A 6 de novembro, o Cardeal Dom António Augusto dos Santos Marto, Bispo de
Leiria-Fátima, em entrevista à Ecclesia
por ocasião do 5.º aniversário da ordenação presbiteral (ocorre
neste dia 7 de novembro), destaca “memórias
do percurso formativo, académico e episcopal”, bem como da “forma como foi
considerando o perfil do padre”.
Oriundo duma serrana aldeia trasmontana “predominantemente católica”, diz
manter “as raízes telúricas e as recordações de infância num tempo muito
diferente do atual”, em que o ritmo da vida era “marcado pelo campanário” e “as
grandes celebrações eram as religiosas”. Morando perto da casa paroquial e
sendo assíduo às celebrações, o pároco ensinou-lhe latim para dar as respostas
à Missa e, pela proximidade com a família Marto, encantava pelo modo de relação
com as pessoas e “pela beleza” que imprimia à liturgia, de sorte que o Toninho
tinha “sempre a noção de que era Deus que estava presente” e foi “elaborando
esta ideia de ser padre como ele”.
E foi que o levou ao seminário juntamente “com o encanto que tinha pela
figura de Jesus, que se aprendia na catequese”, e “pelo mistério de Deus”.
***
Revelou a vontade de frequentar o seminário após o término do 4.º ano da
escolaridade, o que surpreendeu o pai, que apresentou reservas dizendo “que era
muito novo, que era melhor estudar fora no liceu e depois decidiria, que
gostaria muito de que fosse para os Pupilos do Exército”. Já a mãe sonhava com a
carreira de advocacia para o filho. Porém, António porfiou que, se não o
deixassem ir para o seminário, “não iria estudar para lado nenhum”. E o pai recebeu
conselho de amigos no sentido de o deixar ir para o seminário, vindo ele a
decidir em idade mais madura.
Assim, entrou no seminário aos 10 anos, acompanhado pelo pai, com os
apetrechos exigidos. Não havia visitas frequentes, por não ser fácil a mobilidade
como nos tempos atuais. Recebia uma visita por trimestre e ia a férias no
Natal, Páscoa e verão; “gostava de ser seminarista”; e as pessoas da aldeia “davam
grande atenção ao menino seminarista”.
Admite que as reservas de
ida para o seminário, por parte do pai e familiares, tivessem na origem o facto
de dois irmãos terem falecido muito cedo de acidente, sendo isso muito
doloroso, pelo que o pai só lho contou mais tarde, mas sem o relacionar com as
ditas reservas.
Foi crescendo e conhecendo outros padres no seminário que se tinham formado
e ordenado “e exerciam a função de prefeitos com muita jovialidade”. Refere
que, apesar da disciplina férrea, “no seminário vivia-se boa camaradagem”. E conta
que passou o tempo de seminarista em Vila Real no tempo de seminário menor e
alguns anos do maior, vindo a terminar no Porto, em 1968.
Tomou, aos 18 anos, “a decisão de ser padre, uma decisão madura, com os
sobressaltos que uma vocação conhece”. Releva o papel do diretor espiritual Padre
Norberto Martins, um jesuíta muito bom, que o “ajudou a conhecer
verdadeiramente a Jesus nos Evangelhos” e o apoiou “no discernimento
vocacional”.
Recorda com saudade o Bispo Dom António Cardoso Cunha, formado em História,
homem que estivera em todas as sessões do Concílio, com uma visão clarividente.
O Concílio terminara em 1965; e ele, em 1968, decidiu pela insustentabilidade dum
seminário maior na diocese, quer do ponto de vista económico, quer do lado formativo,
pois eram poucos os alunos, muitos mais os professores. Por isso, os alunos de
Teologia iriam para outro seminário. Chamou os professores e prefeitos e
pôs-lhes o problema, dizendo que aqueles alunos iriam estudar para fora, mas
deu a escolher Lamego ou Porto. E a escolha recaiu sobre o Porto. O então Bispo
de Vila Real respondeu que o coração lhe pendia para Lamego, por ser natural de
Lamego, mas a razão pendeu para o Porto.
No Porto, para onde foi com “grande ânsia de abrir horizontes”, encontrou
um Seminário onde “educavam para a liberdade e para a responsabilidade”,
ajudando “à maturidade humana, da fé e da vocação pastoral”. Evoca “um reitor
excelente (o cónego Albino), que morreu
cedo, um diretor espiritual muito aberto que vinha dos movimentos da Ação
Católica”, que os “pôs em contacto com os Movimentos da Ação Católica” e, como
era “professor de Apostolado dos Leigos e de Doutrina Social da Igreja”, abriu
os alunos “para o diálogo com o mundo”, pondo-os “a estudar a Constituição
sobre a Igreja no mundo contemporâneo”, então “novidade entusiasmante”. Daí
resultou a ideia de estagiar em ambiente operário (era
conhecida a experiência dos padres operários) e foi conhecer o mundo operário e testemunhar ali o Evangelho e a Doutrina
Social da Igreja.
Teve uma vivência concreta, a de quem trabalha, tinha de se levantar de
manhã cedo, chegar à fábrica, vestir o fato de operário e trabalhar diante duma
máquina com outros (eram três e inicialmente ninguém sabia que eram
seminaristas),
experimentando a dificuldade de encontrar trabalho. A este respeito, conta:
“Na altura
batemos a várias portas de várias fábricas e a primeira pergunta era se já
tínhamos feito o serviço militar, para não interromper o percurso de trabalho.
Nós não queríamos dizer que éramos seminaristas e dizíamos que não e
fechavam-nos logo as portas. Na última tivemos de dizer quem éramos e o que
pretendíamos e então abriram-nos a porta com toda a hospitalidade.”.
Era “a paixão pelo diálogo entre o Evangelho, a fé, a Igreja e mundo
moderno, os problemas concreto” e tudo na onda de renovação do Concílio, tudo
cheio de entusiasmo.
Depois, estava combinado com o Bispo o estágio diaconal na paróquia da
Régua. Porém, à última hora, o Bispo mandou-o estudar para Roma. E os padres do
seminário “disseram que aceitasse porque era uma missão que a Igreja me
confiava e que a Igreja precisava de gente preparada”. De facto, o grande Bispo
de Vila Real “mandou estudar muitos padres em várias universidades, em Paris,
em Toulouse, em Lovaina, na Alemanha, em Roma e, quando terminou o seu governo
da diocese, confidenciou a António Marto:
“Viste que
foram estudar muitos padres… Não foram mais porque não quiseram, sabes porquê?
Porque vêm aí tempos difíceis e a Igreja precisa de ter gente muito bem
preparada para isso.”.
E António Marto comenta:
“Porventura não
imaginava os anos de hoje, mas todo um processo de mudança. Estamos a assistir
a uma mudança de época, mas a seguir ao Concílio foi uma grande transformação
cultural, cheia de mudanças rápidas. A própria constituição sobre a Igreja fala
disso, das mudanças vertiginosas a que o mundo assiste e às quais a Igreja deve
responder.”.
Da ordenação sacerdotal por Dom António
Ribeiro em Roma, a 7 de
novembro de 1971, diz:
“Estava combinado entre mim e o bispo a ordenação ser
em setembro, em Vila Real. Mas o bispo esqueceu-se de pôr na agenda e nesse mês
foi de férias para a Alemanha e ninguém sabia onde estava. Só veio depois, em
outubro, quando eu tinha de ir para Roma. Ele disse: ‘Ordenas-te em Roma’. Foi
na ocasião em que havia o sínodo dos bispos, estava lá o Cardeal António
Ribeiro e aproveitei essa ocasião: Fui ordenado na capela do colégio português
(e vim a encontrar aqui na Diocese de Leiria-Fátima alguns padres que já eram
padres e estavam a estudar em Roma e me impuseram as mãos no dia da ordenação
sacerdotal).”.
O novel sacerdote tinha o sonho de “ir para paróquia e trabalhar com a
juventude”. Entretanto, Deus trocou-lhe as voltas (digo eu). O Bispo pediu uma especialização em Teologia e disse
que iria para o Porto como educador do Seminário Maior do Porto, acompanhando
os seminaristas de Vila Real, e professor. E, quando veio de férias, numa
celebração familiar, o pai rogou-lhe que se lembrasse sempre de que vinha “de
uma família humilde”, que não lhe subisse “o poder à cabeça” e que tratasse “sempre
bem os pobres e os humildes” – rogo que nunca esqueceu.
No atinente ao perfil do
padre, o agora cardeal aponta o “homem de
relações”: “relação com Deus”, pois as pessoas gostam do padre muito próximo e “de
saber que é um homem de fé e que é diferente”; e “relações próximas com todos,
de acolhimento, atenção a cada um, de escuta, de partilha das alegrias e
sofrimentos”. Com efeito, se o padre sabe muito, tem grande formação em Teologia,
Filosofia, Sociologia, explica muito bem as coisas, faz grandes sermões, mas se
não tem a proximidade com o povo, “não serve”, porque lhe falta “o coração, a
humanidade”. E “o padre tem de ser humano”. Isto vem na linha da recomendação
paterna (o pai foi
educador e formador de um pastor) e depois
veio a opção preferencial pelos pobres, o que Francisco diz: “uma Igreja em saída às periferias”. Não
se usava a expressão nem o pai a sabia, mas António Marto concretiza-a indo “às
periferias”, aos “que estão sós, abandonados e necessitados”.
***
Do doutoramento em Teologia e do subsequente múnus de professor, assinala
que “a formação em Teologia é uma coisa muito bela, porque ajuda a aprofundar
realidades profundas e a conhecer o coração e alma humana”, em contraste com a
Teologia abstrata que estudara e que “parecia um esqueleto à qual faltava a
carne”, mas uma Teologia convertida, “com atenção, como dizia o Papa Paulo VI
quando terminou o Concílio, à pastoral do bom samaritano”.
Admite que se deixou enlevar por um certo racionalismo em nome da “compreensão
racional da fé”, mas, quando voltou, nunca deixou “o exercício pastoral do
ministério” (professor e formador) e procurou
estar sempre ligado a paróquia: as duas primeiras eram pobres, a de Miragaia e
a da Sé; as outras eram mais urbanas e ricas, a do Marquês e a de Matosinhos. Aprendeu
a ser pastor.
Recorda que, na paróquia da Sé, havia a Missa das crianças e, a primeira
vez que o pároco lhe pediu para presidir, ajudou-o por ele ter confessado não
saber falar a crianças, o que aprendeu. Fazia reuniões com o pároco para saber
como começar e estabelecer diálogo com elas.
Questionado se usava as
expressões, “os pequenitos e as pequenitas”, que usa em Fátima, diz que
foi acrescentando isso, que “na altura
não usava” e que resultou da experiência. E conta:
“Eu via as
crianças nas celebrações com os adultos e as nossas celebrações são praticamente
para adultos. Pensava comigo: O que será que as crianças levam daqui? Devem
sair daqui desiludidas… Então, passei a fazer essa saudação, às vezes uma frase
só, para elas levarem consigo algo e saberem que alguém as considera e isso é
importante, é uma maneira de estabelecer laço com a Igreja e com Jesus.”.
Sobreleva a vida académica, pois “gostava de ser professor, conviver com os
alunos”, não se fechando no gabinete. De facto, “tinha relação fraterna com os
alunos”, embora fosse exigente e tivesse essa fama, mas “era fraterno e
procurava ajudá-los”. E diz que a vida académica está sempre a puxar pelas
pessoas e desafia-las a “estudar coisas novas”.
Refere que, ao ser chamado ao episcopado, pediu 24 horas para pensar, mas
os amigos que consultou, fizeram-lhe ver que aquilo que a Igreja lhe pedia
estava na linha do ‘sim’ que dera no sacerdócio. Contudo, apesar de três
tentativas, não conseguiu despedir-se dos alunos.
***
O seu percurso episcopal
reparte-se por Braga, como Bispo auxiliar, e por Viseu e Leiria-Fátima, como
Bispo diocesano, vindo, pelo contacto com os sacerdotes e pelas necessidades a
acudir, a alterar-se o perfil de padre, sobretudo em virtude dos desafios
inéditos que a Igreja encontra, pois, como diz o Papa, “não se trata só de uma época de mudanças, mas de
mudança de época, ao nível cultural, económico-financeiro, social e
tecnológico: tudo isto está a dar origem a um novo mundo que está a nascer e
cujos contornos ainda não estão definidos”.
Assegura que o atual Papa veio dum mundo muito sensível a aspetos que
esquecemos, porque estamos na abundância e não imaginamos, por exemplo, o
que é a pobreza. O nosso é “um mundo consumista e não imagina que são precisos
limites para não pôr em causa a dignidade dos pobres, o reconhecimento da
dignidade de todos, a sobrevivência da casa comum”. E Francisco “tem o dom do
discernimento, não só ao nível pessoal, mas também comunitário e global”.
Vivemos “de forma inédita a globalização” e “a inovação tecnológica, com todos
os meios novos, que implementam uma nova cultura”, embora com grandes riscos.
Com efeito, espalha-se a mentalidade da “confiança numa espécie de omnipotência
nos meios tecnológicos digitais que dessem solução a tudo”. E, como o Evangelho
diz “nem só de pão vive o homem”, hoje
diremos “nem só de algoritmos vive o
homem”. De facto, “os algoritmos são bons” para encontrar soluções tecnológicas
e financeiras, mas “a dimensão humana é insubstituível”.
Admite terem de se mudar as
parábolas de Jesus trazendo os algoritmos e a tecnologia para o ser padre,
pois, como ele, muitos outros bispos não têm “a
linguagem da juventude de hoje”: os jovens “são nativos digitais, têm esta
cultura, modo de ver o mundo e de se relacionar, a questão dos valores”. E isso
cria um clima de incertezas e inseguranças em que a Igreja vive”. E, a este respeito,
põe em evidência as grandes chaves de compreensão do mundo pós-moderno por
parte do Papa: é o mundo novo que está a nascer, é de desigualdades, divisões,
crispações e da terceira guerra mundial aos pedaços; é o mundo de feridos e
muitas feridas; e isto vale para a Igreja e para a imagem do padre: a Igreja é
como “hospital de campanha, onde a primeira função é acolher os feridos e
ajudar a cuidar as feridas”.
Assim, Igreja e padres não
podem “ir com condenações imediatas ou
juízos imediatos”, como impõe “a lógica do poder, do autoritarismo”. Hoje é
preciso, como fez Jesus, cultivar o acolhimento e compaixão, misericórdia. Depois,
há o aspeto da casa comum, a ecologia integral, sendo que “os países que mais
poluem o mundo e põem a causa a sobrevivência da humanidade são aqueles que
menos se querem empenhar na diminuição do carbono”. E há a considerar a fraternidade.
Vivemos, no mundo ocidental, o relativismo de valores que leva ao individualismo
exacerbado. Cada um é criador de si mesmo, sem os outros. É a cultura da
indiferença. Ora, como diz o cardeal, não basta “o slogan liberdade e igualdade”:
é, antes, necessária “a fraternidade que estende e lança pontes entre todos e
daí a necessidade do diálogo inter-religioso e o diálogo ecuménico”, pois as religiões
são irmãs “para fazer povos irmãos”.
Por outro lado, como indica António Marto, a figura do padre não tem o
prestígio social que teve no regime de cristandade. Já o jovem teólogo Ratzinger,
em 1969, “previa que Igreja fosse feita de minorias, mas minorias criativas”.
Depois, quem exerce o ministério sente o clima de secularização que avança: “não
tem o apoio cultural que tinha e tem medo do momento presente” – o que postula “inovação
de métodos e linguagens para chegar às pessoas; e, às vezes, não temos receitas
prontas”. E os riscos são o imobilismo (“sempre se fez assim”) e o tradicionalismo (“a nostalgia do passado”). Depois, isto pode levar à desistência e ao poder. Portanto,
urge “a reconfiguração das comunidades cristãs para que o padre não seja o
catalisador de tudo”, ficando sem “tempo para descansar, atender pessoalmente
as pessoas”. A pari, “as comunidades
cristãs têm de se sensibilizar para dar apoio efetivo ao seu padre”.
O Bispo de Leiria-Fátima reconhece que nos falta “um laicado maduro e
responsável”, quando “agora o Papa abre um caminho novo, o modelo sinodal da
Igreja, que exige participação e corresponsabilidade de todos, segundo a
diversidade da função e carisma que cada um exerce, todos participam, o que
exige maior diversidade de ministérios também” – a descentralização, onde o
centro é Cristo, e uma partilha de ministérios. E assegura que “o ministério do
padre não é açambarcamento dos ministérios dos outros, mas o ministério da
síntese, a comunhão entre todos, em que todos os ministérios e serviços
confluem para o bem da comunidade”.
Alertado para o facto de o sínodo não resolver o problema, o Cardeal Marto
diz que “vai levar tempo”, pois “isto está em gérmen no Concilio Vaticano II” e
já lá vão mais de 60 anos. Porém, como o Papa está a implementar isto, Marto
crê que se inicia “um processo que há de germinar, crescer e dar frutos”.
***
Por fim, o entrevistador pergunta ao purpurado “como
espera continuar a ser sacerdote na tal resposta que procurava e na resposta à
cultura de mudança que estamos a assistir”. E António Marto salienta a paixão “por
compreender a cultura de hoje”. Na verdade, quando a um grupo de
crismandos compara o mundo de hoje com aquele em que nasceu e cresceu, sem
televisão, rádio (ouviu pela primeira vez rádio aos 13 anos e televisão
aos 15 e era a preto e branco), computador,
telemóvel, iPad (para a tese de doutoramento, perdeu imenso tempo a
fazer páginas na máquina de escrever), o grupo
fica estupefacto, como se o Bispo viesse dum planeta longínquo.
Confessa não ter medo da morte (foi professor de escatologia, da
esperança cristã), esperando
ir para o céu com todo o gosto, mas também gosta de andar no mundo, pois não
tem ressentimento em relação ao mundo, deste tempo que é nosso, sem lamentações
do que passou. E, não sabendo quantos anos mais viverá, pensa fazer “o que
puder ao serviço da Igreja e do Mundo”.
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Em suma, um homem que sente que Deus lhe trocou as voltas por vezes, mas
que nunca tentou trocar as voltas a Deus. Pensou, aconselhou-se, mas sempre
obedeceu: é um exemplo de profundidade e de simplicidade.
2021.11.07 – Louro de Carvalho
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