terça-feira, 2 de novembro de 2021

A solenidade da Santidade ou da Bem-aventurança

 

Disse o Papa Francisco, na alocução prévia à recitação do Angelus com os fiéis, peregrinos e visitantes presentes na Praça de São Pedro, que na liturgia da Solenidade de Todos os Santos ressoa a mensagem programática de Jesus, isto é, as Bem-aventuranças ou felicidades (cf Mt 5,1-12a), que nos mostram o caminho que leva ao Reino de Deus e à felicidade: o caminho da humildade, da compaixão, da mansidão, da justiça e da paz.

Por sua vez, Dom António Couto, Bispo de Lamego, anota que, na mentalidade e língua hebraicas, ‘felizes’ ou ‘bem-aventurados’ (‘beati’, em latim; makárioi’, em grego) se diz ’ashrê, derivado do verbo ’ashar, que significa “pôr-se a caminho” – significativo modo de designar os bem-aventurados, que figuram no trecho evangélico susodito, como pioneiros, “os que abrem caminhos novos e bons e de vida nova e boa para o mundo”. Na verdade, foram e continuam a ser os Santos e os Pobres quem verdadeiramente abre caminhos novos neste mundo enlatado, saciado, enjoado, anestesiado e medicado em que vivemos.

E, como assegura o Papa, “ser santo é percorrer este caminho”, que postula um estilo de vida marcado por dois aspetos caraterísticos da vida de santidade: a alegria e a profecia.

No atinente à alegria, é de reter que Jesus começa cada um dos 9 enunciados com o termo “Bem-aventurados(makárioi), que é portador do anúncio duma felicidade nunca ouvida, que o mundo estranha porque pretende encontrar a felicidade noutros caminhos e lugares. Porém, fica a saber-se que a bem-aventurança, a santidade não é programa de vida só de esforço e renúncia, mas é, antes de mais, toda a gozosa descoberta de que somos filhos amados de Deus, o que nos enche de gozo, pois não se trata de conquista humana, mas de um dom que recebemos: somos santos porque Deus, que é o Santo, vem habitar a nossa vida e nos dá a santidade, que nos torna bem-aventurados. Assim, a alegria do cristão, conclui o Santo Padre, não é emoção do momento, mas a certeza de podermos enfrentar cada situação sob o olhar amoroso de Deus, com a valentia e a força que procedem d’Ele. E os santos, no meio de tribulações, viveram e testemunharam esta alegria. Sem ela, a fé converte-se num exercício rigoroso e opressivo, correndo o risco de se transformar em tristeza, que corrói a vida. Por consequência, os cristãos devem interrogar-se se são efetivamente cristãos alegres e se transmitem alegria. Com efeito, reitera o Pontífice, “não há santidade sem alegria”.

No respeitante à profecia, Francisco observa que as Bem-aventuranças, em mensagem contra a corrente, se dirigem aos pobres, aos aflitos, aos famintos e sedentos de justiça, quando, para o mundo, a felicidade assenta na riqueza, poder, jovialidade, força, fama e êxito. Ora, Jesus derruba esses critérios e faz um anúncio profético (é a dimensão profética da santidade): a verdadeira plenitude de vida obtém-se no seguimento de Jesus, praticando a sua Palavra – o que implica outra pobreza. Nestes termos, é preciso ser pobre por dentro, esvaziar-se de si mesmo para deixar espaço a Deus. Quem se sente rico, seguro e com sucesso faz assentar tudo em si mesmo e fecha-se a Deus e aos irmãos, ao passo que aquele que está ciente de é pobre e de que não se basta a si mesmo permanece aberto a Deus e ao próximo. Por isso, no dizer do Papa, as Bem-aventuranças “são a profecia de uma humanidade nova, dum modo novo de vida: fazer-se pequeno e entregar-se a Deus, em vez de se destacar sobre os demais; ser manso, em vez de impor-se; praticar a misericórdia, em vez de pensar só em si mesmo; trabalhar pela justiça pela paz, em vez de alimentar, mesmo só com a conivência, injustiças e desigualdades.

A santidade é, pois, acolher e levar à prática, com a preciosa ajuda de Deus, esta profecia que revoluciona o mundo. Por conseguinte, o Santo Padre exorta a que nos examinemos quanto ao testemunho que damos (ou não) da profecia de Jesus e da sua novidade, bem como quanto à manifestação do espírito profético que recebemos no Batismo. E confia-nos à Santíssima Virgem para que nos dê algo do seu ânimo, desse ânimo feliz com que engrandeceu em alegria o Senhor, que “derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes(cf Lc 1,52).

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Nesta solenidade, celebramos, em primeiro lugar, a Santidade de Deus, o Santo por excelência, o Triságio (três vezes Santo). Só Ele é santo originariamente, mas, na sua generosa liberalidade, comunica a santidade aos seus filhos. Ele é a Santidade fontal, em que bebemos a santidade que haurimos por graça. Assim, todos quantos, pelo Batismo, aderem a Cristo – o Deus Santo que encarnou – têm no seu ADN a santidade, pela qual são chamados à Bem-aventurança. É certo que pecamos, desdizemos da santidade, mas não deixamos de ser convocados pela Santidade para a santidade. É Ele que nos chama e nos impele. Por isso, este é dia de Deus e nosso dia, dia de todos. Só em Antioquia é que os santos, os seguidores de Jesus, passaram a ser designados por “cristãos”. Dantes, o discurso oral ou as cartas eram dirigidos aos “santos”.

Temos a solenidade de todos os santos, não porque a Igreja não celebre a memória dos/as que reconhece como santos/as (pela beatificação e, depois, pela canonização). Com efeito, para lá do santo/a ou santos/as que o calendário litúrgico apresenta em cada dia, podemos ver os muitos nomes que o Martirológio Romano indica para cada dia à disponibilidade das comunidades cristãs. E não é por mero descargo de consciência eclesial que se celebra este dia de todos os santos por eventualmente ter ficado algum esquecido. A grande razão desta Solenidade é juntar neste dia toda a família dos Santos e Santas em cuja vida e obra Deus se revê, mesmo os não canonizados nem sequer beatificados. E, apesar de nossas imperfeições, nós fazemos parte desta família. Nós somos concidadãos dos Santos e Santas que estão no Céu, já vivemos da Bem-aventurança.

Apraz-me referir que o elenco mateano das nove Bem-aventuranças, pode sintetizar-se na Bem-aventurança. Na verdade, bastaria a assunção da pobreza evangélica e suas consequências para assegurarmos a posse do Reino de Deus. Porém, analiticamente o evangelista ensanduícha seis fórmulas de bem-aventurança entre duas cuja compensação é a posse do Reino. Começa pelos pobres e termina por aqueles que “sofrem perseguição por amor da justiça”. Assim, o enunciado anafórico de parágrafos programáticos encimados pelo termo “felizes” dá a impressão de que Jesus no início do Sermão da Montanha entoa o hino à Santidade, à Bem-aventurança (ao jeito do hino sacerdotal à criação em Gn 1,1 – 2,4), apresentando-o genericamente a todos (multidão), mas terminando com um recado direto aos discípulos: “Felizes sereis vós…(“makárioì este…”).        

Dom António Couto dá-nos preciosa ajuda para nos capacitarmos para a compreensão do Evangelho da Bem-aventurança. Começa por lembrar que ‘Santo’, em hebraico, se diz qadôsh, cujo significado é separado. Porém, o Deus da Bíblia não está separado da sua criação, pois “olha para ela e por ela” com enlevo e bondade. Também não está separado de nós, pois “bem vê e vê bem os seus filhos”, ouve-lhes a voz, conhece-lhes as alegrias e tristezas, desce ao nível deles e debruça-se sobre eles com carinho. E esses filhos somos nós, que temos a obrigação e o gosto de nos sentirmos irmãos. Ora, o nosso Deus está surpreendentemente separado de Si mesmo, ou seja, “não agarrado ao seu mundo divino e dourado para o defender ciosamente” (cf Fl 2,6). Ao invés, “é um Deus que sai de Si por amor, para vir, por amor, ao nosso encontro”.

Na verdade, Paulo, na Carta aos Filipenses e na 2.ª Carta aos Coríntios, resume esta realidade ao dizer que Jesus “Se esvaziou a Si mesmo” (“heautòn ekénôsen), recebendo a forma de escravo” (“morphèn doúlou labôn”) (Fl 2,7), e “sendo rico Se fez pobre por causa de nós, para nos enriquecer com a sua pobreza” (2Cor 8,9).

Por isso, detendo-nos a contemplar a vida dos Santos (beatificados e/ou canonizados) e de tantos que não têm ainda honras de altar, mas que foram de extrema dedicação, simplicidade e alegria, pelo que são Santos, pois arriscam e deram diariamente a vida pelos outros, compreendemos que todos eles, se separaram “dos seus projetos, gostos, família, amigos, coisas”, e se entregaram de alma e coração a Deus e aos irmãos. Os casos são inumeráveis.

Todavia, há que atentar na advertência do Bispo de Lamego:

Entenda-se, porém, sempre que somos Santos por graça, porque o Deus Santo, Ele é a Santidade, Se faz próximo de nós, santificando-nos! É assim que nos tornamos, por graça, ‘concidadãos dos santos e membros da família de Deus’ (Ef 2,19). Nova cidadania. Nova familiaridade. Dêmos, pois, neste Dia Santo, graças ao Deus Santo, que nos santifica!”.

E prossegue o prelado lamecense dizendo que “só um Deus assim pode e sabe felicitar os pobres”. De facto, em tom de felicidade, alargado a toda a humanidade, as “Felicitações” do Rei novo “atingem todas as pessoas, chegando às franjas da sociedade, às periferias existenciais, onde estão os pobres de verdade”. É o Evangelho da “Bem-Aventurança” (Mt 5,1-12), que abre o Sermão dito nas alturas da Montanha. No quadro das “Felicitações” – soando por 9 vezes o termo “felizes” –, evidencia-se a centralidade da MISERICÓRDIA (5.ª felicitação: Mt 5,7). E salta à vista que as outras se abrem a recompensa imediata ou futura. Porém, aponta Dom António Couto, a misericórdia roda sobre si mesma, retornando, por obra e graça de Deus (passivo divino ou teológico) sobre os misericordiosos. Ou seja, a estes será feita misericórdia (“autoì eleêthêsontai”). São igualmente de apreciar as inclusões assentes na repetição da locução “o reino dos céus” (“hê basileía tôn ouranôn”: 1.ª e 8.ª – Mt 5,3.10) e do termo “justiça” (“dikaiosýnê”: 4.ª e 8.ª – Mt 5,6.10), que nos convidam ao reconhecimento de duas tábuas de felicitações, uma em torno da pobreza evangélica (Mt 5,3-6) e outra em torno da bondade do coração (Mt 5,7-10).

Talvez convenha revisitar o trecho em causa.

Vendo as multidões, subiu (“anébê”) à montanha. Tendo-se sentado, vieram ter com ele os seus discípulos. Abrindo então a sua boca, ensinava-os (“edídaxen”) dizendo:

Felizes (“makárioi”) os pobres de espírito (“ptôkhoì tô pneúmati), porque deles é o reino dos céus (“hóti autôn estin hê basileía tôn ouranôn”);

Felizes os aflitos (“penthóntes”), porque serão consolados (“paraklêthêsontai”);

Felizes os mansos (“praeîs”), porque herdarão a terra (“klêronomêsousin tên gên”);

Felizes os que têm fome e sede de justiça (“peinôntes kaì dipsôntes tên dikaiosýnên”), porque serão saciados (“khortasthêsontai”);

Felizes os misericordiosos (“eleêmones), porque lhes será feita misericórdia (“eleêthêsontai);

Felizes os puros de coração (“katharoì têi kardíai”), porque verão a Deus (“tòn Theòn ópsontai”);

Felizes os fazedores de paz (“eirênopoioí”), porque serão chamados filhos de Deus (“hyioì Theoû klêthêsontai”);

Felizes os perseguidos por causa da justiça (“dediôgménoi héneken dikaiosýnês”), porque deles é o reino dos céus (“hóti autôn estin hê basileía tôn ouranôn”).

Felizes sois vós, quando vos ultrajarem e perseguirem e, mentindo, disserem contra vós toda a espécie de mal por causa de mim (“héneken emoû).” (Mt 5,1-11).

É de ter em conta que nos mantemos nas alturas da Montanha e que certos modos de viver e sentir só tê o seu habitat nas alturas. Por isso, no n.º 31 da Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte (2001), São João Paulo II sustenta que “perguntar a um catecúmeno se ele quer receber o Batismo é perguntar-lhe se quer ser santo e fazer-lhe esta última pergunta é pô-lo no caminho do Sermão da Montanha, que abre com a pobreza”; e, logo a seguir, o Papa polaco define a santidade como a “medida alta” da vida cristã ordinária, vindo Francisco a chamar a atenção para o valor dos santos de ao pé da porta. Porém, os pobres de espírito do Evangelho não são pobres de Espírito Santo nem de inteligência, mas pessoas humildes, no sentido em que a pessoa humilde é “sem espaço físico, económico, social ou psicológico”. São os últimos da sociedade, mas que, na humildade e pobreza, desafiam a sociedade, pois são pobres ao lado de gente rica, acomodada, a quem estendem a mão, apontando o dedo ao egoísmo, superafirmação, instalação e comodidade – o que não nos deixa de boa consciência. De facto, como reza o n.º 9 da Lumen Gentium, “aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente (…), mas constituindo-os em povo”. Assim, a Igreja de Deus não são os tranquilamente instalados num círculo restrito, mas a imensa comunhão de irmãos sem quaisquer muros ou barreiras.

Com razão o trecho do Apocalipse (da 1.ª leitura: Ap 7,2-4.9-14) assinala a ingente multidão dos 144.000, número perfeito e tido como incontável (12 X 12 X 1000), que traduz todos os redimidos (de todas as raças, nações, povos e línguas), a inumerável família dos filhos de Deus, que festejamos, todos com a veste branca purificada no sangue do Cordeiro, e que aclamam o Deus Santo.

E, porque, no seu indizível amor para connosco, Ele nos fez seus filhos, “somos, de facto, filhos de Deus e seremos semelhantes a Ele”, como tão bem proclama o trecho da 1.ª Carta de João  feito 2.ª leitura da liturgia da Solenidade (1Jo 3,1-3), pelo que, em devido tempo, passaremos a vê-lo tal como Ele na beatitude divinal.

Portanto, sendo nós membros, por graça, da “geração dos que procuram o Senhor”, nos termos do Salmo 24, subiremos ao monte do Senhor e penetraremos no seu lugar santo, porém, de “mãos inocentes e coração puro”, sendo que as mãos corporizam a ação e o coração a intenção, o que nos leva a não demandar os ídolos e a não praticar a fraude ou cair na insolência.

Na verdade, Deus criou o mundo e é o seu Senhor. Nessa qualidade, chama-nos a comparecer diante de Si para nos interrogar sobre o que fizemos ou omitimos. E, quando Deus vem, vem para o que é seu, pelo que deseja ter livre acesso. Nós vivemos por obra e graça de Deus, vivemos diante de Deus e podemos viver com Deus. Com efeito, o Senhor dos Exércitos está empenhado, através dos séculos, em transferir-nos para a sua eternidade feliz.

E o primeiro passo para essa transferência é ter os nossos nomes inscritos no Céu:

Felizes sois quando vos insultarem, vos perseguirem e mentindo disserem todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque a vossa recompensa é grande nos céus, pois do mesmo modo perseguiram os profetas antes de vós.” (Mt 5,11-12).

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É a festa dos santos, a festa da santidade, da bem-aventurança, a festa de Deus, a nossa festa. Haja música e viva a festa!

2021.11.01 – Louro de Carvalho

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