A
sensação de que os resultados das eleições legislativas de 30 de janeiro
poderão determinar um quadro parlamentar pouco diferente do atual – digo atual
porque a Assembleia da República (AR) ainda não está dissolvida –
levou alguns constitucionalistas a refletir sobre os preceitos constitucionais
que enquadram a formação do Governo e a sua continuidade ou precariedade.
Assim,
a 8 de novembro, Reis Novais, em artigo publicado no Expresso online sob o título “Resolver o problema estrutural de governabilidade”,
aponta que o país “tem um problema
sério de governabilidade” e afirma que “dos 22 governos constitucionais” apenas
6 se mantiveram levando a respetiva legislatura até ao fim (4 anos). Na verdade, só a 1.ª legislatura teve 6 governos,
pois, apesar de ter havido uma dissolução da AR, as normas constitucionais
transitórias estipulavam que as subsequentes eleições não interromperiam a
legislatura.
E, como
afirma Reis Novais, foram governos de legislatura completa só três no século XX
e três neste século XXI, sendo três de esquerda e três de direita e tendo a esquerda
e a direita igual tempo de governo desde 1976, o que revela, “na sua perfeita
simetria, um quadro sintomático de instabilidade governativa”. Estamos
efetivamente à beira de 23 governos formados na vigência da Constituição em 45
anos de democracia formal e verifica-se que o problema não afeta apenas os
governos de esquerda por via da dificuldade de acordos de coligação ou de
incidência parlamentar nessa área. Também governos à direita experimentaram
dificuldades de percurso e alguns caíram. A governação da AD liderada por
Francisco Pinto Balsemão, após a morte de Sá carneiro, viu-se interrompida pela
apresentação do pedido de demissão do Primeiro-Ministro e a subsequente
dissolução da AR, tendo as eleições subsequentes dado ensejo à formação dum
governo do bloco central (PS+PSD); algo
semelhante sucedeu ao Governo da AD liderado por Santana Lopes, na sequência da
saída de Durão Barroso para a presidência da Comissão Europeia, que foi
atingido pela dissolução da AR. Isto, sem falar da queda do governo minoritário
de Cavaco Silva fustigado pela moção de censura apresentada pelo PRD e
secundada, entre outros, pelo PS.
Atualmente,
a par das dificuldades usuais na esquerda partidária, o risco de
ingovernabilidade vislumbra-se na direita pela crescente emergência duma formação
dificilmente coligável com a direita democrática. Tal perspetiva propicia a
reflexão sobre a forma de “encarar e resolver o problema estrutural”.
Sustenta Paulo Otero que não se trata de “algo que se possa resolver com
engenharia eleitoral”, visto que, na sua ótica, uma “qualquer alteração
constitucionalmente admissível ao sistema eleitoral resultaria em incremento da
proporcionalidade da representação”, o que reforçaria a dificuldade da formação
de governos com apoio parlamentar maioritário”. E o constitucionalista diz que
a solução é simples, mas requer “visão de Estado” e “passa por revisão
constitucional”. Segundo ele, consiste em “conferir coerência integral ao atual
sistema de relacionamento entre Governo e a AR, não tocando os poderes do
Presidente da República (PR).
Tendo em conta que a Constituição vislumbrou “a probabilidade de ocorrência
de governos sem apoio parlamentar maioritário”, pelo que a sua arquitetura
constitucional facilitou a formação do governo e a sua passagem na AR, a
solução passa por ampliar tal arquitetura. Na verdade, a Constituição permite
que o governo passe na AR sem que tenha de ver aprovado o seu programa, que nem
precisa de ir a votação, bastando que, durante a sua discussão parlamentar, não
seja aprovada uma moção de rejeição pela maioria absoluta dos deputados em
efetividade de funções (vd art.º 192.º/4). Assim, um governo minoritário é usualmente viável, tendo havido apenas
dois casos de rejeição do programa do governo: V e XX Governos
Constitucionais.
Porém, segundo Otero, a racionalidade deste mecanismo fica frustrada
quando, depois, se deixa um governo minoritário abandonado a eventual convergência
de maioria parlamentar negativa. Por isso, em seu entender, havia que
prosseguir na “lógica subjacente ao regime de investidura parlamentar dos
governos, pelo menos nas situações críticas de maior importância para a sua
subsistência”. E a solução constitucional que propõe desde 2007, concretiza tal
orientação.
Em termos minimalistas, era de estender à discussão de leis financeiras
importantes, como o orçamento, o mecanismo previsto para a discussão do
programa do governo, isto é, se na discussão do orçamento não fosse aprovada
pela predita maioria parlamentar uma moção de censura ao governo, “o orçamento
seria considerado adotado, mesmo sem votação expressa”. Se bem que por censura
parlamentar o governo cairia (art.º 195.º/1/al. f)) e, com ele, o orçamento, mas, pelo menos, “identificar-se-iam os
responsáveis pela crise de forma transparente”, o que seria “poderoso dissuasor
de tentações e decisões irresponsáveis” como as que se têm visto. E é um
mecanismo vigente em França que, tal como nós, tem sistema
semipresidencialista.
O mesmo mecanismo “poderia ser pontualmente aplicado a outras leis
relativamente às quais o governo suscitasse o problema da confiança, embora
instituindo limites ao recurso a essa possibilidade, “por exemplo, uma vez por
sessão legislativa”, como sucede em França.
Além disso, poderia ser estipulado que “toda a aprovação de uma moção de
censura exigiria igualmente a aprovação do novo Primeiro-Ministro que deveria
substituir o que estava em funções”. Assim, porque a maioria da AR “só
derrubava um governo se acordasse numa alternativa de substituição”, a crise “ou
nem se chegava a abrir ou, uma vez aberta, estaria imediatamente solucionada”.
Paulo Otero descarta o argumento de que tal diminuiria o papel do Presidente da
República (PR), uma vez que a este continuava
reservada “a possibilidade de optar pela dissolução do parlamento”, que levaria
a prazo (com início
antecipado de nova legislatura) à demissão
do Governo (art.º 195.º/1/al. a)), devolvendo
a palavra ao eleitorado. É, diz, “o instituto da chamada moção de censura
construtiva que existe em diferentes países de sistema parlamentar, como
Espanha ou Alemanha, ou de sistema semipresidencial, como a Polónia ou a
Eslovénia”.
Qualquer destas medidas, considerada isoladamente, para o constitucionalista,
“já diminuiria significativamente os riscos de ingovernabilidade”. Porém, a adoção
conjunta das três resolveria consistentemente o problema, sem afetar a
responsabilidade dos governos perante a AR e sem afetar os poderes do PR. Ou
seja, governo minoritário cujo programa tivesse passado na AR disporia das “condições
mínimas para o executar” e, a não ser em caso de dissolução da AR ou de
demissão do executivo por censura parlamentar, seriam julgados no termo da
legislatura.
***
Por sua vez, Vital Moreira publicou no blog “Causa Nossa”, a 9 de novembro, um texto
subordinado ao título “Reformas em prol
da estabilidade governamental”, em que faz um diagnóstico da situação
governativa similar ao de Paulo Otero e também apresenta soluções.
Começa
por augurar que o partido que vencer as próximas eleições não obterá, por si só,
maioria parlamentar por si só. E verifica que, “até agora, um partido sozinho
só conseguiu maioria parlamentar em 3 das 15 eleições parlamentares” (1987,
1991 e 2005). Depois,
suspeita que, uma vez que “a extrema-esquerda não aceita os compromissos
necessários para assegurar finanças públicas e economia sãs (como
mostrou a sua rejeição do orçamento e a interrupção da legislatura) e sendo igualmente claro o
afastamento de uma ‘grande coligação’ com o PSD”, estaremos sujeitos a “novo
governo minoritário do PS”. Mais refere que o mesmo se dirá de eventual
vitória do PSD com maioria relativa, pois também este partido apresenta
dificuldade em fazer alianças para um governo maioritário, quando o CDS parece
estar em vias de desaparecimento, a IL ainda não cresceu o suficiente e “o
Chega não é aliado recomendável”.
Nestes termos, o constitucionalista considera más as perspetivas de
estabilidade governamental, importante para as finanças públicas e para o
desempenho da economia, bem como iminente o risco de “um novo período de
governos de curta duração e de escassa capacidade governativa. Com efeito, governos minoritários sem consistentes
acordos de apoio parlamentar são “incapazes de realizar o seu programa” quando
“forçados a cumprir leis aprovadas contra a sua vontade, de acordo com a agenda
política das oposições”, correm “o risco de verem rejeitado o principal
instrumento de governação (o
orçamento) ou vê-lo
estropeado pelas oposições reunidas e estão mais sujeitos à aprovação de moções
de censura.
Neste sentido,
Vital Moreira seleciona, como primeira reforma, o estabelecimento de um
mecanismo de “tornar menos rara a possibilidade
de maiorias absolutas, baixando o seu limiar eleitoral para cerca
de 40%” (em vez dos
atuais 44-45%), pela
divisão dos atuais megacírculos eleitorais (Lisboa, Braga, Porto, Aveiro, Setúbal), de modo que “nenhum círculo pudesse
eleger mais do que uma dezena de deputados”. Depois, um círculo eleitoral
nacional de um décimo dos deputados (23) permitiria
dar utilidade aos votos nos partidos menores em qualquer parte do território (o que não sucede) e assegurar-lhes um mínimo de
representatividade parlamentar.
De facto, os
dois maiores círculos eleitorais elegem muito mais de um terço dos deputados e,
no maior (Lisboa), basta menos de 2% para eleger um
deputado, mesmo sem análoga votação a nível nacional. E a tendência de aumento
dos deputados nesses dois círculos, por via da deslocação populacional, leva à
crescente fragmentação parlamentar.
E, como isto não basta para garantir governos de maioria, importaria também, segundo
o constitucionalista “conferir aos governos minoritários melhores condições de
governabilidade e durabilidade do que as de que dispõem hoje”, reduzindo a
possibilidade de sujeição a eventuais alianças oportunistas das oposições, as
ditas coligações negativas.
Par tal fim, o
constitucionalista opina que seria de pensar as seguintes soluções: a moção de
censura “construtiva”, não sendo admitidas à discussão moções que não apresentassem
como alternativa novo governo e respetivo programa, mas apenas destinadas ao
derrube do governo, mediante aliança das oposições sem nada em comum; a
necessidade de assentimento governamental para aprovação das propostas de
alteração parlamentar do orçamento que aumentassem a despesa pública prevista
na proposta de lei, pela extensão da atual norma-travão; e a admissão de moção
de confiança governamental sobre a votação do orçamento, cuja aprovação
implicaria a ratificação do orçamento e cuja rejeição azaria a demissão do
Governo, dando-se, deste modo, ao orçamento a importância fulcral que tem na
política governamental.
***
Todas estas
medidas carecem de maioria qualificada de 2/3 dos deputados presentes, desde que
igual ou superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções,
e, salvo a primeira aventada por
Moreira, implicam revisão constitucional. Porém, os dois maiores
partidos (PS e PSD), que ainda somam mais de 2/3 na AR (o que não é fácil nos demais países
da UE), para já, não
manifestam entendimento para revisão da Constituição, nem para revisão audaz da
lei eleitoral; e a tendência para a fragmentação parlamentar, conquanto
enriquecedora da representação do país, pode tender para a agudização da
ingovernabilidade por dificultar a possibilidade de tais reformas, se
adiadas. Por isso, como diz Vital Moreira, “era conveniente que os dois
principais partidos refletissem sobre o assunto em prol da estabilidade e da
responsabilidade política no País, cada vez mais um ‘bem público’ de elevado
valor”.
Na verdade,
os partidos políticos em Portugal, ao invés do que se passa noutros países da
Europa, têm dificuldade em negociar soluções, presos que estão aos parâmetros
da sua autoafirmação política, que nem sempre são de cariz ideológico; e os
saudosistas do passado, secundados por jornalistas e comentadores, ajudam a
descrer das soluções políticas em democracia. Em tudo veem pretexto para esconjurar
o prestígio do país, a crença nas instituições e o investimento dos portugueses
e dos estrangeiros no país.
Resta a
cruzada pelas maiorias absolutas. Mas também estas podem ser perigosas e precárias.
No quadro da periculosidade,
já vão longe os tempos das maiorias que albergaram as privatizações em barda, a
princípio em embrião, mas depois em ousadia, tal como se tornou perigosíssima a
inicialmente acarinhada maioria socrática.
E, no atinente
à precariedade, quem não se lembra da tentação de Mário Soares de dissolver a
AR após a enunciação do tabu cavaquista de largos meses sobre a sua permanência
ou não à frente do partido? Só obstou a isso a sua relutância em dissolver a AR,
ato político que tanto criticou em Eanes e a magreza do apoio dos seus correligionários
mais próximos. Entretanto, Jorge Sampaio deu um piparote constitucional na AD
de Santa Lopes, uma maioria parlamentar e governativa de dois partidos; e a AD
de Passos Coelho foi apertada por uma crise nunca vista, a ponto de Cavaco Silva se
ter disponibilizado a compensar, com a dissolução da AR a prazo e marcação de eleições
antecipadas, a negociação dum acordo de que surgisse um compromisso de salvação
nacional.
Por isso, é
de solicitar ao povo que vote e aos partidos que, na hora exata, coloquem o
interesse nacional acima de tudo e ousem negociar com o mínimo de sabedoria, mas
sempre pelo tempo da legislatura (4 anos) e não dois orçamentos como alvitram altas figuras da pantalha nacional. E
não vale a pena estudar a passagem da duração da legislatura de 4 para 5 anos
ou mais, se temos até dificuldade tão grande em cumprir a legislatura de 4 anos…
Aliás, já
tivemos períodos em que a correlação de forças esteve mais equilibrada, por
exemplo, com personalidades da oposição política à frente de instituições nevrálgicas
como o BdP, a CGD e alguns institutos públicos, bem como muitos dos serviços
locais da administração pública, quando não era tão evidente o culto do cartão
de partido nas áreas do centrão.
Há sempre
solução, haja vontade política!
2021.11.10 – Louro de Carvalho
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