sábado, 13 de novembro de 2021

Máfia detetada pela Operação Miríade não é ato isolado nem só militar

 

Um misto de comoção e indignação paira na opinião pública por causa da rede de 11 militares que foi apanhada no tráfico de diamantes, ouro, droga e mercúrio, a partir da missão da 2.ª FDN (Força Nacional Destacada) no âmbito da MINUSCA na República Centro-africana (RCA). 

É consensual que o facto mancha o prestígio e a imagem das Forças Armadas Portuguesas (FAP), o que seria reparável em parte se a justiça funcionasse rápida, imparcial e de forma exemplar. 

E, dada a sucessão de casos dos últimos tempos nas FAP – morte de dois instruendos num curso de comandos pela descontrolada dureza das provas e falta de atempada assistência médica, assalto aos paiolins de Tancos com furto de material de guerra e putativa encenação para recuperação do material com encobrimento dos prevaricadores – é de questionar se o legislador constituinte fez bem em restringir a existência de tribunais militares ao tempo de guerra. Com efeito, crimes estritamente militares, puníveis ao abrigo do Código de Justiça Militar, se fossem julgados no foro militar, teriam justiça mais célere, eficaz e pesada (a moldura penal é quase sempre maior que no Código Penal) que nos tribunais comuns, que acumulam processos sobre processos.

E, a demonstrar que a máfia em causa não surgiu de súbito, nem é exclusivamente das FAP, o “Expresso” desta semana traz uma alargada peça jornalística que tudo elucida.  

Nos intervalos das longas e complicadas intervenções no terreno, os militares, em situações excecionais e em número muito reduzido, vão descomprimir à piscina do Ledger Plaza Bangui, hotel de 5 estrelas, “qual oásis de conforto” no meio da capital da RCA e talvez “o único sítio onde o pó vermelho da terra, fininho, não se cola à pele, ao cabelo, a todo o lado” – dizem Hugo Franco e Raquel Moleiro.

Assim, na tarde de 24 de janeiro de 2018, o comando Paulo Nazaré passou por lá quando integrava a 2.ª FND, entre outubro de 2017 e março de 2018. E, estando em convívio com os camaradas, uma mulher chamou-o do varandim do quarto com vista da piscina, mas ninguém sabe do que falaram então, bem como nas conversas subsequentes – cena replicada com vários militares que estiveram na RCA. E os boatos construíram ligação amorosa entre ambos, que iria passar por serviços de segurança privada em viagens pelo mundo, tendo constituído “o início da ligação do comando ao tráfico de diamantes e, depois, ao branquea­mento de capitais, tráfico de ouro e droga, fraude informática, moeda falsa, entre uma multiplicidade de crimes, tantos e tão diversos que deram o nome de ‘Miríade’ à operação da PJ recém-montada para deter o líder do caso, com o seu braço-direito, e desmantelar a rede internacional que criou, com atividade em Portugal, Brasil, Angola, Dubai e Bélgica.

Aquando do regresso do contingente a Portugal, a dita mulher viajou para Lisboa (onde ficou cerca de 2 meses), vindo as redes sociais a atestar com imagens a sua passagem pela capital, “numa galeria de fotografias de diamantes, lapidados e em bruto, minas escavadas na lama, pepitas de ouro e mais viagens, de Paris ao Sudeste asiático”, bem como “dedicatórias no mural de Paulo”.

Como referem alguns militares, Paulo Nazaré, a viver em Camarate, “começa a aparecer todo bem vestido, de fato, Mercedes preto novo, bem na vida”. Depois, abandonou o Exército para estudar gemologia e lapidação numa cidade europeia. Fez apenas uma única missão na RCA, o que bastou para muitos contactos com membros das FAP e indivíduos de várias áreas de negócio que vieram a ser úteis nos anos seguintes em Portugal” e, sobretudo, percebeu in loco a quase ausente vigilância aos voos militares, quer à bagagem quer aos ocupantes.

Como se entrelê, “a Máfia”, como Paulo lhe chama em conversa intercetada pela PJ (Polícia Judiciária), foi criada em 3 anos. Entre os elementos, grande parte dos quais foi constituída arguida pelo MP (Ministério Público), os investigadores identificaram, pelo menos, 66 pessoas: 5 militares no ativo e 6 ex-militares, 2 advogados e outros tantos elementos da GNR, um agente da PSP, três funcionários bancários, um segurança e dezenas de “mulas” titulares de contas bancárias. A cada um fora atribuída uma função específica e os grupos estavam organizados por crimes, a saber: contrabando de pedras e metais preciosos, branqueamento (transferências e pagamentos fictícios), tráfico de droga, acessos ilegítimos a contas e burlas informáticas, contrafação e passagem de moeda falsa, transações em bitcoins e o que mais surgisse, como o contrabando de mercúrio proveniente da Guiné-Bissau, referido numa escuta.

O despacho de indiciação pormenoriza as burlas informáticas com mensagens e e-mails fraudulentos de instituições bancárias, como o Novo Banco ou o Millennium BCP, pelas quais entravam em contas de particulares e retiravam milhares de euros. Só num dia, 6 clientes ficaram sem mais de 20 mil euros.

Além das pessoas singulares em referência, há cerca de 40 empresas tidas como envolvidas na rede. Em Portugal, Angola e Brasil, aceitavam a realização de contratos fictícios, de compra e venda ou prestação de serviços, e o uso das suas contas para receber e transferir elevadas somas de dinheiro. São firmas de construção civil, grossistas de alimentação, um restaurante de sushi em Santa Iria da Azoia, um stand de automóveis em Loures, uma discoteca em Alcântara (Lisboa) e uma igreja evangélica em Rio de Mouro, cujo pastor ganhava 5% do dinheiro lavado nas contas do templo.

Os integrantes do núcleo duro da rede eram, na sua maioria, militares e ex-militares, todos comandos (tropas da elite do Exército), sobressaindo: Stashko, colega de curso e de missão de Paulo Nazaré, a tirar o curso de guarda da GNR em Portalegre; Michael, agente da PSP no Comando Metropolitano de Lisboa; Sidney, vigilante na área do transporte de valores que pedia dicas a bancários para transações ilícitas; Silveira, mediador imobiliário; e Chantre, comando da velha guarda, com residência habitual em Angola.

No ativo estavam três capitães, dois majores e um sargento, o que levou a que a megaoperação da UNCC (Unidade Nacional de Combate à Corrupção) da PJ e do DIAP de Lisboa, realizada no dia 8, incluísse nos 100 mandados de busca, de norte a sul do país, o Regimento de Comandos. O dia terminou com 11 detenções e a semana com dois arguidos em prisão preventiva: Pedro Nazaré, o líder da rede, e Wilker Rodrigues, o seu braço-direito e elo de ligação essencial com o Brasil e o Reino Unido, que não quiseram responder às questões de Carlos Alexandre, juiz de instrução.

Esta foi a primeira ação visível da investigação espoletada no início de 2020, graças à denúncia de Samuel, intérprete da MINUSCA na RCA, que trabalhava com o contingente português. Na 2.ª FND, serviu de intermediário ao primeiro negócio de tráfico de dia­mantes de Paulo Nazaré (8 pedras), de que receberia uma comissão de 20%. Como o comando regressou a Portugal antes do término do negócio, a transação terá sido continuada um ano depois pelo capitão Marçal, quando este chegou à RCA na 5.ª FND, e concluída a 22 de agosto de 2019 num encontro com um comerciante local, acompanhado de Nazaré por videochamada, que assistiu, em direto à pesagem dos diamantes e ao pagamento de dez mil euros. As pedras seriam trazidas para Portugal pelo capitão Marçal num voo de sustentação das FAP, em setembro, mas Samuel não recebeu a sua parte. E entregou todo o esquema à PJM (Polícia Judiciária Militar). Porém, o major Marques, em fevereiro de 2020, denunciou outra situação. No despacho de indiciação consta que, entre 3 e 12 de setembro, na transição entre a 5.ª e a 6.ª FND, o capitão Santos, duplamente condecorado, apresentou ao major um funcionário local duma ONG que lhe iria entregar uma “caixinha” com “uma peça de artesanato local”, que ele deveria enviar para Portugal em voo militar. A transmissão realizou-se no parque de viaturas do contingente, mas o major, sabendo da denúncia anterior, arrependeu-se e revelou a operação de tráfico dos 10 diamantes (5 em bruto e 5 lapidados), mas não se livrou de ser constituído arguido.

É ainda de referir, como curiosidade de interesse e complemento, que Paulo Nazaré, líder da rede de militares e ex-militares que traficou diamantes, ouro e droga proveniente da RCA, se dedicava ao contrabando de mercúrio. Segundo o despacho de indiciação, a 8 de fevereiro deste ano, os inspetores da UNCC da PJ presenciaram um encontro no qual Wilker Rodrigues, braço-direito do líder da rede, lhe entregou dinheiro no âmbito de uma operação de tráfico de mercúrio proveniente da Guiné-Bissau. Dias depois, o ex-comando viajou até lá para fazer negócio.

Ora, o mercúrio é usado pelos garimpeiros ilegais para separar o ouro do solo, uma vez que adere a este metal precioso, acabando por envenenar os rios e ameaçar a saúde da população. E é sabido que as grandes redes internacionais de tráfico de ouro, de pedras preciosas, de droga e de armas costumam também negociar ilegalmente o mercúrio. 

***

Entretanto, parece que a questão ainda mais relevante que o desmantelamento da rede e a severa punição dos criminosos é o silêncio do Ministro da Defesa Nacional sobre o caso.

Tendo sabido do caso em fins de 2019, por comunicação do CEMGFA (Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas), o Ministro informou a ONU do sucedido, mas, escudado em parecer jurídico que solicitara para o efeito, não informou o Chefe do Governo e o Presidente da República (e Comandante Supremo das Forças Armadas), supostamente por o processo já ter sido comunicado pelo CEMGFA à PJM e ao MP, encontrando-se em segredo de justiça.

E, a este respeito, os observadores já comentam que Gomes Cravinho “perde créditos no PS e em Belém para continuar na Defesa” e que o próprio Governo ficou surpreendido com violência verbal do Primeiro-Ministro. Também ironizam dizendo que “António Costa não tem sorte com os ministros da Defesa”. Na verdade, deixou cair Azeredo Lopes, em 2018, pelo assalto a Tancos, seguido da putativa encenação de recuperação de material com encobrimento dos autores do crime, vindo a apostar, depois, num ministro que começou discreto, mas está cada vez mais desgastado com a gestão política de polémicas evitáveis. Costa terá ficado irritado profundamente, ao perceber, em visita a Berlim, que Gomes Cravinho não o informara das suspeitas de tráfico de diamantes, ouro e droga, comunicadas à PJM, ao MP e à ONU, sobre os portugueses que tinham participado nas missões das Nações Unidas na RCA. No PS, crescem os juízos negativos sobre o ministro, que não convenceu o partido com a garantia de que tinha cumprido todos os procedimentos, sendo que “nem Azeredo Lopes cometia um erro tão básico”, de não avisar PM e PR. E, em Belém, pelo somatório de casos em área de sobreposição com o comandante supremo das FA e “uma certa leveza institucional que atravessa vários domínios” do Governo, a expectativa é que, após as legislativas, a Defesa fique noutras mãos.

Alguns governantes ficaram surpreendidos pela violência das primeiras declarações de Costa, deixando o Ministro à mercê dos partidos da oposição, com o PSD a chamá-lo de urgência ao Parlamento. Rui Rio, por exemplo, em entrevista à RTP, disse que “é particularmente grave um Primeiro-Ministro ter um membro do Governo que não o informa de uma situação destas”.

Não obstante a cotação de Cravinho estar em queda abrupta nos bastidores, num momento em que o PS parte para as legislativas à procura de maioria “reforçada, estável e duradoura”, a palavra de ordem é desdramatizar e esvaziar a crise. O gabinete de Costa tentou conter os danos em declaração ao “Público” e ao “Expresso”, depois de aquele diário ter avançado, no dia 11, à tarde, que Marcelo ainda esperava explicações da parte do Primeiro-Ministro. Assim, uma fonte oficial de São Bento fez saber:

O PM falou com o Presidente da República e ficou tudo esclarecido. Ambos compreenderam as explicações do almirante chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e do Ministro da Defesa.”.

Com efeito, ao invés do que é usual acontecer às quintas-feiras, Marcelo e Costa não tiveram a reunião habitual em Belém, por alegados problemas de agenda, mas falaram ao telefone.

Marcelo, que tinha, há mês e meio, desautorizado o Ministro em termos duros – travou a tentativa de exoneração do CEMA (Chefe do Estado-Maior da Armada) por não ter sido informado previamente – “não vai dramatizar” o caso, como explicou fonte de Belém. A polémica sobre a substituição do CEMA, que se enquadra na dita definição de “leveza institucional”, acabou com os “equívocos” esclarecidos após reunião tripartida em Belém entre o PR, o PM e o Ministro.

O Presidente será agora “o mais discreto possível”, por entender que as forças nacionais destacadas são matéria sensível, com implicações internacionais para o Estado português. Mas nem por isso se dispensou de pôr o governante na linha de fogo: assim, no início da semana, divulgou que o Ministro lhe tinha telefonado a justificar a não prestação de informação com base num parecer jurídico, que supostamente invoca o segredo de justiça. Porém, no dia 12, aos jornalistas disse que “o que está em investigação judicial e em segredo de justiça” não tem de ser “objeto de apreciação por parte dos órgãos políticos”. E, com o fantasma de Tancos ainda a pairar, elogiou o início da investigação “à primeira suspeita”.

No entanto, em Belém, julga-se ter sido desejável uma referência às suspeitas numa reunião do Conselho Superior de Defesa Nacio­nal, que aprova e analisa as missões internacionais das FAP. Mas o Presidente admite que o Ministro e o CEMGFA podem ter pensado que o caso tinha uma dimensão menor do que veio agora a saber-se. Na verdade, foram nesse sentido as declarações públicas do próprio CEMGFA no dia 12. Quanto ao parecer jurídico, pelo silêncio do Ministério da Defesa, permanecem dúvidas sobre quem o fez, o que diz, que informação tinha para o sustentar e se era externo, mera “informação” ou “opinião jurídica dos serviços”.

***

Parece que o grave é a não comunicação ao PM e ao PR. Se tivessem sido informados do caso, ao serem confrontados, depois, com a sua gravidade, viriam repetir à saciedade que não sabiam de nada, que de nada foram informados, passando para outrem o ónus da culpa. Aqui, é de apontar que o Ministro só livrou o PR e o PM de alhadas futuras. Porém, como sói dizer-se, é preso por ter cão e por não o ter. De resto, é inadmissível meter no mesmo saco a tentativa de exoneração-nomeação do CEMA (obra do Governo e do PR, mas havia outros interessados…), a reforma de topo no comando das FAP (desígnio do Governo) ou a derrapagem de milhões em obras no Hospital Militar de Belém (o que sucede em tantas obras, sobretudo se antigas…).

Tanta irritação (Sem dramatismo!) talvez mostre que PR e PM sabiam da encenação de Tancos!   

2021.11.13 – Louro de Carvalho

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