segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Da memória subversiva à ousadia da esperança paciente e jubilosa

 

Não se trata de fazer a apologia da sedição, motim, terrorismo ou golpe de Estado, mas de tirar consequências do dinamismo inerente à economia da Salvação pela revolução sem violência.

Como escreve Frei Bento Domingues, quem se limita a repetir o Novo Testamento (NT) mata-o. Por isso, em vez da repetição mais ou menos floreada, a Bíblia, particularmente o NT, deve ser entendida à luz dos factos hodiernos e estes devem ser analisados à luz da Escritura para aí se divisarem os sinais de Deus nos tempos da atualidade, como preconiza o Vaticano II e como tão bem escreveu o Cardeal Dom José Policarpo em “Sinais dos Tempos(Ed. Sampedro, 1971).

Bento Domingues vê no Papa Francisco a referência para esta aplicação dinâmica da Sagrada Escritura nos tempos de hoje. Ora, falando no início de novo Ano Litúrgico, a 28 de novembro, no Ano C, em cujos domingos habitualmente nos acompanhará o evangelista Lucas, Francisco comentou, com os fiéis, peregrinos e visitantes presentes na Praça de São Pedro para a oração mariana do Angelus, “o Evangelho da liturgia do 1.º domingo do Advento, ou seja, o primeiro domingo de preparação para o Natal” (Lc 21,25-28.34-36), que nos fala da vinda do Senhor no fim dos tempos. Neste contexto, “Jesus anuncia acontecimentos desoladores e tribulações” em modo de literatura apocalíptica, mas convida-nos “a não ter medo”.

Com efeito, todo o Antigo Testamento (AT) estabelece a orientação do Povo escolhido, como sinal do rosto poderoso e misericordioso Deus junto dos demais povos, para a vinda do Messias. E tal orientação, em lugar de ser assumida como memória subversiva que levasse as estruturas sociais e económicas e as pessoas, nomeadamente os decisores políticos e religiosos (tantas vezes coincidentes) a questionarem-se e a ajustarem-se aos critérios de Deus, perderam-se muitas vezes ou na devassidão, na inquestionada confiança nos recursos humanos, na adoração aos deuses pagãos e no culto da religião marcada pelas práticas exteriores, ocas e sem sentido, sendo que os doutores da Lei carregaram as normas da Aliança com centenas de normas que tentavam impor aos membros mais fragilizados do Povo de Deus, do que resultou, em nome da impureza legal, a ostracização de doentes, nomeadamente leprosos, de cegos, de surdos, de surdos-mudos, de coxos, de hidrópicos, de pecadores (nomeadamente cobradores de impostos, meretrizes e adúlteras)

Hoje, corremos o mesmo risco de comodamente entendermos a Bíblia à nossa maneira, usá-la a nosso gosto e, por consequência, instalarmo-nos nas nossas modorras e interesses, ostracizando os que não pensam, não sentem ou não agem como nós ou não são do nosso grupo de eleitos. Nada se reforma, nada se subverte na nossa vida e as comunidades passam em tom repetitivo a agir como sempre se fez. E, se há motivo para agressão e revolta, é quando alguém, movido pelo espírito evangélico transposto para o hoje, parece beliscar as tradições que se apresentam erradamente como pluricentenárias ou os interesses de grupos com poder, prestígio ou riqueza.

Assim, o Messias esperado e que veio ao mundo tem dificuldade em entrar nas nossas vidas, subvertê-las e dar a volta completa às nossas comunidades tornando-as abertas, equitativas, solidárias e humanas. Assim, instala-se nas pessoas e nas comunidades o medo da morte, dos cataclismos, do futuro. Assim, a memória da vinda do Messias não passa dum dado romântico.

Por isso, o Santo Padre quer que esconjuremos da nossa vida o medo, não porque supostamente “tudo vai ficar bem”, mas porque Ele virá. Jesus voltará como prometeu e nos incitou: “Olhai e levantai as cabeças, porque a vossa libertação está próxima(“anakýpsate kaì aparate tàs kephlàs hymôn, dióti eggídzei hê apolýtrôsis hymôn”: Lc 21,28). É palavra de encorajamento: erguermo-nos e erguer a cabeça, pois, nos momentos em que tudo parece acabado, o Senhor vem para nos salvar. De facto, esperá-Lo com alegria mesmo no coração das tribulações, no furacão das crises da vida e dramas da história, é imperativo da fé na Salvação que Ele veio trazer. E Jesus mostra-nos, com uma forte advertência, o caminho para erguermos a cabeça, sem sermos absorvidos pelas dificuldades, sofrimentos e derrotas: “Tende cuidado para não vos pesar o coração (…) ficai acordados o tempo todo orando(“prosékete dè heautoîs mê pote barêthôsin hymîn hai kardíai… argrypneîte dè en pantè khairôi deómenoi”: Lc 21,34.36).

Nas palavras de Cristo, diz o Papa, vemos que a vigilância está ligada à atenção: estar atento, vigilante, sem distração, ficar acordado. Ora, estar vigilante significa “não deixar que o coração se torne preguiçoso e a vida espiritual se amoleça na mediocridade”. E há muitos cristãos adormecidos ou anestesiados pelo mundanismo espiritual: rezam como papagaios, sem ardor na oração, sem entusiasmo espiritual e pela missão, sem paixão pelo Evangelho. São cristãos que olham para dentro, incapazes de olhar o horizonte – o que leva a empurrar a barriga para a frente puxando as coisas por inércia, caindo na apatia, indiferente a tudo, exceto ao que lhes convém. Assim, a vida é tíbia e triste, sem esperança, sem felicidade.

Devemos, pois, como recomenda o Pontífice, estar vigilantes para não nos arrastarmos na rotina dos dias, para não sermos oprimidos pelas angústias da vida (cf Lc 21,34) e não nos pesarem os problemas da vida. E o trecho evangélico em referência constituirá belo e oportuno ensejo para nos interrogarmos sobre o que nos pesa no coração, nos sobrecarrega o espírito, nos faz sentar na cadeira da preguiça, enredados nos vícios, que esmagam e impedem de levantar a cabeça e que nos tornam indiferentes às cargas que impendem sobre os ombros dos irmãos.

Tais interrogações são boas, porque nos “ajudam a manter o coração longe da preguiça”. E há que advertir que a preguiça “é um grande inimigo da vida espiritual, da vida cristã”, pois faz-nos precipitar ou resvalar na tristeza, tira o prazer de viver e o desejo de fazer o bem. É um espírito negativo e maligno que lança a alma em torpor, roubando-lhe a alegria. Por isso, diz o livro dos Provérbios “Guarda o teu coração, porque dele flui a vida(Pr 4,23), pois guardar o coração significa estar vigilante. Concomitantemente com a vigilância temos o ingrediente essencial da oração . Na verdade, Jesus diz: “Ficai sempre acordados orando(Lc 21,36). A oração é que mantém acesa a lâmpada do coração. Assim, ao sentimos que o entusiasmo esfria, devemos rezar, porque a oração reacende o entusiasmo e leva-nos de volta a Deus, ao centro das coisas, ao sentido da existência. Por isso, até nos dias mais movimentados, não podemos negligenciar a oração, nem que seja proferindo invocações curtas. E é própria do Advento a invocação “Vem, Senhor Jesus(“Érkhou Kýrie Iêsoû”: Ap 22,20), importando que, tendo historicamente vindo há mais de 2000 anos, a sua memória e ação presentificantes questionem e remexam as nossas vidas pessoais e comunitárias, atirando para fora de nós os momentos e estruturas de injustiça, repressão, espezinhamento e opressão. A Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo não podem constituir peças, ainda que importantes, de romance histórico, mas têm de causar subversão nas pessoas, na Igreja e na Sociedade. De facto, o maior inimigo do cristianismo é o cristianismo descafeinado, que gera a barata rotina e a abominável tibieza (cf Ap 3,17).  

É belo este tempo de preparação para o Natal litúrgico e torna-se salutar se o coração de cada crente se abrir ao desígnio de Deus e nele abranger todos os irmãos e irmãs, privilegiando os mais frágeis. E o clamor “Vem, Senhor Jesus” torna-se compromisso para com Deus e com o próximo, sendo que a Senhora do Advento, “que esperava o Senhor com coração vigilante”, nos acompanha nesta caminhada ao encontro do Senhor que vem e quer fazer comunidades.

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Este passo do Evangelho proclamado na inauguração do Ano Litúrgico leva-nos aos últimos dias da vida terrena de Jesus, após a entrada triunfal em Jerusalém. Ele completa a catequese dos discípulos, anuncia-lhes tempos difíceis de perseguição e martírio e avisa-os de que será sitiada e destruída a cidade de Jerusalém (cf Lc 21,20-24), sendo neste contexto que surge o trecho em referência. E o vetor em torno do qual se estrutura este passo é a referência à vinda do Filho do Homem “com grande poder e glória” (“metà dynámeôs kaì dóxês pollês”: Lc 21,27) e no convite a cobrar ânimo e a levantar a cabeça porque “a libertação está próxima” (Lc 21,28). A palavra “libertação” (“apolytrôsis” – “resgate de cativo”) é palavra típica da teologia paulina (1Cor 1,30; cf Rm 3,24; 8,23; Cl 1,14…), a definir o fruto da ação redentora de Jesus em prol dos homens.

O projeto de libertação, concretizado nas palavras e gestos de Jesus, é apresentado como o resgate da humanidade prisioneira do egoísmo, pecado e morte. Trata-se, portanto, da libertação de tudo o que escraviza os homens e os impede de viver na dignidade de filhos de Deus.

A mensagem é clara: espera-nos um caminho de sofrimento e perseguição (cf Lc 21,12-19); no entanto, não podemos deixar-nos afundar no desespero porque Jesus vem. E, com a sua vinda gloriosa (de ontem, de hoje, de amanhã), cessará a escravidão que nos impede de conhecer a vida em plenitude e nascerá um mundo novo, de alegria e felicidade plenas.

Os sinais apocalípticos apresentados no Evangelho não são um quadro do fim do mundo, mas são imagens proféticas para falar do “Dia do Senhor”, o dia em que Ele intervirá na história para libertar definitivamente o Povo da escravidão, inaugurando uma era de vida, fecundidade e paz sem fim (cf Is 13,10; 34,4). O escopo não é amedrontar, mas abrir os corações à esperança, pois, quando Jesus vier com a sua autoridade soberana, cairá o mundo velho do egoísmo e escravidão e surgirá o dia novo da salvação/libertação sem fim. Por isso, é oportuno o convite à vigilância (cf Lc 21,34-36), já que é necessário manter atenção constante para que as preocupações terrenas e as cadeias escravizantes não nos impeçam de reconhecer e acolher o Senhor que vem.

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A passagem de Jeremias, que serviu de 1.ª leitura (Jr 33,14-16) contribui para esta subversão da memória da economia da Salvação. É o 10.º ano do reinado de Sedecias (587 a.C.). O exército de Nabucodonosor, da Babilónia, cerca Jerusalém e Jeremias está detido no cárcere do palácio real, acusado de derrotismo e traição (cf Jr 32,1). Parece a derrocada das esperanças e seguranças do Povo. Entretanto, o profeta proclama, em nome de Javé, a chegada dum tempo novo, em que Deus “pensa as feridas” do seu Povo e as cura e proporcionará a Judá “abundância de paz e segurança” (Jr 33,6). Porque o futuro imediato é tido como sem saída, a mensagem é tão surpreendente que o profeta é acusado de profetizar a inutilidade de resistir aos exércitos caldeus, a destruição de Jerusalém e o exílio de Sedecias (cf Jr 32,3-5). Não obstante, Jeremias anuncia a fidelidade de Javé às promessas davídicas (cf 2Sm 7): Deus fará surgir um descendente de David (“rebento justo”), que assegurará a paz e a salvação a todo o Povo e a todos os povos. Será um tempo de fecundidade e vida em abundância, sugerido pela palavra “zemah(“rebento”), nome com que o profeta Zacarias designa o “Messias” (cf Zc 3,8; 6,12).

A mostrar que o tempo do descendente de David é subversivo contra a ordem instalada, os profetas usam vocábulos ligados à área da justiça, que desempenham papel fundamental no anúncio profético. O descendente de David será justo e a sua tarefa consistirá em assegurar a justiça e o direito (“mishpat” e “zedaqa”), ou seja, funcionarão retamente os tribunais enquanto instituições responsáveis pela administração da justiça, que proporcionarão uma correta ordem social, fundamento da paz e prosperidade. E, enquanto Sedecias não garantiu a justiça nem assegurou a paz, tornando iminente a catástrofe, o rei, da descendência de David, anunciado pelo profeta, será o “ungido” de Deus, pelo que terá por missão restaurar a justiça e transmitir a abundância de vida e de salvação ao Povo de Deus. Por isso, chamar-se-á “o Senhor é a nossa justiça” e, por ele, Deus garante ao Povo um futuro fecundo, de justiça, bem-estar, salvação.

Face às promessas de Deus, o profeta elimina a nostalgia do passado, o medo do presente e instaura o regime da esperança. Fica para trás o saudosismo e abre-se a era da esperança.

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Em sede de 2.ª leitura (1Tes 3,12 – 4,2), vemos a comunidade cristã de Tessalónica fundada por Paulo, Silvano e Timóteo na segunda viagem missionária do Apóstolo, pelo ano 50 (cf At 17,1ss). No pouco tempo que ali pregou, Paulo desenvolveu intensa atividade missionária que originou numerosa e entusiasta comunidade, na sua maioria formada por pagãos convertidos (cf 1Ts 1,9-10). Porém, a obra paulina foi brutalmente interrompida pela reação agressiva da colónia judaica e teve o Apóstolo de fugir, deixando uma comunidade em perigo, pouco catequizada e meio desarmada na perseguição e provação. Preocupado, Paulo envia-lhe, depois, Timóteo a saber notícias e a encorajá-la na fé. E Timóteo, de regresso, encontra Paulo em Corinto e comunica-lhe notícias animadoras: continuam bem vivos e até se aprofundaram com as provações a fé, a esperança e o amor dos tessalonicenses (cf 1Ts 1,3; 3,6-8), os quais podem ser apontados como modelos aos cristãos das regiões vizinhas (cf 1Ts 1,7-8).

Todavia, apesar de tudo o que Deus edificara no coração daqueles crentes, a caminhada cristã dos tessalonicenses não estava concluída. Há que “progredir sempre” (“hína perisseúête mâllon”: 1Ts 4,1), sobretudo no amor para com todos (“i agápêi eis allêlous”: 1Ts 3,12), pois só nesta atitude de não conformação será possível esperar a “vinda de nosso Senhor Jesus com todos os seus santos(“en têi parousíai toû Kyríou hêmôn Iêssoû metà pántôn tôn agíôn autoû”: 1Ts 3,13).

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Em suma, agarrar o essencial da mensagem profético-evangélica impõe a mudança radical das mentalidades, dos corações, das atitudes e comportamentos nas pessoas e comunidades, erradicando do mundo de hoje todas as estruturas e mecanismos de pecado pessoal e social e transformando os agentes de pecado em apóstolos do bem. Ora isto é subversivo contra todos os interesses instalados, ou seja, contra o olhar de cada um para o seu umbigo, usando e descartando pessoas, objetos e estruturas, mas proclamando romanticamente a adesão ao Evangelho e/ou às causas humanitárias. Porém, este dinamismo subversivo não se constrói através das armas nem com uma espécie de ditadura do Evangelho ou dos cristãos. Esse equívoco deu maus resultados na História e criou muitas vítimas.

O dinamismo da vinda de Cristo no hoje, fundado na vinda histórica de Cristo no passado e na promessa da sua última vinda, consegue-se no trabalho, na vigilância orante, na esperança paciente e jubilosa, na postura da alegria irradiante e solidária. Isto mudará o mundo e criará as benfazejas estruturas de felicidade, mesmo que implique o martírio de muitos.   

2021.11.28 – Louro de Carvalho

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