segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Só um exemplo de que temos de pagar erros da justiça-espetáculo

 
A 13 de novembro de 2014, a PJ (Polícia Judiciária) deteve 11 pessoas – incluindo altos quadros do Estado – por suspeitas de corrupção, branqueamento de capitais, tráfico de influência e peculato, no âmbito duma investigação sobre atribuição de vistos gold. Era a Operação Labirinto.
O caso que teve maior impacto e causou maior estupefação social foi o de Manuel Jarmela Palos, então diretor nacional do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), que ocupava o cargo desde 2005, havendo entrado para o SEF em 1993, havia quase 22 anos, onde fez o que se chama “carreira de sucesso”. O seu trabalho foi reconhecido além-fronteiras e, em 1999, foi distinguido pelo então Ministro do Interior de Espanha com a “Cruz al Mérito Policial com Distintivo Blanco”; e, 8 anos depois (2007), o Ministro da Administração Interna português atribuiu-lhe a medalha de Mérito Liberdade e Segurança na União Europeia, contributo para a construção do Espaço Liberdade e Segurança da Europa, através da concretização do projeto ISone4ALL.
Quase tão surpreendente como a de Palos foi a detenção de Maria Antónia Moura Anes, de 56 anos. Nomeada secretária-geral do Ministério da Justiça, a 1 de novembro de 2011, pela então Ministra Paula Teixeira da Cruz, foi coordenadora do setor de formação do IRN (Instituto dos Registos e do Notariado) entre julho de 2010 e setembro de 2011. E aí se cruzou com um outro dos 11 detidos, António Figueiredo, presidente do IRN desde 2007.
Albertina Gonçalves, secretária-geral do Ministério do Ambiente e sócia do escritório de advogados do então Ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, foi ouvida no âmbito da operação vistos gold. Não foi detida, mas o seu gabinete foi objeto de buscas.
Além dos suspeitos com funções de relevo na administração pública – Palos, Antónia Anes e Figueiredo –, foram detidos mais 3 funcionários do IRN e 3 cidadãos chineses. Os 11 detidos passaram a noite na prisão e foram presentes ao juiz de instrução criminal no dia seguinte.
Fez a PJ saber que tal investigação estava em curso há vários meses e que a operação visto gold foi desencadeada em diversos pontos do país, envolvendo cerca de 200 investigadores. A investigação foi dirigida pelo DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal), coadjuvado por elementos da UNCC (Unidade Nacional de Combate à Corrupção) da PJ.
A PGR (Procuradoria-Geral da República) confirmara, logo pela manhã, que estavam em curso várias diligências, nomeadamente 60 buscas em diversos pontos do país, tendo sido emitidos mandados de detenção, pois estavam em causa “suspeitas de crimes de corrupção, tráfico de influências, peculato e branqueamento de capitais”. Espetáculo de justiça ou justiça-espetáculo!
Neste contexto, o Ministro da Administração Interna, também indiciado, apresentou o pedido de demissão a 16 de novembro de 2014, tendo-lhe sucedido no cargo Anabela Rodrigues a 19 de novembro. A 2 de julho de 2015, a Comissão de Ética da Assembleia da República decidiu, em reunião à porta fechada, levantar a imunidade parlamentar ao deputado Miguel Macedo no âmbito das investigações aos vistos gold. A 8 de setembro de 2015, foi constituído arguido por prevaricação e tráfico de influências. Em novembro de 2015, foi acusado pelo MP (Ministério Público) da prática de três crimes de prevaricação de titular de cargo político e um crime de tráfico de influências no âmbito do processo dos vistos gold. Em janeiro de 2019, foi absolvido de todas as acusações.
Na verdade, a 4 de janeiro de 2019, Macedo foi absolvido de três crimes de prevaricação de titular de cargo político e um crime de tráfico de influência, no processo vistos gold, pois o tribunal não deu como provado que Macedo, que se demitiu do cargo na sequência do processo, tenha cometido os crimes de que foi acusado pelo MP. E Palos, que chegou a estar em prisão preventiva, foi absolvido de um crime de corrupção passiva e dois de prevaricação, com o juiz-presidente Francisco Henriques a referir que “o tribunal não teve quaisquer dúvidas”.
Ao invés, Figueiredo e Antónia Anes foram condenados. Figueiredo foi condenado a 4 anos e 7 meses, mas com suspensão de pena, por corrupção ativa e passiva por causa de concursos para o lugar de presidente do IRN, ficando impedido de exercer funções durante 3 anos, mas foi absolvido dos crimes de corrupção, tráfico de influências e prevaricação. Antónia Anes foi condenada a 4 anos e 4 meses de prisão, com suspensão de pena, por corrupção ativa e passiva pela prática de ato ilícito. Os empresários Jaime Gomes e Eliseu Bumba, bem como 4 funcionários do IRN foram absolvidos.
Sobre o caso, o ex-Ministro, à saída do julgamento no Campus da Justiça, disse:
O tribunal deu hoje resposta às canalhices que me fizeram ao longo destes quatro anos”.
Segundo a Lusa, num processo em que no total de 21 arguidos pronunciados por 47 crimes económico-financeiros, nomeadamente corrupção ativa e passiva e branqueamento de capitais – a maioria deles não provados em julgamento – foram quase todos foram absolvidos.
Tinham sido aplicadas medidas de coação privativas da liberdade a 5 dos arguidos: Figueiredo, Jarmela Palos, Antónia Anes, Jaime Gomes e o chinês Zhu Xiaodong.
Em longa exposição oral, o juiz-presidente criticou várias vezes a acusação e a narrativa dos procuradores do MP, dado que a maioria dos arguidos estava acusada em coautoria.
Este julgamento, que contou com 73 sessões – e para o qual os 21 arguidos arrolaram 216 testemunhas e o MP 208 –, começara em 13 de fevereiro de 2017 e teve o acórdão previsto para 21 de setembro de 2018, mas o juiz-presidente adiou-o para 17 de maio de 2019. Por indicação do Conselho Superior da Magistratura, a decisão teve de ser antecipada e o juiz decidiu marcar a leitura para dia 21 de dezembro de 2018. Contudo, a greve parcial dos funcionários judiciais levou o juiz a adiar a leitura do acórdão para 4 de janeiro de 2019.
O MP pediu a condenação de Macedo a 5 anos de prisão, pena passível de ser suspensa na sua execução, 8 anos de prisão para Figueiredo e ainda suspensão de funções públicas durante dois a três anos. Para os restantes arguidos, o procurador José Nisa, que pedira a condenação a uma pena não superior a 5 anos de prisão, admitiu que fosse suspensa. A exceção foi para Jaime Gomes, para quem pediu prisão efetiva por corrupção passiva, prevaricação de titular de cargo político em coautoria com Macedo, Figueiredo e Palos e tráfico de influência.
No caso de Jarmela Palos, o MP deu como provada a corrupção passiva, pedindo uma pena de até 5 anos de prisão, podendo ser suspensa na sua execução, mas admitiu que este arguido fosse absolvido de um dos dois crimes de prevaricação.
Miguel Macedo demitira-se do cargo de Ministro em novembro de 2014 depois de o MP lhe imputar o favorecimento a um grupo de pessoas que pretendia lucrar de forma ilícita com a atribuição de vistos gold, realizando negócios imobiliários lucrativos com empresários chineses que pretendiam obter autorização de residência para investimento, grupo de que faziam parte, alegadamente, Jaime Gomes, empresário e amigo de Macedo, Figueiredo e Zhu Xiaodong.
Em causa estavam também alegados favorecimentos a empresa de Paulo Lalanda de Castro, ex-patrão da farmacêutica Octopharma, acusado de tráfico de influências, e ao grupo Bragaparques. Macedo foi acusado de prevaricação de titular de cargo político e tráfico de influência, Figueiredo respondeu por corrupção passiva, recebimento indevido de vantagem, peculato de uso, tráfico de influência, prevaricação e branqueamento de capitais. Antónia Anes respondeu por corrupção ativa para a prática de ato ilícito, corrupção passiva para a prática de ato ilícito e tráfico de influência e os empresários chineses Zhu Xiaodong, Zhu Baoe e Xia Baoling por corrupção ativa e de tráfico de influências.
***
Manuel Jarmela Palos, ex-diretor do SEF, entrou no passado dia 12, com uma ação contra o Estado, no valor de mais de 147 mil euros. Quando estava à frente do SEF, foi detido e acusado de um crime de corrupção passiva e dois de prevaricação no âmbito do processo dos vistos gold. Seria ilibado de todos os crimes a 4 de janeiro de 2019. O juiz chegou mesmo a referir que “o tribunal não teve quaisquer dúvidas” da sua absolvição.
Palos foi o primeiro diretor de uma polícia portuguesa a ser preso preventivamente e afastado do cargo. Detido a 13 de novembro de 2014, esteve em prisão domiciliária até março de 2015, com pulseira eletrónica, acusado de, com Macedo, integrar uma rede de troca de favores envolvendo vistos gold, cursos em Angola, tratamento de doentes líbios e concursos públicos viciados.
Quando foi constituído arguido pelo DCIAP, o juiz Carlos Alexandre determinou-lhe como medida de coação “a suspensão do exercício da profissão e da atividade pública”, que se prolongaria durante mais de 4 anos, até à sentença de absolvição.
Apesar de licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, nunca exercera advocacia nem estava inscrito na Ordem dos Advogados. Em 1993, aos 29 anos, entrou como inspetor para o SEF e rapidamente se tornou responsável pelo posto de fronteira do aeroporto de Lisboa, até ter sido nomeado diretor regional do Centro em 1996, subindo a diretor-geral-adjunto em 2001 e a diretor nacional 4 anos depois. Ainda preso, interpôs uma ação no Tribunal Administrativo de Lisboa para impedir que o Ministério da Administração Interna lhe cortasse o ordenado, mas o pagamento ficou mesmo suspenso. Em 2016 chegou a trabalhar como tarefeiro na ANSR (Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária), contratado na sua qualidade de jurista para processar autos de contraordenação rodoviária. Só em 2019 reentrou na carreira de investigação e fiscalização do SEF, em que tem a categoria de inspetor superior. Desde setembro deste ano de 2021 que Jarmela Palos está colocado como OLI (Oficial de Ligação) na embaixada de Portugal, em Madrid, por proposta do Ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita.
a criação duma agência de vistos gold na China para angariar investidores imobiliários em Portugal era o plano gizado entre 2013 e 2014 por Jaime Gomes e António Figueiredo. Nessa altura, também Miguel Macedo e Jarmela Palos tinham em mente abrir um posto de oficial de ligação para a imigração naquele país, com o objetivo de controlar os fluxos de trabalhadores e as máfias chinesas em direção à Europa. Para o MP, havia fortes indícios de que os dois eventos escondiam um sem-número de ligações e interesses suspeitos, sendo eles a génese do processo dos vistos gold. Só que para o juiz Francisco Henriques − que ilibou o ex-MAI e o ex-número um do SEF − nunca houve provas de que os dois estivessem a par do projeto de Gomes e Figueiredo. E foi mais longe: as duas ideias apareceram na mesma altura por mera coincidência temporal e nada mais. “Estas atuações não aconteceram de forma conjunta, nem mesmo concorrente. Apenas surgiram num mesmo processo temporal” – pode ler-se no acórdão de 2439 páginas do Tribunal da Comarca de Lisboa.
***
Estamos, assim, perante mais um caso dos efeitos perversos da Justiça-espetáculo.
Se o MP simplesmente pretende fazer questão de sobressair na pantalha da praça pública como protagonista sem escrúpulos do ataque mediático a altas figuras da política ou dos setores da finança e da economia, parecendo até querer marcar a agenda política, frequentemente pode ser este o resultado.
É óbvio que o MP, na defesa do interesse público, no que deve ser coadjuvado pelas polícias, tem de atacar cerce e breve todos os casos suspeitos, seja qual for o lugar que as personalidades em causa detenham na sociedade. Porém, deve abster-se de fazer coincidir – ou dar a entender que faz coincidir – a sua ação com datas e eventos que, de sua natureza, tenham uma conotação político-partidária, parecendo tomar partido por uma ou outra fação. Depois, deve ter o máximo cuidado com a gestão da informação, sem dar azo a condenações prévias por parte da opinião pública, bem como fazer uma acusação rigorosa, que prime tanto pela ousadia como pela prudência. Nisto, o juiz de instrução criminal não deve ser nem o mero notário do MP, servido de coadjuvante de carrasco dos arguidos, nem deve ser o mero intrépido defensor dos arguidos a ponto de parecer o passador de vistos para fora do processo judicial. Ainda que, pontualmente deva acompanhar algumas ações investigatórias, não lhe cabe formular decisões que pareçam sentenças condenatórias ou absolutórias.
Já não falo da instrução subsequente à acusação, que ou é perda de tempo ou deixa pelo caminho e sem julgamentos crimes constantes da acusação tida por consistente. Bom seria que toda a acusação caísse ou fosse confirmada em sede de julgamento.
De resto, absurdas e espetaculares medidas de coação, óbvia e alegadamente sustentadas nos pressupostos do CPP, que, tomadas para facilitar a investigação, mais não fazem do que travar a carreira política, social e profissional dos interessados, bem como o juízo condenatório da parte do público, que lhes deslustra o bom nome e lhes põe em pulgas a família. Daí decorre que os contribuintes (O Estado paga com o dinheiro de todos nós) estejam sujeitos ao pagamento de indemnizações por danos patrimoniais e morais infligidos aos lesados pela justiça irresponsável.
Deus nos livre de quem tenha prazer em nos apresentar a julgamento, de quem use e abuse de todas as artimanhas para escapar à justiça (vírgulas, reclamações, recursos, aclarações), de quem ouse condenar inocentes, de quem ouse declarar inocentes os criminosos. Deus nos livre da justiça que se emaranha em formalismos.
Será que teremos à porta mais processos indemnizatórios como o do ex-diretor do ex-SEF?

2021.11.15 – Louro de Carvalho    

Sem comentários:

Enviar um comentário