domingo, 14 de novembro de 2021

E os pobres?

 

Contou um sacerdote, na Missa a que presidiu neste V Dia Mundial dos Pobres, que, sendo ainda jovem, visitou a Basílica de São Pedro em Roma e, a par da contemplação do sumptuoso templo, todo ele e seu recheio um volumoso monumento de arte, resolveu confessar-se. E, depois de ter apresentado os seus pecados, o confessor perguntou: “E os pobres?”. Esta pergunta, que nos interpela sobre o que temos feito e o que estamos a fazer, como cristãos e como Igreja, pelos pobres, remete para a génese e objetivos da instituição deste Dia Mundial dos Pobres.

Disse, no passado dia 12, em Assis, o Papa, no encontro com centenas de pobres, que esta ideia “nasceu de uma forma bastante estranha, numa sacristia”: ia celebrar a missa e Étienne, um dos pobres sugeriu-lhe: “Vamos a um Dia dos Pobres”. Francisco saiu e sentiu que o Espírito Santo, por dentro, lhe estava a dizer que fizesse isso. Começou, pois, “com a coragem de quem tem coragem de levar as coisas adiante”.

E, no predito encontro, o Santo Padre ouviu testemunhos de pobres, que agradeceu. E frisou que Assis traz a marca do rosto de São Francisco, que viveu a sua inquieta juventude por aquelas ruas e recebeu o chamamento a viver o Evangelho ao pé da letra, tornando-se “uma lição fundamental para nós”. Em alguns aspetos, a sua santidade faz-nos estremecer, “porque parece impossível imitá-Lo, mas, “quando nos lembramos de alguns momentos da sua vida, daquelas “florzinhas” que foram colhidas para mostrar a beleza da sua vocação, sentimo-nos atraídos pela sua simplicidade de coração e de vida”, a atração para Cristo, para o Evangelho. 

Sobre a personalidade de Francisco de Assis, o Papa referiu que Ele e o Irmão Masseo fizeram viagem a França, sem tomarem quaisquer disposições para consigo. A dada altura, começaram a pedir por caridade e foi cada um para seu lado. Francisco, de pequena estatura e considerado “vagabundo”, obteve alguns pedaços de pão duro; ao invés, Masseo, “homem alto e bonito” recebeu alguns pedaços de pão bem apresentados. Reencontrados, sentaram-se no chão e colocaram o que haviam coligido sobre uma pedra. Ao ver os pedaços de pão coligidos pelo irmão, Francisco disse não serem “dignos deste grande tesouro”.  E Masseo respondeu: “Padre Francisco, como pode falar dum tesouro onde há tanta pobreza e falta o necessário?” Francisco respondeu: “É precisamente isso que considero um grande tesouro, que nada existe, mas o que temos foi dado pela Providência que nos deu este pão”. De facto, como diz o Papa, é bom “saber contentar-se com o pouco que temos e partilhá-lo com os outros”.

A Porciúncula é das igrejinhas que São Francisco pensou em restaurar depois que Jesus lhe pediu para “consertar a sua casa”. Nunca teria pensado que o Senhor lhe pedia que desse a vida a renovar a igreja feita de pessoas, as pedras vivas da Igreja. Ali gostava de ficar para  orar por longos períodos, em silêncio, em atitude de escuta “do que Deus queria dele. Também ali, como vinca o Papa, os pobres rogam ao Senhor que ouça o clamor deles e venha em seu socorro. E, sabendo que “a primeira marginalização de que sofrem os pobres é a marginalização espiritual”, o Pontífice agradece a generosidade dos voluntários que encontram tempo “para ajudar os pobres e levar-lhes comida e bebidas quentes”, mas alegra-se especialmente quando ouve que “esses voluntários param um pouco, falam com o povo e, às vezes, oram junto com eles”. E a estada na Porciúncula “lembra-nos a companhia do Senhor, que Ele nunca nos deixa sozinhos, Ele sempre nos acompanha em todos os momentos das nossas vidas” e que  “nos acompanha, na escuta, na oração e nos testemunhos dados: é Ele connosco”.

Por outro lado, a Porciúncula, onde São Francisco acolheu Santa Clara, os primeiros irmãos e muitos pobres que O procuraram e que recebeu como irmãos e irmãs, compartilhando tudo com eles, é a expressão mais evangélica que somos chamados a fazer nossa, a hospitalidade.

Ora, hospitalidade é abrir a porta da nossa casa e a do nosso coração, para que entre quem bate e que se sinta bem-vindo e livre. De facto, o verdadeiro sentido de fraternidade gera a experiência sincera de hospitalidade; a hospitalidade, ao contrário da rejeição, que fecha no egoísmo, gera o sentido de comunidade. No dizer de Madre Teresa de Calcutá, que fazia do serviço hospitaleiro a sua vida, compartilhar um sorriso com alguém que precisa é bom para ambas as pessoas – sorriso como expressão de simpatia, de ternura, um sorriso que envolve.

E o Papa não omitiu um agradecimento ao Cardeal Barbarin, ali presente, que “está entre os pobres”, pois “sofreu com dignidade a experiência da pobreza, abandono, desconfiança” defendendo-se com silêncio e oração – um “testemunho que edifica a Igreja”. 

Depois, falando de encontro, Francisco sublinhou que é “ir em direção um ao outro com o coração aberto e a mão estendida”, pois “cada um de nós precisa do outro” e “mesmo a fraqueza, se vivenciada em conjunto, pode tornar-se uma força que tornará o mundo melhor”. Não pode aceitar-se que a presença dos pobres seja vista “como um aborrecimento” e meramente “tolerada”; e é insulto “dizer que os responsáveis ​​pela pobreza são os pobres”, o que não deixa de ser um pretexto “para não fazer um sério exame de consciência sobre as próprias ações, sobre a injustiça de certas leis e medidas económicas, um exame de consciência sobre a hipocrisia de quem se quer enriquecer excessivamente” à custa dos mais fracos.

Em vez disso, no dizer do Papa, “é hora de  devolver a voz aos pobres, cujos clamores não têm sido ouvidos, “abrir os olhos e ver o estado de  desigualdade  em que muitas famílias vivem”, “arregaçar as mangas para que a dignidade seja restaurada com a criação de  empregos, se escandalizar ante a realidade das  “crianças  que passam fome, reduzidas à escravidão, jogadas na água após naufrágio, vítimas inocentes de todo tipo de violência”, parar a violência contra as  mulheres e de fazer que sejam respeitadas e não tratadas como “moeda de troca”, quebrar o círculo da indiferença e descobrir a beleza do encontro e do diálogo.

E Francisco pretendeu resumir algumas coisas para as tornar suas e deixar que se acomodem no seu coração. Antes de mais, percebeu uma enorme  sensação de esperança, apesar da crueldade da marginalização, sofrimento, doença e solidão, ou da falta de meios necessários. Imperou a gratidão pelas pequenas coisas que permitiram resistir. A seguir, a resistência.

A resistência funda-se na esperança, que dá força para prosseguir apesar de tudo. A este respeito disse o Papa:

Resistir não é uma ação passiva, pelo contrário, requer coragem para percorrer um novo caminho sabendo que dará frutos. Resistir significa encontrar motivos para não desistir diante das dificuldades, sabendo que não as vivemos sozinhos, mas juntos, e que só juntos podemos superá-las.”. 

Sabendo que, “na Porciúncula, São Francisco nos ensina a alegria de ver quem está perto de nós como companheiros de viagem que nos compreendem e nos apoiam, como nós somos por ele ou por ela”, o Pontífice quer que o encontro abra os corações para nos pormos à disposição uns dos outros para fazer de nossa fraqueza uma força para ajudar a continuar no caminho da vida, para transformar nossa pobreza em riquezas a serem compartilhadas e tornar o mundo melhor. E, em dia dos pobres, o Papa salienta que eles estão em movimento e que o Papa os carrega em seu coração, ele que também diz ter a sua pobreza, “de muitas maneiras”. 

***

Na homilia da Missa do V Dia Mundial dos Pobres, Francisco não deixou de tecer um precioso comentário à passagem do Evangelho do XXXIII domingo do Tempo Comum (cf Mc 13,24-25), em cuja primeira parte as imagens nos deixam com apreensão: o sol a escurecer, a lua a deixar de dar claridade, as estrelas a caírem e as forças celestes a serem abaladas. Mas, a seguir, abre-se a janela da esperança: virá o Filho do Homem (cf Mc 13,26); e já se notam os sinais da vinda, como ao deduzirmos a proximidade do verão por a figueira se cobrir de folhas (cf Mc 13,28).

Assim, o Evangelho ajuda-nos a captar, com o olhar de Jesus, dois aspetos da história: as dores de hoje e a esperança de amanhã. Evocam-se as dolorosas contradições em que a realidade humana vive imersa; e há o futuro de salvação que leva à espera pelo encontro com o Senhor que vem para nos libertar de todo o mal.

Vivemos, na verdade, uma história de tribulações, violências, sofrimentos e injustiças, à espera duma libertação que parece nunca mais chegar. E os esmagados por tudo isso são sobretudo os pobres, os elos mais frágeis da cadeia, que nos pedem que não viremos a cara para o outro lado.

Como diz o Papa, “o sol da sua vida é frequentemente obscurecido pela solidão, a lua das suas expectativas apaga-se, as estrelas dos seus sonhos caíram na resignação e acaba abalada a sua própria existência”. E a causa disto é “a pobreza a que muitas vezes se veem constrangidos, vítimas da injustiça e da desigualdade duma sociedade do descarte”.

A esta situação contrapõe-se a esperança de amanhã. Jesus abre-nos à esperança, arrancando-nos da angústia e do medo. E, “ao mesmo tempo que o sol se obscurece e tudo parece cair é precisamente quando Ele Se faz vizinho de nós”. Assim, “a esperança de amanhã floresce na dor de hoje”, pois “a salvação de Deus não é só uma promessa reservada para o Além, mas cresce já agora dentro da nossa história ferida”, abrindo caminho “por entre as opressões e injustiças do mundo”; e o Reino de Deus desabrocha no meio do lamento dos pobres, como as folhas tenras duma árvore, e conduz a história para a meta, o encontro final com o Senhor.

Face a esta realidade, pede-se aos cristãos que “nutram a esperança de amanhã, curando a dor de hoje”, pois “a esperança que nasce do Evangelho não consiste em esperar passivamente por um amanhã em que as coisas hão de correr melhor”, mas em “tornar concreta hoje a promessa de salvação de Deus”. A esperança cristã não é “o otimismo adolescente de quem espera que as coisas mudem”, mas é “construir dia a dia, com gestos concretos, o Reino do amor, da justiça e da fraternidade que Jesus inaugurou”. E Francisco, apoiado noutra passagem evangélica, vinca:

A esperança cristã não foi semeada pelo levita e o sacerdote que passaram ao lado daquele homem ferido pelos ladrões. Foi semeada por um estranho, por um samaritano que parou e realizou a ação (cf Lc 10,30-35). E hoje é como se a Igreja nos dissesse: ‘Para e semeia esperança na pobreza. Aproxima-te dos pobres e semeia esperança’. A esperança daquela pessoa, a tua esperança e a esperança da Igreja.”.

Por isso, é-nos pedido ser, entre as ruínas do mundo, construtores de esperança; luz enquanto o sol escurece; testemunhas de compaixão enquanto alastra a distração; amorosos e atentos, na indiferença generalizada. Na verdade, não poderemos fazer o bem sem passar pela compaixão. Há coisas boas que não atingem a vida cristã, porque não tocam o coração. E o que nos faz tocar o coração é a compaixão: aproximamo-nos, sentimos compaixão e fazemos atos de ternura. “É o estilo de Deus: proximidade, compaixão e ternura”. É o estilo do Bom Samaritano.

Dom Tonino Bello, bispo próximo dos pobres e ele mesmo pobre, dizia que “não podemos limitar-nos a esperar”, mas “devemos organizar a esperança”, pois, se esta “não se traduzir em opções e gestos concretos de atenção, justiça, solidariedade, cuidado da casa comum”, não são aliviados os sofrimentos dos pobres, não se modifica a economia do descarte que obriga os pobres a viverem à margem, não florescem de novo os seus anseios. Portanto, compete-nos, especialmente a nós cristãos, organizar a esperança, “traduzindo-a diariamente em vida concreta nas relações humanas, no compromisso sociopolítico”. Assim, “não se dá uma moeda; organiza-se a esperança”. Esta é “uma dinâmica que hoje nos pede a Igreja” – assegura o Pontífice, que chama a atenção para a simples e sugestiva imagem da esperança que Jesus apresenta, “a imagem das folhas da figueira, que desabrocham sem fazer ruído, assinalando que o verão está próximo” e que aparecem quando o ramo se torna tenro (cf Mc 13,28).

E é da índole tenra do ramo da figueira que Francisco tira mais uma lição da ternura, a qual “faz germinar a esperança no mundo e alivia a dor dos pobres”. E garante que é a compaixão que leva à ternura. Mais diz que depende de nós superar o fechamento, a rigidez interior, a tentação dos ‘restauracionistas’ que querem a Igreja ordenada e rígida, o que “não é do Espírito Santo”. E “depende de nós vencer a tentação de nos ocuparmos apenas com os nossos problemas, para nos enternecermos à vista dos dramas do mundo, compadecendo-nos da dor”.

Também o Papa sustenta que, tal como as folhas tenras da árvore, “somos chamados a absorver a poluição que nos rodeia e transformá-la em bem”: em vez de polemizar, “importa imitar as folhas, que, sem chamar a atenção todos os dias transformam o ar poluído em ar puro”. Jesus, no dizer do Pontífice, quer-nos “conversores de bem”: que, imersos no ar pesado que todos respiram, respondem ao mal com o bem (cf Rm 12,21), partilham pão com os famintos, trabalham pela justiça, elevam os pobres e lhes devolvem a sua dignidade.

Assim, diz o Pontífice, “é bela, é evangélica, é jovem uma Igreja que sai de si mesma e, como Jesus, anuncia a boa nova aos pobres” (cf Lc 4,18), “na juventude de semear esperança”. É uma Igreja profética, que diz aos corações desanimados e aos descartados do mundo: “Coragem, o Senhor está próximo”! E faz-nos levar ao mundo este olhar de esperança, levá-lo com ternura aos pobres, aproximando-nos deles, com compaixão, sem os julgar, “porque lá, junto deles, junto dos pobres, está Jesus; porque lá, neles, está Jesus, que nos espera”.

***

Na alocução prévia à recitação do Angelus, o Santo Padre comentou o mesmo passo do Evangelho contrapondo ao catastrofismo dos luzeiros do firmamento (as penúltimas coisas) o que será estável: as suas palavras (as últimas coisas). É o que devemos meditar ao tomar decisões na vida, se queremos edificar, não na areia, mas em fundamento sólido, a firmeza da Palavra de Jesus, o coração de Deus, que é o centro de tudo. E desse coração brota a caridade, que, dando solidez à vida e a toda a boa obra, “nunca acaba” (1Cor 13,8).

Por isso, Francisco interpela-nos sobre aquilo em que investimos na vida: em dinheiro, sucesso, aparência, bem-estar físico, ou, ao invés, nos frutos da Palavra de Deus. De facto, a Palavra de Deus hoje adverte-nos de que “a cena deste mundo passa” e “só o amor permanecerá”. 

Ora, fundar a vida na Palavra “é mergulhar nas realidades terrenas para torná-las firmes, transformá-las com amor, estampando sobre elas o selo da eternidade, o sinal de Deus”. Por isso, ao tomar uma decisão importante, será de imaginar que estamos diante de Jesus, como no final da vida, diante d’Aquele que é amor, pois decidir olhando para Jesus pode não ser a escolha mais fácil, mas “será a boa, com certeza”. E, no dizer do Papa, Nossa Senhora, que sempre o fez segundo o amor, segundo Deus, ajudará a tomar as decisões importantes da vida.

2021.11.14 – Louro de Carvalho

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