Aquando
da abertura da 16.ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, o
Arcebispo de Braga julgou de interesse partilhar algumas ideias de pastor sem pré-intenções,
avaliação do caminho percorrido na Arquidiocese ou configuração de processo
pastoral para o futuro.
Quis
na linha da escuta do que “o Espírito quer dizer à Igreja neste momento
histórico”, elencar, em carta aos católicos, de 22 de outubro (Solenidade
de São Martinho de Dume, padroeiro principal da Arquidiocese), um conjunto de ideias que “poderão
acompanhar a reflexão a fazer a diversos níveis” sobre a caminhada sinodal
acabada de iniciar.
Considerando
que o Sínodo será a aventura da “partilha refletida, capaz de encontrar a novidade
que ainda poderá faltar”, Dom Jorge Ortiga apresenta-se como “um que caminha”
em Braga “com quantos se interrogam sobre o futuro da Igreja”. E diz que, “se algumas
destas ideias gerarem intuições que ajudem a compreender o ser e o fazer da
Igreja como Sinodalidade vivida na Comunhão, Participação e Missão”, dará
“graças a Deus” e retribuirá a todos quantos o ajudaram “a entender melhor a
Igreja do Concílio Vaticano II”.
Lembra
que Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) escrevera a um pequeno familiar
por ocasião do seu batismo (maio de 1944), em plena II Guerra Mundial,
culpando-se a si e à sua Igreja “por não ter sido capaz de ter evitado aquela
catástrofe” pela evangelização e deixando alguns princípios para que, no
futuro, o destinatário da sua carta pudesse construir uma Igreja e uma
sociedade diferentes. Entre esses princípios, sobressai o princípio escatológico,
segundo o qual, mais que projetar por ação humana, importa saber esperar e
discernir a vontade de Deus. E refere que Cícero elegeu a “sabedoria do tempo”
como uma das virtudes da velhice face à juventude.
E,
não fazendo futurologia, narra a Igreja que os inúmeros católicos da
Arquidiocese, têm procurado construir na pluralidade das vidas, contextos e
locais, o que herdam e procuram implementar e o caminho que tentam deixar em
aberto para a Igreja de amanhã. E não vê outra finalidade no Sínodo a não ser
tornar-se uma graça para o futuro da Igreja.
Entretanto,
o Arcebispo Primaz não resiste a evocar “dois momentos cruciais e marcantes na
história recente da Igreja Universal e Diocesana, para explicar melhor a Igreja
que hoje somos”: o Concílio Vaticano II e o Sínodo Bracarense.
Diz
que somos “filhos do Concílio Vaticano II” (1962-1965), por herdarmos a mudança que operou
na Igreja, ensinando-nos que, antes da diferença que distingue os membros do
Povo de Deus, está o elemento que a todos une, identifica e “responsabiliza a
transformar a sociedade civil”, pelo que não convém ignorar nem dominar a
realidade, mas urge transformá-la (vd GS 1). Assim, para o Arcebispo de
Braga, “a comunhão, uma nova compreensão do ser humano e um novo método em
olhar a ação pastoral são alguns dos grandes pilares da novidade conciliar”.
O
demasiado apego à reforma litúrgica terá ofuscado a novidade dos outros aspetos.
E a assimilação do Concílio foi díspar: uns abraçaram-no com coragem; outros persistiam
nos esquemas tradicionais. Em todo o caso, as estruturas foram-se adaptando
lentamente e iniciou-se o processo de renovação. “Para bem do Povo de Deus, a
renovação estava em movimento” e era notório que “o Espírito ia conduzindo a
Igreja com muitas alegrias e demasiadas insatisfações”, pois a Igreja, mais que
estrutura, é “a vivência do amor de Deus a solidificar relações fraternas
geradoras de Cristo na comunidade” para que continuar a “agir em ordem a um
mundo unido”, pelo que “a centralidade estava na Palavra, tornada palavra de
Vida”, a Igreja abria-se ao mundo num diálogo ecuménico, inter-religioso e
intercultural” e o Concílio “apresentava-se sempre como fonte de uma renovação
eclesial que permanece inadiável”.
Depois,
Dom Jorge Ortiga observa que somos “pais do Sínodo Bracarense” (1994-1997), pela obrigação de concretizar
este projeto pastoral gerado para a Igreja em Braga, na linha do ideal do
Vaticano II, ficando vincado “o empenho laical que este Sínodo implicou”. E diz
que “a lenta, mas profunda, escuta dos leigos (…) permitiu pensar uma Igreja” a
partir “dos intelectuais em pastoral” e “da vivência concreta dos fiéis”, dado
que “as assembleias sinodais significaram uma recolha de uma reflexão
comunitária que, sistematizada em documentos, continua a ser referência”. E o
metropolita releva “a paixão colocada no diálogo, no confronto de ideias, na
alegria de estar a corresponder a quanto o Espírito pretendia para a Igreja”,
para vincar que “a experiência de comunhão e participação merece ser recordada
por quem nela esteve envolvido e copiada pelos que vieram a seguir”, pelo que é
necessário “revisitar os documentos conclusivos” e ter em conta “o trabalho
sinodal realizado”, pois “o Espírito Santo interpelou” e “o projeto e a
dinâmica continuam a desafiar”.
***
A
seguir, o Arcebispo Primaz, na linha da “Igreja que desejamos”, enuncia 5
tendências que se procuraram cultivar na Igreja bracarense, sob cinco chaves de
leitura (pessoal,
local, estilo, método e finalidade),
“esperando que ela no futuro seja mais próxima do ideal do Reino de Deus.
-
Em chave de leitura a nível das pessoas, requer-se uma “Igreja menos clerical e mais
laical”. Não se podem dispensar os presbíteros em nome dos leigos, nem
em nome dos presbíteros ofuscar o papel dos leigos, que até são em maior
número, pois a Igreja “potencia os dons e carismas destas duas formas
sacerdotais: sacerdócio comum e ministerial”, sendo que no futuro a Igreja terá
párocos que não estão tanto ao “serviço da comunidade”, mas ao “serviço na
comunidade” e do padre “prestador de serviços” passará ao “padre que vive na e
com a comunidade, sendo sinal visível da presença de Deus que habita no meio do
seu povo”. Por sua vez, os leigos partilharão a mesma responsabilidade pela
comunidade, “porque a comunidade não é uma propriedade do pároco”, sendo este apenas
“o seu primeiro responsável”; “o conselho pastoral paroquial (e
interparoquial) será
um autêntico primeiro exercício de sinodalidade”; surgirão outros ministérios
que expressarão uma maior participação laical nos três campos da ação paroquial
(liturgia,
catequese e caridade),
bem como uma valorização maior dos movimentos laicais e da Igreja doméstica (a
família como célula da Igreja e da sociedade); e a mulher assumirá “um papel mais central e
decisivo na vida da Igreja, à imagem de tantas mulheres que a Sagrada Escritura
nos relata”, na esteira de Maria (Lc 1,26-38), “a bendita entre as mulheres
pela qual Deus decide encarnar na nossa realidade”. E Dom Jorge anota a
particularidade mariológica do rito bracarense como sinal da antiga devoção a
Maria e da consciência do papel da mulher na Igreja, bem como o reconhecimento
de Maria como a primeira discípula patente na grande multiplicidade dos
santuários espalhados pela Arquidiocese. A Igreja é povo
(“laós”) de Deus!
-
Em chave de leitura local, o Primaz quer uma “Igreja menos territorial e mais
comunidade”. Com efeito, foi-se construindo “uma Igreja não concebida
como uma sociedade fechada, mas como uma autêntica comunidade”, pelo que se
concretizarão cada vez mais “novas formas de organizar a Igreja local,
compreendendo a paróquia além da sua dimensão territorial, tal como as Unidades
Paroquiais e um Colégio de Paróquias com as novas paróquias em função do seu
exercício pastoral (escolas, hospitais, emigrantes...), havendo “uma maior aproximação
da diocese às paróquias e das paróquias à diocese, num trabalho com a diocese e
não à margem da diocese”. Também, na ótica do prelado, “se acentuarão os
recentes desafios à missão da Igreja: a ecologia (casa comum), a implementação de uma
sociedade digital e o novo panorama da realidade geopolítica” – ante os quais “à
Igreja só lhe compete ser fiel à sua origem, tendo por base o modelo da
comunidade primitiva” (vd At 2,42-27). De “uma Igreja possuidora da
verdade com direitos para a impor a partir da autoridade” há que passar à opção
pelas pessoas e à responsabilidade de “crescer num relacionamento afetivo que
une em todos os momentos por causa do Evangelho acolhido e de Cristo que quis
ficar presente na comunidade” (vd Mt 18,20) e que “une as diversidades e
exige uma complementaridade expressa na partilha do que se é e se tem”. E a
Igreja regressará às fontes na fidelidade às raízes na alegria de ser de todos
os tempos.
-
Em chave de leitura a nível do estilo, queremos uma “Igreja que menos pastoral e mais
espiritual”. De facto, a ação eclesial nas últimas décadas focou-se na
prática, a ponto de se desligar da teoria e até da espiritualidade. Por isso, urge
recuperar a espiritualidade de base, de onde tudo parte e aonde tudo chega – não
a “espiritualidade individualista cimentada no esforço e cumprimento de
prescrições”, mas a espiritualidade do “nós”. Importa retomar a centralidade da
Eucaristia e uma nova vivência deste sacramento, “recuperando a espiritualidade
eucarística nas suas diversas formas da piedade popular”, pois “só levando
Jesus bem enraizado dentro de nós O poderemos comunicar aos outros”. É
ilustrativa desta necessidade a narrativa dos discípulos de Emaús, em que pela
gestualidade da fração do pão e na escuta das Escrituras eles reconheceram
Jesus, e daí partiram a anunciá-Lo aos outros (cf Lc 24,13-15). Isto mostra que, não sendo
caminhantes solitários, “caminhamos sempre com Alguém que sabe explicar o que
verdadeiramente acontece e dá paixão para que os corações ardam de zelo pela
causa do Reino”.
-
Em chave de leitura metodológica, queremos uma “Igreja menos burocrática e mais
caritativa”. A Igreja não é gabinete de prestação de serviços. A
burocracia, embora necessária, é “elemento secundário”. Por isso, há que passar
da “Igreja dos papéis” (centrada nos certificados) à “Igreja dos fiéis” (centrada
nas pessoas), em que
“a caridade, nas suas múltiplas formas”, seja “o maior código de barras no meio
da trama humana” e fulgure “a relação entre fé e obras, em que ambas se
implicam mutuamente” (Mt 25,31-46; Tg 2,14-26), de modo que, pela ação, o
discurso teológico “ganhe espaço e autoridade no meio de tantos discursos
sociais”, pois “a fé orienta o sentido das obras e as obras atestam a
autenticidade da fé”. A passagem de Mateus há de ser “exame de consciência
pessoal e comunitária”, pois ela configura o significado e o verdadeiro perfil
da ação social. Depois, é de recordar a passagem do Bom Samaritano (Lc
10,29-37), em que o
amor do Samaritano ao próximo o leva ao “gesto que rompe com o conformismo e
legalismo social, porque a caridade não tem limites”. Por isso, deve a caridade
iluminar a burocracia e não a burocracia bloquear a caridade. Assim, queremos “corresponder
com gestos de solidariedade e fraternidade e acompanhar com solicitude a todos
quantos encontramos nos caminhos perante uma Igreja em saída, que não teme o
que poderá encontrar”. Somos todos irmãos!
-
Em chave de leitura a nível da finalidade, queremos uma “Igreja menos focada na imposição
e mais na convicção”. Será este o maior desafio da Igreja de Braga:
promover “uma nova forma de cristianismo, em que devemos ser cristãos, não por
tradição, mas por convicção”, sabendo dar aos outros as razões da nossa
esperança (cf 1Pe 3,15).
Na verdade, como sustenta o Arcebispo, “sem encontro pessoal e motivado com
Cristo, corre-se o risco de uma musealização de crenças e rotinas tradicionais
a reconhecer como património imaterial”. Assim, “fomos tomando consciência que
a Igreja deverá saber interpretar um novo princípio da evangelização: mais do
que impor a nossa fé à sociedade, queremos contagiar a sociedade com a nossa fé”.
Por isso, urge “dialogar e incorporar os novos destinatários da evangelização:
os não crentes e os crentes de outras profissões religiosas, exigindo-nos uma
grande capacidade ecuménica, inter-religiosa e cultural”. Neste âmbito, os
inúmeros santuários “poderão ser um ponto de encontro”, quer pela oferta
religiosa e cultural que proporcionam, quer e sobretudo por oferecerem ao homem
pós-moderno o primeiro património imaterial da humanidade: o silêncio” (1Rs
19,12).
E
Dom Jorge Ortiga aproveita o ensejo para fazer a apologia do silêncio que
edifica:
“Um silêncio eloquente que não é mutismo que
parte de uma solidão habitada por tudo quanto é humano. Recordemo-nos daquelas
duas passagens evangélicas em que a fé e a conversão não advêm pela imposição,
mas pelo diálogo e o encontro: a samaritana (Jo 4,42) e Zaqueu, o cobrador de
impostos (Lc 19,5). Jesus não regateou o tempo. Não teve pressas. Não tinha
discursos pré-concebidos. Mostrou alegria em estar e compreendeu as situações
sem as condenar. O amor passou para além das palavras usadas.”.
Sintetizando,
o Arcebispo-Primaz aponta “uma Igreja que parte das pessoas dando mais espaço
aos leigos nas pegadas de Maria (Lc 1,26-38), que se estrutura a partir dum novo
local, a comunidade (Mt 18,18; At 2,42-47), que adota um estilo espiritual (Lc
24,13-15) que assume
um método de opção pela caridade (Mt 25, 31-46; Tg 2,14-26), que se deixa interpelar pela
finalidade de maior convicção (Jo 4,42; Lc 19,5).” E crê que “o Espírito sugerirá
o que as palavras não dizem”.
***
Por
fim, Dom Jorge retoma os verbos “arder” e “iluminar”, que nos deixou em herança
São Bartolomeu dos Mártires, e propõe mais um verbo, “unidar”, que deriva dum
nome substantivo que nos é muito caro: unidade. Efetivamente, unidade não é só
“unir”, isto é, juntar elementos diversos, nem “unificar”, ou seja, pegar em
elementos diferentes para se construir uma única forma, mas é o “aproximar de
elementos diversos entre si e a procura de um elemento comum que os una sem
renunciar à sua identidade particular. Assim, “unidar” é mais que “união ou
conformidade”: é “congregar as diferenças para se construir a comunhão”, pois
“a comunhão procede da unidade, e não o contrário”. Na verdade, como frisa o
Arcebispo, “as últimas palavras de Jesus, expressas em forma de oração e antes
de entrar no Jardim das Oliveiras para Se entregar livremente pela humanidade,
propõem o caminho da unidade para que o mundo acredite” (cf
Jo 17,1-23). Não
havia mais nada a dizer, porque “bastava o Calvário para mostrar que a Sua
mensagem não consistia em palavras”. De facto, “Deus amou primeiro” e é bom
saborear o seu amor “prolongando a Sua presença na história dos homens,
vivendo, antes de tudo, o amor mútuo e recíproco” e procurando muitas ideias,
projetos e ações, mas fazendo-o sinodalmente: em escuta, saída, unidade,
comunhão e amor. E Santa Maria de Braga, a Senhora da Alegria, nos auxiliará no
tempo que enfrentamos.
***
Da
proliferação de reflexões como esta – simples e contextualizada – poderá
resultar um sério dinamismo de verdadeira caminhada sinodal por parte duma
Igreja atenta ao Espírito e ao povo, uma Igreja sacramento de salvação.
2021.11.12 – Louro de Carvalho
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