de Deus, esta profecia
que revoluciona o mundo. Por conseguinte, o Santo Padre exorta a que nos
examinemos quanto ao testemunho que damos (ou não) da profecia de Jesus e da sua novidade, bem como quanto à manifestação
do espírito profético que recebemos no Batismo. E confia-nos à Santíssima
Virgem para que nos dê algo do seu ânimo, desse ânimo feliz com que engrandeceu
em alegria o Senhor, que “derruba os
poderosos de seus tronos e exalta os humildes” (cf Lc 1,52).
***
Nesta
solenidade, celebramos, em primeiro lugar, a Santidade de Deus, o Santo por
excelência, o Triságio (três vezes Santo). Só Ele é santo originariamente, mas, na sua generosa liberalidade,
comunica a santidade aos seus filhos. Ele é a Santidade fontal, em que bebemos
a santidade que haurimos por graça. Assim, todos quantos, pelo Batismo, aderem
a Cristo – o Deus Santo que encarnou – têm no seu ADN a santidade, pela qual
são chamados à Bem-aventurança. É certo que pecamos, desdizemos da santidade,
mas não deixamos de ser convocados pela Santidade para a santidade. É Ele que
nos chama e nos impele. Por isso, este é dia de Deus e nosso dia, dia de todos.
Só em Antioquia é que os santos, os seguidores de Jesus, passaram a ser
designados por “cristãos”. Dantes, o discurso oral ou as cartas eram dirigidos
aos “santos”.
Temos a
solenidade de todos os santos, não porque a Igreja não celebre a memória dos/as
que reconhece como santos/as (pela beatificação e, depois, pela canonização). Com efeito,
para lá do santo/a ou santos/as que o calendário litúrgico apresenta em cada
dia, podemos ver os muitos nomes que o Martirológio Romano indica para cada dia
à disponibilidade das comunidades cristãs. E não é por mero descargo de
consciência eclesial que se celebra este dia de todos os santos por
eventualmente ter ficado algum esquecido. A grande razão desta Solenidade é
juntar neste dia toda a família dos Santos e Santas em cuja vida e obra Deus se
revê, mesmo os não canonizados nem sequer beatificados. E, apesar de nossas
imperfeições, nós fazemos parte desta família. Nós somos concidadãos dos Santos
e Santas que estão no Céu, já vivemos da Bem-aventurança.
Apraz-me
referir que o elenco mateano das nove Bem-aventuranças, pode sintetizar-se na Bem-aventurança. Na verdade, bastaria a
assunção da pobreza evangélica e suas consequências para assegurarmos a posse
do Reino de Deus. Porém, analiticamente o evangelista ensanduícha seis fórmulas
de bem-aventurança entre duas cuja compensação é a posse do Reino. Começa pelos
pobres e termina por aqueles que “sofrem perseguição por amor da justiça”. Assim,
o enunciado anafórico de parágrafos programáticos encimados pelo termo
“felizes” dá a impressão de que Jesus no início do Sermão da Montanha entoa o
hino à Santidade, à Bem-aventurança (ao jeito do hino sacerdotal à
criação em Gn 1,1 – 2,4),
apresentando-o genericamente a todos (multidão), mas terminando com um recado direto aos discípulos:
“Felizes sereis vós…” (“makárioì este…”).
Dom António
Couto dá-nos preciosa ajuda para nos capacitarmos para a compreensão do
Evangelho da Bem-aventurança. Começa por lembrar que ‘Santo’, em hebraico, se
diz qadôsh, cujo significado é separado. Porém, o
Deus da Bíblia não está separado da
sua criação, pois “olha para ela e por ela” com enlevo e bondade. Também não
está separado de nós, pois “bem vê e vê bem os seus filhos”, ouve-lhes a voz,
conhece-lhes as alegrias e tristezas, desce ao nível deles e debruça-se sobre
eles com carinho. E esses filhos somos nós, que temos a obrigação e o gosto de
nos sentirmos irmãos. Ora, o nosso Deus está surpreendentemente separado
de Si mesmo, ou seja, “não agarrado ao seu mundo divino e dourado para o
defender ciosamente” (cf Fl 2,6). Ao invés,
“é um Deus que sai de Si por amor, para vir, por amor, ao nosso encontro”.
Na verdade,
Paulo, na Carta aos Filipenses e na 2.ª Carta aos Coríntios, resume esta
realidade ao dizer que Jesus “Se esvaziou a Si mesmo” (“heautòn ekénôsen”), recebendo a forma de escravo” (“morphèn doúlou labôn”) (Fl 2,7), e “sendo
rico Se fez pobre por causa de nós, para nos enriquecer com a sua pobreza” (2Cor 8,9).
Por isso, detendo-nos
a contemplar a vida dos Santos (beatificados e/ou canonizados) e de tantos que não têm ainda honras de altar, mas
que foram de extrema dedicação, simplicidade e alegria, pelo que são Santos,
pois arriscam e deram diariamente a vida pelos outros, compreendemos que todos
eles, se separaram “dos seus projetos, gostos, família, amigos, coisas”,
e se entregaram de alma e coração a Deus e aos irmãos. Os casos são
inumeráveis.
Todavia, há
que atentar na advertência do Bispo de Lamego:
“Entenda-se, porém, sempre que somos
Santos por graça, porque o Deus Santo, Ele é a Santidade, Se faz próximo de
nós, santificando-nos! É assim que nos tornamos, por graça, ‘concidadãos dos
santos e membros da família de Deus’ (Ef 2,19). Nova cidadania. Nova
familiaridade. Dêmos, pois, neste Dia Santo, graças ao Deus Santo, que nos
santifica!”.
E prossegue
o prelado lamecense dizendo que “só um Deus assim pode e sabe felicitar os
pobres”. De facto, em tom de felicidade, alargado a toda a humanidade, as
“Felicitações” do Rei novo “atingem todas as pessoas, chegando às franjas da
sociedade, às periferias existenciais, onde estão os pobres de verdade”. É o Evangelho
da “Bem-Aventurança” (Mt 5,1-12), que abre o
Sermão dito nas alturas da Montanha. No quadro das “Felicitações” – soando por 9 vezes o termo “felizes” –,
evidencia-se a centralidade da MISERICÓRDIA (5.ª felicitação: Mt 5,7). E salta à vista que as outras se abrem a recompensa
imediata ou futura. Porém, aponta Dom António Couto, a misericórdia roda sobre
si mesma, retornando, por obra e graça de Deus (passivo divino ou teológico) sobre os misericordiosos. Ou seja, a estes será feita
misericórdia (“autoì eleêthêsontai”). São igualmente de apreciar as inclusões assentes na
repetição da locução “o reino dos céus” (“hê basileía tôn ouranôn”: 1.ª e 8.ª – Mt 5,3.10) e do termo “justiça” (“dikaiosýnê”: 4.ª e 8.ª – Mt 5,6.10), que nos convidam ao reconhecimento de duas tábuas de felicitações, uma em
torno da pobreza evangélica (Mt 5,3-6) e outra em torno da bondade do coração (Mt 5,7-10).
Talvez
convenha revisitar o trecho em causa.
“Vendo as
multidões, subiu (“anébê”) à montanha. Tendo-se sentado,
vieram ter com ele os seus discípulos. Abrindo então a sua boca, ensinava-os
(“edídaxen”) dizendo:
“Felizes (“makárioi”) os pobres de espírito (“ptôkhoì tô
pneúmati”), porque deles é o reino dos céus (“hóti
autôn estin hê basileía tôn ouranôn”);
“Felizes os aflitos (“penthóntes”), porque serão consolados (“paraklêthêsontai”);
“Felizes os mansos (“praeîs”), porque herdarão a terra (“klêronomêsousin tên gên”);
“Felizes os que
têm fome e sede de justiça (“peinôntes kaì dipsôntes tên dikaiosýnên”), porque serão saciados (“khortasthêsontai”);
“Felizes os misericordiosos (“eleêmones”), porque lhes será feita misericórdia (“eleêthêsontai”);
“Felizes os puros de coração (“katharoì
têi kardíai”), porque verão a Deus (“tòn Theòn ópsontai”);
“Felizes os fazedores de paz (“eirênopoioí”), porque serão chamados filhos de Deus (“hyioì Theoû klêthêsontai”);
“Felizes os
perseguidos por causa da justiça (“dediôgménoi héneken dikaiosýnês”), porque deles é o reino dos céus (“hóti autôn estin hê
basileía tôn ouranôn”).
“Felizes sois
vós, quando vos ultrajarem e perseguirem e, mentindo, disserem contra vós toda
a espécie de mal por causa de mim (“héneken emoû”).” (Mt 5,1-11).
É de ter em
conta que nos mantemos nas alturas da Montanha e que certos modos de viver e
sentir só tê o seu habitat nas alturas. Por isso, no n.º 31 da
Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte (2001), São João Paulo II sustenta que “perguntar a um catecúmeno
se ele quer receber o Batismo é perguntar-lhe se quer ser santo e fazer-lhe
esta última pergunta é pô-lo no caminho do Sermão da Montanha, que abre com a
pobreza”; e, logo a seguir, o Papa polaco define a santidade como a “medida
alta” da vida cristã ordinária, vindo Francisco a chamar a atenção para o valor
dos santos de ao pé da porta. Porém, os pobres de espírito do Evangelho não são
pobres de Espírito Santo nem de inteligência, mas pessoas humildes, no sentido
em que a pessoa humilde é “sem espaço físico, económico, social ou psicológico”.
São os últimos da sociedade, mas que, na humildade e pobreza, desafiam a
sociedade, pois são pobres ao lado de gente rica, acomodada, a quem estendem a
mão, apontando o dedo ao egoísmo, superafirmação, instalação e comodidade – o
que não nos deixa de boa consciência. De facto, como reza o n.º 9 da Lumen
Gentium, “aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente
(…), mas constituindo-os em povo”. Assim, a Igreja de
Deus não são os tranquilamente instalados num círculo restrito, mas a imensa
comunhão de irmãos sem quaisquer muros ou barreiras.
Com razão o
trecho do Apocalipse (da 1.ª leitura: Ap 7,2-4.9-14) assinala a ingente multidão dos 144.000, número perfeito e tido como incontável
(12 X 12 X
1000), que traduz todos os redimidos (de todas as
raças, nações, povos e línguas), a inumerável
família dos filhos de Deus, que festejamos, todos com a veste branca purificada
no sangue do Cordeiro, e que aclamam o Deus Santo.
E, porque,
no seu indizível amor para connosco, Ele nos fez seus filhos, “somos, de facto,
filhos de Deus e seremos semelhantes a Ele”, como tão bem proclama o trecho da 1.ª
Carta de João feito 2.ª leitura da
liturgia da Solenidade (1Jo 3,1-3), pelo que, em devido tempo, passaremos a vê-lo tal
como Ele na beatitude divinal.
Portanto,
sendo nós membros, por graça, da “geração dos que procuram o Senhor”, nos
termos do Salmo 24, subiremos ao monte do Senhor e penetraremos no seu lugar
santo, porém, de “mãos inocentes e coração puro”, sendo que as mãos corporizam
a ação e o coração a intenção, o que nos leva a não demandar os ídolos e a não
praticar a fraude ou cair na insolência.
Na verdade,
Deus criou o mundo e é o seu Senhor. Nessa qualidade, chama-nos a comparecer
diante de Si para nos interrogar sobre o que fizemos ou omitimos. E, quando
Deus vem, vem para o que é seu, pelo que deseja ter livre acesso. Nós vivemos
por obra e graça de Deus, vivemos diante de Deus e podemos viver com Deus. Com
efeito, o Senhor dos Exércitos está empenhado, através dos séculos, em transferir-nos
para a sua eternidade feliz.
E o primeiro
passo para essa transferência é ter os nossos nomes inscritos no Céu:
“Felizes sois quando
vos insultarem, vos perseguirem e mentindo disserem todo o mal contra vós por
causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque a vossa recompensa é grande nos
céus, pois do mesmo modo perseguiram os profetas antes de vós.” (Mt 5,11-12).
***
É a festa dos santos, a festa da santidade, da
bem-aventurança, a festa de Deus, a nossa festa. Haja música e viva a festa!
2021.11.01 –
Louro de Carvalho
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