sábado, 6 de novembro de 2021

Não há motivo para dramatizar a crise política

 

No passado dia 4 de novembro, o Presidente da República (PR) anunciou que, ouvidos os partidos com assento parlamentar e o Conselho de Estado, nos termos constitucionais, bem como os parceiros sociais, para aferir da situação económica e social do país, decidiu que, em tempo oportuno, irá proceder à dissolução da Assembleia da República (AR) e convocar eleições legislativas antecipadas, tendo já decido a data das mesmas: 30 de janeiro de 2022.

A justificar a data das eleições, o PR disse que não era conveniente fazer coincidir o debate eleitoral com a quadra natalícia e o fim de ano, a seguir a um Natal de 2020 que não tivemos propriamente o direito de ter. É, na sua ótica, necessário que a campanha eleitoral seja elucidativa das ideias e projetos que as diferentes forças políticas têm para apresentar ao país, tal como será conveniente promover os debates possíveis nos órgãos de comunicação social para que os portugueses possam fazer um melhor juízo sobre as diferentes candidaturas e votar em consciência e com responsabilidade. Obviamente que, neste aspeto, o Chefe de Estado tem razão e parece, de um lado, conter a pressa que alguns partidos terão colocado nas eleições, já que o PR decidiu por elas, e, do outro, não poder ser acusado de esperar pelo timing dos partidos que estão em crise interna de liderança, até porque alguém lhe apontou interferência partidária ao receber um candidato à liderança dum partido, antes de receber as direções partidárias e alegadamente ter incentivar deputados socialdemocratas na AR a viabilizar o OE 2022.     

Não obstante, onde o PR sublinhou dramatismo foi na justificação para a dissolução da AR. Desde logo disse ter sido esta a primeira vez que uma proposta de Orçamento de Estado (OE) foi rejeitada pela AR. Esqueceu que, em 1979, a primeira proposta de OE apresentada pelo Governo de Carlos Alberto da Mota Pinto foi rejeitada pela AR, o que levou o Ministro das Finanças Manuel Jacinto Nunes a desenhar outra proposta de OE, que foi acolhida pela AR, a qual rejeitou as Grandes Opções do Plano (GOP), apresentada simultaneamente, o que azou a demissão do Governo.

Perante este facto, o Presidente Eanes conseguiu o acordo dos partidos políticos representados na AR no sentido de viabilizarem o programa dum novo Governo, após o que dissolveria a AR, ficando o Governo com a legitimidade de Governar e preparar as ditas eleições, que eram intercalares, não inaugurando nova legislatura. Com efeito a CRP, na redação originária estabelecia, no n.º 2 do art.º 174.º, que “no caso de dissolução, a Assembleia então eleita não iniciará nova legislatura”; e, embora o n.º 3 do mesmo artigo estabelecesse que “verificando-se a eleição, por virtude de dissolução, durante o tempo da última sessão legislativa, cabe à Assembleia eleita completar a legislatura em curso e perfazer a seguinte”, o n.º 2 do art.º 299.º, estipulava que “o disposto no n.º 3 do artigo 174.º não se aplica à primeira Legislatura”.

Também o PR apontou a situação atual como excecional. Com efeito, estamos a emergir duma pandemia, longe de estar dissipada, em que a rejeição do OE juntou à crise sanitária, económica e social uma crise política. É certo, mas o PR parece não ter em conta que, em 1979, estávamos a recuperar duma crise económica e financeira que mereceu a ajuda do FMI (a 1.ª); e os partidos não estavam no poder executivo (o Governo era de iniciativa presidencial), pelo que estavam com elã para a disputa eleitoral de que resultou uma maioria, o que não é expectável no caso presente.

Em 1983, a AR foi dissolvida por demissão do então Primeiro-Ministro Pinto Balsemão, demissão que nunca foi explicada, pelo menos satisfatoriamente, sendo que ninguém ligado à AD queria integrar o Governo, ainda que o Professor Vítor Crespo se tivesse disponibilizado para chefiar um novo Governo. E, em 1985, a AR foi dissolvida pelo facto de a nova liderança do PSD ter denunciado a coligação do Bloco Central, mas sem impedir a assinatura do tratado de adesão à CEE. Há quem diga que essa denúncia resultara do avistamento dos fundos europeus. Porém, a perspetiva de futuro da governabilidade era semelhante à de agora. Sucedeu à dissolução da AR o governo mais minoritário de sempre (excluindo os de iniciativa presidencial).

É verdade que a rejeição do OE 2022 ocorreu em ocasião em que precisamos de sair da crise económica e que nunca tivemos um apoio financeiro da UE tão volumoso e significativo. Em todo o caso, não podemos dizer que as divergências entre os partidos mais à esquerda e o Governo pesem mais ou muito mais que as situações de convergência dos últimos 6 anos. E, se é verdade que o país precisa de confiança de Bruxelas para a execução do PRR e da concretização do desenho do Portugal 2030, também é certo que não é caso único a governação por duodécimos, como não o seria a apresentação de uma nova proposta de OE. Além disso, tanto quanto se sabe, a Comissão Europeia, que entrou em consultas com o Governo, não fez depender do OE 2022 a execução do PRR, embora o OE a facilite e tenha que surgir em breve.

É certo que a culpa da não aprovação do OE 2022 é dos parceiros da esquerda que votaram contra, mas dizem que nem queriam eleições, quando agora dizem que as queriam o mais depressa possível. A culpa é também do Governo, que esticou demasiado a corda em relação às ambições dos partidos à direita e cedeu pouco às ambições à esquerda. Porém, como é óbvio, o país tinha de ir na linha da redução do défice e da dívida. E, quanto aos partidos à direita, parece que a coisa estaria a correr de feição se a questão fosse de entretenimento.

Ora, o dramatismo da situação da crise política é relativo. E ele advém do cansaço dum Governo que se fartou de negociar; advém da esquerda, que parece ter querido a Lua, pois, embora tenha toda a razão em exigir o regresso da legislação laboral ao tempo pré-troika, poderia aguardar outra oportunidade para lá do OE 2022; advém da supina distração dos partidos da direita, para quem o OE 2022 parecia não ser assunto; e advém também do próprio PR, que ouviu os partidos políticos sobre o Orçamento, podendo ter exercido o seu magistério de influência nos bastidores, mas saiu-lhe o tiro pela culatra ao advertir antecipadamente que não havia segunda oportunidade, sendo que a rejeição do OE 2022 implicaria eleições antecipadas. Ninguém gosta de se sentir entre a espada e a parede. Nem vale dizer que tudo para que o OE fosse viabilizado.

Esse jogo de antecipação do Chefe de Estado serviu apenas para no seu discurso ancorar a asserção de que “tinha avisado”, o que, não sendo politicamente correto, cai vem no eleitorado. Por outro lado, é ambígua a asserção de que ficou o partido do governo a votar sozinho o OE 2022. Não sei se esta configura uma solidariedade com a vitimização do Governo ou se é uma crítica. Não admira esta ambivalência, pois o PR tem desempenhado bem os dois papéis, o de apoio e o de distanciamento. Mas foi ensejo para o PR lembrar que no tempo da sua liderança socialdemocrata, pelo interesse nacional, viabilizou três OE em que não se revia, o que me leva a questionar se promulgou os últimos seis só pelo interesse nacional, sem neles se rever.    

Entretanto, ao desnecessário dramatismo que o PR e o próprio Governo deram ao chumbo do OE 2022 – não é de esquecer o painel de ministros e ministras que rodeou Costa aquando das declarações aos jornalistas no fim da sessão da AR que chumbou a proposta de Orçamento – acrescenta-se o desnorte no PSD e a autofagia no CDS-PP. Crescerá o Chega e a Iniciativa Liberal. Se com a ambição bruxuleante à esquerda não estávamos bem, com a ambição de iconoclastia do Estado à direita não ficamos melhor. Todavia, o melhor é olhar para o país sem dramas e com atenção ao essencial: a recuperação. E cada força política que se mobilize em torno dos seus líderes. Em tempo de crise não se brinca. Depois, seria bom que os fazedores de opinião se abstivessem de carregar as cores de crise.

A seu tempo, a AR será dissolvida de modo que se respeite o interstício previsto na Constituição para as eleições, que se espera sejam clarificadoras. Entretanto, o Governo, como não se demitiu nem foi demitido (podia ter sucedido, mas não sucedeu), mantém-se em funções quase em plenitude. Não é governo de mera gestão, pois só não pode apresentar propostas de lei por a AR ficar dissolvida, nem usar das autorizações legislativas pendentes, pois caducam com a dissolução, nem nomear membros das autoridades reguladoras, por tal nomeação depender de parecer prévio da AR. E não está em causa o regular funcionamento das instituições de democráticas, porque se mantém em funções a Comissão Permanente da AR, à qual incumbe, nos termos do n.º 2 do art.º 179.º da CRP: vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e acompanhar a atividade do Governo e da Administração; exercer os poderes da AR relativamente ao mandato dos deputados; promover a convocação da AR sempre que necessário; preparar a abertura da sessão legislativa; dar assentimento à ausência do PR do território nacional; autorizar o PR a declarar o estado de sítio ou o de emergência, a declarar guerra e a fazer a paz (caso em que a Comissão Permanente promoverá a convocação da Assembleia no prazo mais curto possível).

Como se pode entreler, a crise é fundamentalmente económico-social. O aspeto político, mais que relativamente ao passado recente e ao presente, é relevante sobretudo em relação à capacidade de o futuro clarificar ou não a correlação e o peso das diversas forças políticas. E o que se passa no desnorte e autofagia nos partidos da direita tradicional portuguesa não é de bom augúrio. Todas as 7 dissoluções da AR até ao presente deram alteração da correlação e peso das forças políticas, embora de duas a situação tenha sido pouco esclarecedora (1983 e 1985).

***

Há quem defenda que o Governo deveria demitir-se ou ser demitido, em consequência da dissolução da AR, por deixar de estar sujeito a escrutínio da AR, o que não é verdade por estar em funcionamento a Comissão Permanente da AR, como se explicou. Constitucionalmente, o Governo não é obrigado a demitir-se em consequência da rejeição do OE ou da dissolução da AR; e também nada autoriza o PR a demitir o Governo, pois trata-se de poder excecionalíssimo, até agora nunca exercido por nenhum Presidente, por estar em causa o regular funcionamento das instituições democráticas, que fica mais bem assegurado com um Governo quase em plenitude de funções. Politicamente, seria prejudicial ao País que, a somar a uma AR dissolvida, se acrescentasse um governo limitado a poderes de gestão corrente, um risco que não se deve impor ao país nas circunstâncias atuais de crise económico-social e sanitária. Não há também relação necessária entre dissolução parlamentar e demissão do Governo. A Constituição impõe a demissão do Governo, no início de nova legislatura por eleições antecipadas, mas, até lá, o Governo mantém-se em funções com os seus poderes ordinários.  O que tem sucedido é o inverso, ou seja, dissolução da AR por demissão do Governo (em 2011, 2002, 1987); mas em 2004, houve dissolução da AR sem demissão presidencial do Governo (embora se tenha depois demitido).

Há, por outro lado, limites implícitos aos Governos cessantes, que decorrem do princípio da lealdade institucional. E, na pendência da dissolução parlamentar, mantém-se em pleno o poder moderador do PR, para travar os abusos de Governo cessante, incluindo o poder de veto legislativo (e de outros decretos do Governo) e, em última instância, o poder de demissão, caso esteja em causa o “regular funcionamento das instituições democráticas.

Não é, pois, defensável que, apesar da rejeição parlamentar do OE, o Governo possa decretar a subida extraordinária das pensões como previsto (dando merecida “chapada” política ao BE e ao PC), se para tal houver margem na verba das pensões do OE em vigor, que é transitoriamente prorrogado por duodécimos mensais. Com efeito, o Governo não pode desafiar a rejeição parlamentar do OE, decretando à revelia uma medida prevista naquele, o que vale para a subida extraordinária das pensões e para o aumento das remunerações dos funcionários públicos e medidas semelhantes, em montante superior a mil milhões de euros. Depois, embora a dissolução da AR não arraste consigo a demissão do  Governo, é certo que este se tornou Governo cessante, terminando o seu mandato com a tomada de posse da nova AR após eleições. Por isso, não é politicamente admissível que Governo à beira do fim crie nova despesa pública para cativar eleitorado, encargo que recairá sobre o Governo que lhe suceder na elaboração de novo OE. Se o Governo fosse por aí, arranjaria motivo para justificado veto presidencial.

Por fim, é de referir que o PS terá de responder até às eleições (quanto mais cedo, melhor) à questão se, caso as eleições não alterem substancialmente o atual quadro parlamentar (como deixam entender as sondagens e pensava há tempos o PR), insistirá na fórmula de Governo encontrada em 2015, tornando-se de novo refém do BE e do PCP quanto à duração do mandato (os alegados responsáveis pela interrupção do mesmo), ou optará por alianças de geometria variável com outros partidos, conforme os temas em causa, incluindo quanto ao OE, como era tradicional nos governos minoritários do PS. A resposta antecipada a esta questão pode ser importante para os próprios resultados eleitorais do PS.

Na área socialista há defensores de que o PS integra o mesmo campo político que o PCP e o BE, ou seja, a esquerda, com a qual deve governar, em oposição ao campo da direita, liderado pelo PSD. Porém, em 2015, prevalecia no PS o entendimento de que havia três campos políticos: a extrema-esquerda (BE e PCP), o centro-esquerda ou esquerda moderada (PS) e a direita (PSD e CDS-PP). O previsto crescimento substancial do Chega pode dar lugar a um 4.º campo político, a extrema-direita Neste quadro político, reduzir o espectro partidário à bipolarização entre Esquerda e Direita constitui simplificação desatualizada da realidade política.

Se se considera má solução uma coligação de governo ao centro, é de duvidar da lógica de soluções que impliquem coligações  à esquerda ou à direita onde é difícil a convergência de posições. Por outro lado, fomentar a polarização PS versus PSD parece inviável.

Poderá ainda o PS anunciar que só encara uma nova aliança política à esquerda com base num compromisso assinado – que provavelmente o próprio PR exigirá, ao invés do que não fez em 2019, e como fez Cavaco Silva em 2015 –, segundo o qual não seria posto em causa nem o rigor das finanças públicas nem a competitividade da economia, deixando ao BE e ao PCP “o ónus de recusar essa fórmula governativa”. De igual modo, os demais partidos devem dizer ao que vêm e definir as futuras políticas de alianças, a fim de que o jogo fique bem claro.

Sem dramatismo excessivos, mas com toda a clarividência!

2021.11.06 – Louro de Carvalho

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