sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Do Concílio que herdamos à Igreja que desejamos ser e ter

 

Aquando da abertura da 16.ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, o Arcebispo de Braga julgou de interesse partilhar algumas ideias de pastor sem pré-intenções, avaliação do caminho percorrido na Arquidiocese ou configuração de processo pastoral para o futuro.

Quis na linha da escuta do que “o Espírito quer dizer à Igreja neste momento histórico”, elencar, em carta aos católicos, de 22 de outubro (Solenidade de São Martinho de Dume, padroeiro principal da Arquidiocese), um conjunto de ideias que “poderão acompanhar a reflexão a fazer a diversos níveis” sobre a caminhada sinodal acabada de iniciar.

Considerando que o Sínodo será a aventura da “partilha refletida, capaz de encontrar a novidade que ainda poderá faltar”, Dom Jorge Ortiga apresenta-se como “um que caminha” em Braga “com quantos se interrogam sobre o futuro da Igreja”. E diz que, “se algumas destas ideias gerarem intuições que ajudem a compreender o ser e o fazer da Igreja como Sinodalidade vivida na Comunhão, Participação e Missão”, dará “graças a Deus” e retribuirá a todos quantos o ajudaram “a entender melhor a Igreja do Concílio Vaticano II”.

Lembra que Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) escrevera a um pequeno familiar por ocasião do seu batismo (maio de 1944), em plena II Guerra Mundial, culpando-se a si e à sua Igreja por não ter sido capaz de ter evitado aquela catástrofe” pela evangelização e deixando alguns princípios para que, no futuro, o destinatário da sua carta pudesse construir uma Igreja e uma sociedade diferentes. Entre esses princípios, sobressai o princípio escatológico, segundo o qual, mais que projetar por ação humana, importa saber esperar e discernir a vontade de Deus. E refere que Cícero elegeu a “sabedoria do tempo” como uma das virtudes da velhice face à juventude.

E, não fazendo futurologia, narra a Igreja que os inúmeros católicos da Arquidiocese, têm procurado construir na pluralidade das vidas, contextos e locais, o que herdam e procuram implementar e o caminho que tentam deixar em aberto para a Igreja de amanhã. E não vê outra finalidade no Sínodo a não ser tornar-se uma graça para o futuro da Igreja.

Entretanto, o Arcebispo Primaz não resiste a evocar “dois momentos cruciais e marcantes na história recente da Igreja Universal e Diocesana, para explicar melhor a Igreja que hoje somos”: o Concílio Vaticano II e o Sínodo Bracarense.

Diz que somos “filhos do Concílio Vaticano II” (1962-1965), por herdarmos a mudança que operou na Igreja, ensinando-nos que, antes da diferença que distingue os membros do Povo de Deus, está o elemento que a todos une, identifica e “responsabiliza a transformar a sociedade civil”, pelo que não convém ignorar nem dominar a realidade, mas urge transformá-la (vd GS 1). Assim, para o Arcebispo de Braga, “a comunhão, uma nova compreensão do ser humano e um novo método em olhar a ação pastoral são alguns dos grandes pilares da novidade conciliar”.

O demasiado apego à reforma litúrgica terá ofuscado a novidade dos outros aspetos. E a assimilação do Concílio foi díspar: uns abraçaram-no com coragem; outros persistiam nos esquemas tradicionais. Em todo o caso, as estruturas foram-se adaptando lentamente e iniciou-se o processo de renovação. “Para bem do Povo de Deus, a renovação estava em movimento” e era notório que “o Espírito ia conduzindo a Igreja com muitas alegrias e demasiadas insatisfações”, pois a Igreja, mais que estrutura, é “a vivência do amor de Deus a solidificar relações fraternas geradoras de Cristo na comunidade” para que continuar a “agir em ordem a um mundo unido”, pelo que “a centralidade estava na Palavra, tornada palavra de Vida”, a Igreja abria-se ao mundo num diálogo ecuménico, inter-religioso e intercultural” e o Concílio “apresentava-se sempre como fonte de uma renovação eclesial que permanece inadiável”.

Depois, Dom Jorge Ortiga observa que somos “pais do Sínodo Bracarense” (1994-1997), pela obrigação de concretizar este projeto pastoral gerado para a Igreja em Braga, na linha do ideal do Vaticano II, ficando vincado “o empenho laical que este Sínodo implicou”. E diz que “a lenta, mas profunda, escuta dos leigos (…) permitiu pensar uma Igreja” a partir “dos intelectuais em pastoral” e “da vivência concreta dos fiéis”, dado que “as assembleias sinodais significaram uma recolha de uma reflexão comunitária que, sistematizada em documentos, continua a ser referência”. E o metropolita releva “a paixão colocada no diálogo, no confronto de ideias, na alegria de estar a corresponder a quanto o Espírito pretendia para a Igreja”, para vincar que “a experiência de comunhão e participação merece ser recordada por quem nela esteve envolvido e copiada pelos que vieram a seguir”, pelo que é necessário “revisitar os documentos conclusivos” e ter em conta “o trabalho sinodal realizado”, pois “o Espírito Santo interpelou” e “o projeto e a dinâmica continuam a desafiar”.

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A seguir, o Arcebispo Primaz, na linha da “Igreja que desejamos”, enuncia 5 tendências que se procuraram cultivar na Igreja bracarense, sob cinco chaves de leitura (pessoal, local, estilo, método e finalidade), “esperando que ela no futuro seja mais próxima do ideal do Reino de Deus.

- Em chave de leitura a nível das pessoas, requer-se uma “Igreja menos clerical e mais laical”. Não se podem dispensar os presbíteros em nome dos leigos, nem em nome dos presbíteros ofuscar o papel dos leigos, que até são em maior número, pois a Igreja “potencia os dons e carismas destas duas formas sacerdotais: sacerdócio comum e ministerial”, sendo que no futuro a Igreja terá párocos que não estão tanto ao “serviço da comunidade”, mas ao “serviço na comunidade” e do padre “prestador de serviços” passará ao “padre que vive na e com a comunidade, sendo sinal visível da presença de Deus que habita no meio do seu povo”. Por sua vez, os leigos partilharão a mesma responsabilidade pela comunidade, “porque a comunidade não é uma propriedade do pároco”, sendo este apenas “o seu primeiro responsável”; “o conselho pastoral paroquial (e interparoquial) será um autêntico primeiro exercício de sinodalidade”; surgirão outros ministérios que expressarão uma maior participação laical nos três campos da ação paroquial (liturgia, catequese e caridade), bem como uma valorização maior dos movimentos laicais e da Igreja doméstica (a família como célula da Igreja e da sociedade); e a mulher assumirá “um papel mais central e decisivo na vida da Igreja, à imagem de tantas mulheres que a Sagrada Escritura nos relata”, na esteira de Maria (Lc 1,26-38), “a bendita entre as mulheres pela qual Deus decide encarnar na nossa realidade”. E Dom Jorge anota a particularidade mariológica do rito bracarense como sinal da antiga devoção a Maria e da consciência do papel da mulher na Igreja, bem como o reconhecimento de Maria como a primeira discípula patente na grande multiplicidade dos santuários espalhados pela Arquidiocese. A Igreja é povo (“laós”) de Deus!

- Em chave de leitura local, o Primaz quer uma “Igreja menos territorial e mais comunidade”. Com efeito, foi-se construindo “uma Igreja não concebida como uma sociedade fechada, mas como uma autêntica comunidade”, pelo que se concretizarão cada vez mais “novas formas de organizar a Igreja local, compreendendo a paróquia além da sua dimensão territorial, tal como as Unidades Paroquiais e um Colégio de Paróquias com as novas paróquias em função do seu exercício pastoral (escolas, hospitais, emigrantes...), havendo “uma maior aproximação da diocese às paróquias e das paróquias à diocese, num trabalho com a diocese e não à margem da diocese”. Também, na ótica do prelado, “se acentuarão os recentes desafios à missão da Igreja: a ecologia (casa comum), a implementação de uma sociedade digital e o novo panorama da realidade geopolítica” – ante os quais “à Igreja só lhe compete ser fiel à sua origem, tendo por base o modelo da comunidade primitiva” (vd At 2,42-27). De “uma Igreja possuidora da verdade com direitos para a impor a partir da autoridade” há que passar à opção pelas pessoas e à responsabilidade de “crescer num relacionamento afetivo que une em todos os momentos por causa do Evangelho acolhido e de Cristo que quis ficar presente na comunidade” (vd Mt 18,20) e que “une as diversidades e exige uma complementaridade expressa na partilha do que se é e se tem”. E a Igreja regressará às fontes na fidelidade às raízes na alegria de ser de todos os tempos.

- Em chave de leitura a nível do estilo, queremos uma “Igreja que menos pastoral e mais espiritual”. De facto, a ação eclesial nas últimas décadas focou-se na prática, a ponto de se desligar da teoria e até da espiritualidade. Por isso, urge recuperar a espiritualidade de base, de onde tudo parte e aonde tudo chega – não a “espiritualidade individualista cimentada no esforço e cumprimento de prescrições”, mas a espiritualidade do “nós”. Importa retomar a centralidade da Eucaristia e uma nova vivência deste sacramento, “recuperando a espiritualidade eucarística nas suas diversas formas da piedade popular”, pois “só levando Jesus bem enraizado dentro de nós O poderemos comunicar aos outros”. É ilustrativa desta necessidade a narrativa dos discípulos de Emaús, em que pela gestualidade da fração do pão e na escuta das Escrituras eles reconheceram Jesus, e daí partiram a anunciá-Lo aos outros (cf Lc 24,13-15). Isto mostra que, não sendo caminhantes solitários, “caminhamos sempre com Alguém que sabe explicar o que verdadeiramente acontece e dá paixão para que os corações ardam de zelo pela causa do Reino”.

- Em chave de leitura metodológica, queremos uma “Igreja menos burocrática e mais caritativa”. A Igreja não é gabinete de prestação de serviços. A burocracia, embora necessária, é “elemento secundário”. Por isso, há que passar da “Igreja dos papéis” (centrada nos certificados) à “Igreja dos fiéis” (centrada nas pessoas), em que “a caridade, nas suas múltiplas formas”, seja “o maior código de barras no meio da trama humana” e fulgure “a relação entre fé e obras, em que ambas se implicam mutuamente” (Mt 25,31-46; Tg 2,14-26), de modo que, pela ação, o discurso teológico “ganhe espaço e autoridade no meio de tantos discursos sociais”, pois “a fé orienta o sentido das obras e as obras atestam a autenticidade da fé”. A passagem de Mateus há de ser “exame de consciência pessoal e comunitária”, pois ela configura o significado e o verdadeiro perfil da ação social. Depois, é de recordar a passagem do Bom Samaritano (Lc 10,29-37), em que o amor do Samaritano ao próximo o leva ao “gesto que rompe com o conformismo e legalismo social, porque a caridade não tem limites”. Por isso, deve a caridade iluminar a burocracia e não a burocracia bloquear a caridade. Assim, queremos “corresponder com gestos de solidariedade e fraternidade e acompanhar com solicitude a todos quantos encontramos nos caminhos perante uma Igreja em saída, que não teme o que poderá encontrar”. Somos todos irmãos!

- Em chave de leitura a nível da finalidade, queremos uma “Igreja menos focada na imposição e mais na convicção”. Será este o maior desafio da Igreja de Braga: promover “uma nova forma de cristianismo, em que devemos ser cristãos, não por tradição, mas por convicção”, sabendo dar aos outros as razões da nossa esperança (cf 1Pe 3,15). Na verdade, como sustenta o Arcebispo, “sem encontro pessoal e motivado com Cristo, corre-se o risco de uma musealização de crenças e rotinas tradicionais a reconhecer como património imaterial”. Assim, “fomos tomando consciência que a Igreja deverá saber interpretar um novo princípio da evangelização: mais do que impor a nossa fé à sociedade, queremos contagiar a sociedade com a nossa fé”. Por isso, urge “dialogar e incorporar os novos destinatários da evangelização: os não crentes e os crentes de outras profissões religiosas, exigindo-nos uma grande capacidade ecuménica, inter-religiosa e cultural”. Neste âmbito, os inúmeros santuários “poderão ser um ponto de encontro”, quer pela oferta religiosa e cultural que proporcionam, quer e sobretudo por oferecerem ao homem pós-moderno o primeiro património imaterial da humanidade: o silêncio” (1Rs 19,12).

E Dom Jorge Ortiga aproveita o ensejo para fazer a apologia do silêncio que edifica:

Um silêncio eloquente que não é mutismo que parte de uma solidão habitada por tudo quanto é humano. Recordemo-nos daquelas duas passagens evangélicas em que a fé e a conversão não advêm pela imposição, mas pelo diálogo e o encontro: a samaritana (Jo 4,42) e Zaqueu, o cobrador de impostos (Lc 19,5). Jesus não regateou o tempo. Não teve pressas. Não tinha discursos pré-concebidos. Mostrou alegria em estar e compreendeu as situações sem as condenar. O amor passou para além das palavras usadas.”.

Sintetizando, o Arcebispo-Primaz aponta “uma Igreja que parte das pessoas dando mais espaço aos leigos nas pegadas de Maria (Lc 1,26-38), que se estrutura a partir dum novo local, a comunidade (Mt 18,18; At 2,42-47), que adota um estilo espiritual (Lc 24,13-15) que assume um método de opção pela caridade (Mt 25, 31-46; Tg 2,14-26), que se deixa interpelar pela finalidade de maior convicção (Jo 4,42; Lc 19,5).” E crê que “o Espírito sugerirá o que as palavras não dizem”.

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Por fim, Dom Jorge retoma os verbos “arder” e “iluminar”, que nos deixou em herança São Bartolomeu dos Mártires, e propõe mais um verbo, “unidar”, que deriva dum nome substantivo que nos é muito caro: unidade. Efetivamente, unidade não é só “unir”, isto é, juntar elementos diversos, nem “unificar”, ou seja, pegar em elementos diferentes para se construir uma única forma, mas é o “aproximar de elementos diversos entre si e a procura de um elemento comum que os una sem renunciar à sua identidade particular. Assim, “unidar” é mais que “união ou conformidade”: é “congregar as diferenças para se construir a comunhão”, pois “a comunhão procede da unidade, e não o contrário”. Na verdade, como frisa o Arcebispo, “as últimas palavras de Jesus, expressas em forma de oração e antes de entrar no Jardim das Oliveiras para Se entregar livremente pela humanidade, propõem o caminho da unidade para que o mundo acredite” (cf Jo 17,1-23). Não havia mais nada a dizer, porque “bastava o Calvário para mostrar que a Sua mensagem não consistia em palavras”. De facto, “Deus amou primeiro” e é bom saborear o seu amor “prolongando a Sua presença na história dos homens, vivendo, antes de tudo, o amor mútuo e recíproco” e procurando muitas ideias, projetos e ações, mas fazendo-o sinodalmente: em escuta, saída, unidade, comunhão e amor. E Santa Maria de Braga, a Senhora da Alegria, nos auxiliará no tempo que enfrentamos.

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Da proliferação de reflexões como esta – simples e contextualizada – poderá resultar um sério dinamismo de verdadeira caminhada sinodal por parte duma Igreja atenta ao Espírito e ao povo, uma Igreja sacramento de salvação.

2021.11.12 – Louro de Carvalho

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