quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Portugal tem um problema estrutural de governabilidade

 

A sensação de que os resultados das eleições legislativas de 30 de janeiro poderão determinar um quadro parlamentar pouco diferente do atual – digo atual porque a Assembleia da República (AR) ainda não está dissolvida – levou alguns constitucionalistas a refletir sobre os preceitos constitucionais que enquadram a formação do Governo e a sua continuidade ou precariedade.

Assim, a 8 de novembro, Reis Novais, em artigo publicado no Expresso online sob o título “Resolver o problema estrutural de governabilidade”, aponta que o país “tem um problema sério de governabilidade” e afirma que “dos 22 governos constitucionais” apenas 6 se mantiveram levando a respetiva legislatura até ao fim (4 anos). Na verdade, só a 1.ª legislatura teve 6 governos, pois, apesar de ter havido uma dissolução da AR, as normas constitucionais transitórias estipulavam que as subsequentes eleições não interromperiam a legislatura.

E, como afirma Reis Novais, foram governos de legislatura completa só três no século XX e três neste século XXI, sendo três de esquerda e três de direita e tendo a esquerda e a direita igual tempo de governo desde 1976, o que revela, “na sua perfeita simetria, um quadro sintomático de instabilidade governativa”. Estamos efetivamente à beira de 23 governos formados na vigência da Constituição em 45 anos de democracia formal e verifica-se que o problema não afeta apenas os governos de esquerda por via da dificuldade de acordos de coligação ou de incidência parlamentar nessa área. Também governos à direita experimentaram dificuldades de percurso e alguns caíram. A governação da AD liderada por Francisco Pinto Balsemão, após a morte de Sá carneiro, viu-se interrompida pela apresentação do pedido de demissão do Primeiro-Ministro e a subsequente dissolução da AR, tendo as eleições subsequentes dado ensejo à formação dum governo do bloco central (PS+PSD); algo semelhante sucedeu ao Governo da AD liderado por Santana Lopes, na sequência da saída de Durão Barroso para a presidência da Comissão Europeia, que foi atingido pela dissolução da AR. Isto, sem falar da queda do governo minoritário de Cavaco Silva fustigado pela moção de censura apresentada pelo PRD e secundada, entre outros, pelo PS.

Atualmente, a par das dificuldades usuais na esquerda partidária, o risco de ingovernabilidade vislumbra-se na direita pela crescente emergência duma formação dificilmente coligável com a direita democrática. Tal perspetiva propicia a reflexão sobre a forma de “encarar e resolver o problema estrutural”.

Sustenta Paulo Otero que não se trata de “algo que se possa resolver com engenharia eleitoral”, visto que, na sua ótica, uma “qualquer alteração constitucionalmente admissível ao sistema eleitoral resultaria em incremento da proporcionalidade da representação”, o que reforçaria a dificuldade da formação de governos com apoio parlamentar maioritário”. E o constitucionalista diz que a solução é simples, mas requer “visão de Estado” e “passa por revisão constitucional”. Segundo ele, consiste em “conferir coerência integral ao atual sistema de relacionamento entre Governo e a AR, não tocando os poderes do Presidente da República (PR).

Tendo em conta que a Constituição vislumbrou “a probabilidade de ocorrência de governos sem apoio parlamentar maioritário”, pelo que a sua arquitetura constitucional facilitou a formação do governo e a sua passagem na AR, a solução passa por ampliar tal arquitetura. Na verdade, a Constituição permite que o governo passe na AR sem que tenha de ver aprovado o seu programa, que nem precisa de ir a votação, bastando que, durante a sua discussão parlamentar, não seja aprovada uma moção de rejeição pela maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções (vd art.º 192.º/4). Assim, um governo minoritário é usualmente viável, tendo havido apenas dois casos de rejeição do programa do governo: V e XX Governos Constitucionais.  

Porém, segundo Otero, a racionalidade deste mecanismo fica frustrada quando, depois, se deixa um governo minoritário abandonado a eventual convergência de maioria parlamentar negativa. Por isso, em seu entender, havia que prosseguir na “lógica subjacente ao regime de investidura parlamentar dos governos, pelo menos nas situações críticas de maior importância para a sua subsistência”. E a solução constitucional que propõe desde 2007, concretiza tal orientação.

Em termos minimalistas, era de estender à discussão de leis financeiras importantes, como o orçamento, o mecanismo previsto para a discussão do programa do governo, isto é, se na discussão do orçamento não fosse aprovada pela predita maioria parlamentar uma moção de censura ao governo, “o orçamento seria considerado adotado, mesmo sem votação expressa”. Se bem que por censura parlamentar o governo cairia (art.º 195.º/1/al. f)) e, com ele, o orçamento, mas, pelo menos, “identificar-se-iam os responsáveis pela crise de forma transparente”, o que seria “poderoso dissuasor de tentações e decisões irresponsáveis” como as que se têm visto. E é um mecanismo vigente em França que, tal como nós, tem sistema semipresidencialista.

O mesmo mecanismo “poderia ser pontualmente aplicado a outras leis relativamente às quais o governo suscitasse o problema da confiança, embora instituindo limites ao recurso a essa possibilidade, “por exemplo, uma vez por sessão legislativa”, como sucede em França.

Além disso, poderia ser estipulado que “toda a aprovação de uma moção de censura exigiria igualmente a aprovação do novo Primeiro-Ministro que deveria substituir o que estava em funções”. Assim, porque a maioria da AR “só derrubava um governo se acordasse numa alternativa de substituição”, a crise “ou nem se chegava a abrir ou, uma vez aberta, estaria imediatamente solucionada”. Paulo Otero descarta o argumento de que tal diminuiria o papel do Presidente da República (PR), uma vez que a este continuava reservada “a possibilidade de optar pela dissolução do parlamento”, que levaria a prazo (com início antecipado de nova legislatura) à demissão do Governo (art.º 195.º/1/al. a)), devolvendo a palavra ao eleitorado. É, diz, “o instituto da chamada moção de censura construtiva que existe em diferentes países de sistema parlamentar, como Espanha ou Alemanha, ou de sistema semipresidencial, como a Polónia ou a Eslovénia”.

Qualquer destas medidas, considerada isoladamente, para o constitucionalista, “já diminuiria significativamente os riscos de ingovernabilidade”. Porém, a adoção conjunta das três resolveria consistentemente o problema, sem afetar a responsabilidade dos governos perante a AR e sem afetar os poderes do PR. Ou seja, governo minoritário cujo programa tivesse passado na AR disporia das “condições mínimas para o executar” e, a não ser em caso de dissolução da AR ou de demissão do executivo por censura parlamentar, seriam julgados no termo da legislatura.

***

Por sua vez, Vital Moreira publicou no blog “Causa Nossa”, a 9 de novembro, um texto subordinado ao título “Reformas em prol da estabilidade governamental”, em que faz um diagnóstico da situação governativa similar ao de Paulo Otero e também apresenta soluções.

Começa por augurar que o partido que vencer as próximas eleições não obterá, por si só, maioria parlamentar por si só. E verifica que, “até agora, um partido sozinho só conseguiu maioria parlamentar em 3 das 15 eleições parlamentares” (1987, 1991 e 2005). Depois, suspeita que, uma vez que “a extrema-esquerda não aceita os compromissos necessários para assegurar finanças públicas e economia sãs (como mostrou a sua rejeição do orçamento e a interrupção da legislatura) e sendo igualmente claro o afastamento de uma ‘grande coligação’ com o PSD”, estaremos sujeitos a “novo governo minoritário do PS”. Mais refere que o mesmo se dirá de eventual vitória do PSD com maioria relativa, pois também este partido apresenta dificuldade em fazer alianças para um governo maioritário, quando o CDS parece estar em vias de desaparecimento, a IL ainda não cresceu o suficiente e “o Chega não é aliado recomendável”.

Nestes termos, o constitucionalista considera más as perspetivas de estabilidade governamental, importante para as finanças públicas e para o desempenho da economia, bem como iminente o risco de “um novo período de governos de curta duração e de escassa capacidade governativa. Com efeito, governos minoritários sem consistentes acordos de apoio parlamentar são “incapazes de realizar o seu programa” quando “forçados a cumprir leis aprovadas contra a sua vontade, de acordo com a agenda política das oposições”, correm “o risco de verem rejeitado o principal instrumento de governação (o orçamento) ou vê-lo estropeado pelas oposições reunidas e estão mais sujeitos à aprovação de moções de censura.

Neste sentido, Vital Moreira seleciona, como primeira reforma, o estabelecimento de um mecanismo de “tornar menos rara a possibilidade de maiorias absolutas, baixando o seu limiar eleitoral para cerca de 40%” (em vez dos atuais 44-45%), pela divisão dos atuais megacírculos eleitorais (Lisboa, Braga, Porto, Aveiro, Setúbal), de modo que “nenhum círculo pudesse eleger mais do que uma dezena de deputados”. Depois, um círculo eleitoral nacional de um décimo dos deputados (23) permitiria dar utilidade aos votos nos partidos menores em qualquer parte do território (o que não sucede) e assegurar-lhes um mínimo de representatividade parlamentar.

De facto, os dois maiores círculos eleitorais elegem muito mais de um terço dos deputados e, no maior (Lisboa), basta menos de 2% para eleger um deputado, mesmo sem análoga votação a nível nacional. E a tendência de aumento dos deputados nesses dois círculos, por via da deslocação populacional, leva à crescente fragmentação parlamentar. 

E, como isto não basta para garantir governos de maioria, importaria também, segundo o constitucionalista “conferir aos governos minoritários melhores condições de governabilidade e durabilidade do que as de que dispõem hoje”, reduzindo a possibilidade de sujeição a eventuais alianças oportunistas das oposições, as ditas coligações negativas.

Par tal fim, o constitucionalista opina que seria de pensar as seguintes soluções: a moção de censura “construtiva”, não sendo admitidas à discussão moções que não apresentassem como alternativa novo governo e respetivo programa, mas apenas destinadas ao derrube do governo, mediante aliança das oposições sem nada em comum; a necessidade de assentimento governamental para aprovação das propostas de alteração parlamentar do orçamento que aumentassem a despesa pública prevista na proposta de lei, pela extensão da atual norma-travão; e a admissão de moção de confiança governamental sobre a votação do orçamento, cuja aprovação implicaria a ratificação do orçamento e cuja rejeição azaria a demissão do Governo, dando-se, deste modo, ao orçamento a importância fulcral que tem na política governamental.

***

Todas estas medidas carecem de maioria qualificada de 2/3 dos deputados presentes, desde que igual ou superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, e, salvo a primeira aventada por Moreira, implicam revisão constitucional. Porém, os dois maiores partidos (PS e PSD), que ainda somam mais de 2/3 na AR (o que não é fácil nos demais países da UE), para já, não manifestam entendimento para revisão da Constituição, nem para revisão audaz da lei eleitoral; e a tendência para a fragmentação parlamentar, conquanto enriquecedora da representação do país, pode tender para a agudização da ingovernabilidade por dificultar a possibilidade de tais reformas, se adiadas. Por isso, como diz Vital Moreira, “era conveniente que os dois principais partidos refletissem sobre o assunto em prol da estabilidade e da responsabilidade política no País, cada vez mais um ‘bem público’ de elevado valor”.

Na verdade, os partidos políticos em Portugal, ao invés do que se passa noutros países da Europa, têm dificuldade em negociar soluções, presos que estão aos parâmetros da sua autoafirmação política, que nem sempre são de cariz ideológico; e os saudosistas do passado, secundados por jornalistas e comentadores, ajudam a descrer das soluções políticas em democracia. Em tudo veem pretexto para esconjurar o prestígio do país, a crença nas instituições e o investimento dos portugueses e dos estrangeiros no país.

Resta a cruzada pelas maiorias absolutas. Mas também estas podem ser perigosas e precárias.

No quadro da periculosidade, já vão longe os tempos das maiorias que albergaram as privatizações em barda, a princípio em embrião, mas depois em ousadia, tal como se tornou perigosíssima a inicialmente acarinhada maioria socrática.

E, no atinente à precariedade, quem não se lembra da tentação de Mário Soares de dissolver a AR após a enunciação do tabu cavaquista de largos meses sobre a sua permanência ou não à frente do partido? Só obstou a isso a sua relutância em dissolver a AR, ato político que tanto criticou em Eanes e a magreza do apoio dos seus correligionários mais próximos. Entretanto, Jorge Sampaio deu um piparote constitucional na AD de Santa Lopes, uma maioria parlamentar e governativa de dois partidos; e a AD de Passos Coelho foi apertada por uma crise nunca vista, a ponto de Cavaco Silva se ter disponibilizado a compensar, com a dissolução da AR a prazo e marcação de eleições antecipadas, a negociação dum acordo de que surgisse um compromisso de salvação nacional.      

Por isso, é de solicitar ao povo que vote e aos partidos que, na hora exata, coloquem o interesse nacional acima de tudo e ousem negociar com o mínimo de sabedoria, mas sempre pelo tempo da legislatura (4 anos) e não dois orçamentos como alvitram altas figuras da pantalha nacional. E não vale a pena estudar a passagem da duração da legislatura de 4 para 5 anos ou mais, se temos até dificuldade tão grande em cumprir a legislatura de 4 anos…

Aliás, já tivemos períodos em que a correlação de forças esteve mais equilibrada, por exemplo, com personalidades da oposição política à frente de instituições nevrálgicas como o BdP, a CGD e alguns institutos públicos, bem como muitos dos serviços locais da administração pública, quando não era tão evidente o culto do cartão de partido nas áreas do centrão.

Há sempre solução, haja vontade política!

2021.11.10 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário