No
passado dia 4 de novembro, o Presidente da República (PR) anunciou que, ouvidos os
partidos com assento parlamentar e o Conselho de Estado, nos termos
constitucionais, bem como os parceiros sociais, para aferir da situação
económica e social do país, decidiu que, em tempo oportuno, irá proceder à
dissolução da Assembleia da República (AR) e convocar eleições legislativas
antecipadas, tendo já decido a data das mesmas: 30 de janeiro de 2022.
A
justificar a data das eleições, o PR disse que não era conveniente fazer
coincidir o debate eleitoral com a quadra natalícia e o fim de ano, a seguir a
um Natal de 2020 que não tivemos propriamente o direito de ter. É, na sua
ótica, necessário que a campanha eleitoral seja elucidativa das ideias e
projetos que as diferentes forças políticas têm para apresentar ao país, tal
como será conveniente promover os debates possíveis nos órgãos de comunicação
social para que os portugueses possam fazer um melhor juízo sobre as diferentes
candidaturas e votar em consciência e com responsabilidade. Obviamente que,
neste aspeto, o Chefe de Estado tem razão e parece, de um lado, conter a pressa
que alguns partidos terão colocado nas eleições, já que o PR decidiu por elas,
e, do outro, não poder ser acusado de esperar pelo timing dos partidos que estão em crise interna de liderança, até
porque alguém lhe apontou interferência partidária ao receber um candidato à liderança
dum partido, antes de receber as direções partidárias e alegadamente ter
incentivar deputados socialdemocratas na AR a viabilizar o OE 2022.
Não
obstante, onde o PR sublinhou dramatismo foi na justificação para a dissolução
da AR. Desde logo disse ter sido esta a primeira vez que uma proposta de
Orçamento de Estado (OE) foi rejeitada pela AR. Esqueceu que, em 1979, a
primeira proposta de OE apresentada pelo Governo de Carlos Alberto da Mota
Pinto foi rejeitada pela AR, o que levou o Ministro das Finanças Manuel Jacinto
Nunes a desenhar outra proposta de OE, que foi acolhida pela AR, a qual
rejeitou as Grandes Opções do Plano (GOP), apresentada simultaneamente, o
que azou a demissão do Governo.
Perante
este facto, o Presidente Eanes conseguiu o acordo dos partidos políticos
representados na AR no sentido de viabilizarem o programa dum novo Governo,
após o que dissolveria a AR, ficando o Governo com a legitimidade de Governar e
preparar as ditas eleições, que eram intercalares, não inaugurando nova
legislatura. Com efeito a CRP, na redação originária estabelecia, no n.º 2 do
art.º 174.º, que “no caso de dissolução, a Assembleia então eleita não iniciará
nova legislatura”; e, embora o n.º 3 do mesmo artigo estabelecesse que “verificando-se
a eleição, por virtude de dissolução, durante o tempo da última sessão
legislativa, cabe à Assembleia eleita completar a legislatura em curso e
perfazer a seguinte”, o n.º 2 do art.º 299.º, estipulava que “o disposto no n.º
3 do artigo 174.º não se aplica à primeira Legislatura”.
Também
o PR apontou a situação atual como excecional. Com efeito, estamos a emergir
duma pandemia, longe de estar dissipada, em que a rejeição do OE juntou à crise
sanitária, económica e social uma crise política. É certo, mas o PR parece não
ter em conta que, em 1979, estávamos a recuperar duma crise económica e
financeira que mereceu a ajuda do FMI (a 1.ª); e os partidos não estavam no
poder executivo (o Governo era de iniciativa presidencial), pelo que estavam com elã para a
disputa eleitoral de que resultou uma maioria, o que não é expectável no caso
presente.
Em
É
verdade que a rejeição do OE 2022 ocorreu em ocasião em que precisamos de sair
da crise económica e que nunca tivemos um apoio financeiro da UE tão volumoso e
significativo. Em todo o caso, não podemos dizer que as divergências entre os
partidos mais à esquerda e o Governo pesem mais ou muito mais que as situações
de convergência dos últimos 6 anos. E, se é verdade que o país precisa de
confiança de Bruxelas para a execução do PRR e da concretização do desenho do
Portugal 2030, também é certo que não é caso único a governação por duodécimos,
como não o seria a apresentação de uma nova proposta de OE. Além disso, tanto
quanto se sabe, a Comissão Europeia, que entrou em consultas com o Governo, não
fez depender do OE 2022 a execução do PRR, embora o OE a facilite e tenha que
surgir em breve.
É
certo que a culpa da não aprovação do OE 2022 é dos parceiros da esquerda que
votaram contra, mas dizem que nem queriam eleições, quando agora dizem que as
queriam o mais depressa possível. A culpa é também do Governo, que esticou
demasiado a corda em relação às ambições dos partidos à direita e cedeu pouco às
ambições à esquerda. Porém, como é óbvio, o país tinha de ir na linha da
redução do défice e da dívida. E, quanto aos partidos à direita, parece que a
coisa estaria a correr de feição se a questão fosse de entretenimento.
Ora,
o dramatismo da situação da crise política é relativo. E ele advém do cansaço
dum Governo que se fartou de negociar; advém da esquerda, que parece ter
querido a Lua, pois, embora tenha toda a razão em exigir o regresso da
legislação laboral ao tempo pré-troika, poderia aguardar outra oportunidade
para lá do OE 2022; advém da supina distração dos partidos da direita, para
quem o OE 2022 parecia não ser assunto; e advém também do próprio PR, que ouviu
os partidos políticos sobre o Orçamento, podendo ter exercido o seu magistério
de influência nos bastidores, mas saiu-lhe o tiro pela culatra ao advertir
antecipadamente que não havia segunda oportunidade, sendo que a rejeição do OE
2022 implicaria eleições antecipadas. Ninguém gosta de se sentir entre a espada
e a parede. Nem vale dizer que tudo para que o OE fosse viabilizado.
Esse
jogo de antecipação do Chefe de Estado serviu apenas para no seu discurso
ancorar a asserção de que “tinha avisado”, o que, não sendo politicamente
correto, cai vem no eleitorado. Por outro lado, é ambígua a asserção de que
ficou o partido do governo a votar sozinho o OE 2022. Não sei se esta configura
uma solidariedade com a vitimização do Governo ou se é uma crítica. Não admira
esta ambivalência, pois o PR tem desempenhado bem os dois papéis, o de apoio e
o de distanciamento. Mas foi ensejo para o PR lembrar que no tempo da sua
liderança socialdemocrata, pelo interesse nacional, viabilizou três OE em que
não se revia, o que me leva a questionar se promulgou os últimos seis só pelo
interesse nacional, sem neles se rever.
Entretanto,
ao desnecessário dramatismo que o PR e o próprio Governo deram ao chumbo do OE
2022 – não é de esquecer o painel de ministros e ministras que rodeou Costa
aquando das declarações aos jornalistas no fim da sessão da AR que chumbou a
proposta de Orçamento – acrescenta-se o desnorte no PSD e a autofagia no
CDS-PP. Crescerá o Chega e a Iniciativa Liberal. Se com a ambição bruxuleante à
esquerda não estávamos bem, com a ambição de iconoclastia do Estado à direita
não ficamos melhor. Todavia, o melhor é olhar para o país sem dramas e com
atenção ao essencial: a recuperação. E cada força política que se mobilize em
torno dos seus líderes. Em tempo de crise não se brinca. Depois, seria bom que
os fazedores de opinião se abstivessem de carregar as cores de crise.
A
seu tempo, a AR será dissolvida de modo que se respeite o interstício previsto
na Constituição para as eleições, que se espera sejam clarificadoras. Entretanto,
o Governo, como não se demitiu nem foi demitido (podia ter
sucedido, mas não sucedeu),
mantém-se em funções quase em plenitude. Não é governo de mera gestão, pois só
não pode apresentar propostas de lei por a AR ficar dissolvida, nem usar das
autorizações legislativas pendentes, pois caducam com a dissolução, nem nomear
membros das autoridades reguladoras, por tal nomeação depender de parecer
prévio da AR. E não está em causa o regular funcionamento das instituições de
democráticas, porque se mantém em funções a Comissão Permanente da AR, à qual
incumbe, nos termos do n.º 2 do art.º 179.º da CRP: vigiar pelo cumprimento da
Constituição e das leis e acompanhar a atividade do Governo e da Administração;
exercer os poderes da AR relativamente ao mandato dos deputados; promover a
convocação da AR sempre que necessário; preparar a abertura da sessão legislativa;
dar assentimento à ausência do PR do território nacional; autorizar o PR a
declarar o estado de sítio ou o de emergência, a declarar guerra e a fazer a
paz (caso em que a Comissão Permanente
promoverá a convocação da Assembleia no prazo mais curto possível).
Como
se pode entreler, a crise é fundamentalmente económico-social. O aspeto
político, mais que relativamente ao passado recente e ao presente, é relevante
sobretudo em relação à capacidade de o futuro clarificar ou não a correlação e
o peso das diversas forças políticas. E o que se passa no desnorte e autofagia
nos partidos da direita tradicional portuguesa não é de bom augúrio. Todas as 7
dissoluções da AR até ao presente deram alteração da correlação e peso das
forças políticas, embora de duas a situação tenha sido pouco esclarecedora (1983
e 1985).
***
Há quem
defenda que o Governo deveria
demitir-se ou ser demitido, em consequência da dissolução da AR, por
deixar de estar sujeito a escrutínio da AR, o que não é verdade por estar em
funcionamento a Comissão Permanente da AR, como se explicou. Constitucionalmente,
o Governo não é obrigado a demitir-se em consequência da rejeição do OE ou da
dissolução da AR; e também nada autoriza o PR a demitir o Governo, pois trata-se
de poder excecionalíssimo, até agora nunca exercido por nenhum Presidente, por
estar em causa o regular funcionamento das instituições democráticas, que fica
mais bem assegurado com um Governo quase em plenitude de funções. Politicamente,
seria prejudicial ao País que, a somar a uma AR dissolvida, se acrescentasse um
governo limitado a poderes de gestão corrente, um risco que não se deve impor
ao país nas circunstâncias atuais de crise económico-social e sanitária. Não há também relação necessária entre
dissolução parlamentar e demissão do Governo. A Constituição impõe a demissão
do Governo, no início de nova legislatura por eleições antecipadas, mas, até
lá, o Governo mantém-se em funções com os seus poderes ordinários. O
que tem sucedido é o inverso, ou seja, dissolução da AR por demissão do Governo
(em 2011, 2002, 1987); mas em 2004, houve dissolução da AR
sem demissão presidencial do Governo (embora se tenha depois demitido).
Há, por outro
lado, limites implícitos aos Governos cessantes, que decorrem do princípio da
lealdade institucional. E, na pendência da dissolução parlamentar, mantém-se em
pleno o poder moderador do PR, para travar os abusos de Governo cessante,
incluindo o poder de veto legislativo (e de outros decretos do Governo) e, em última instância, o poder de
demissão, caso esteja em causa o “regular funcionamento das
instituições democráticas”.
Não é, pois, defensável que, apesar da
rejeição parlamentar do OE, o Governo possa decretar a subida
extraordinária das pensões como previsto (dando merecida “chapada” política ao BE e ao PC), se para tal houver margem na verba das pensões do OE
em vigor, que é transitoriamente prorrogado por duodécimos mensais. Com efeito, o Governo não pode desafiar a rejeição
parlamentar do OE, decretando à revelia uma medida prevista naquele, o que vale
para a subida extraordinária das pensões e para o aumento das remunerações dos
funcionários públicos e medidas semelhantes, em montante superior a mil milhões
de euros. Depois, embora a
dissolução da AR não arraste consigo a demissão do Governo, é certo que
este se tornou Governo cessante, terminando o seu mandato com a tomada de posse
da nova AR após eleições. Por isso, não é politicamente admissível que Governo
à beira do fim crie nova despesa pública para cativar eleitorado, encargo que
recairá sobre o Governo que lhe suceder na elaboração de novo OE. Se o Governo
fosse por aí, arranjaria motivo para justificado veto presidencial.
Por fim, é de referir que o PS terá de responder até às eleições (quanto mais cedo, melhor) à questão se, caso as eleições não alterem substancialmente o atual quadro
parlamentar (como deixam entender as sondagens e pensava há
tempos o PR), insistirá na fórmula de Governo encontrada em 2015, tornando-se de novo
refém do BE e do PCP quanto à duração do mandato (os alegados
responsáveis pela interrupção do mesmo), ou optará por alianças de geometria variável com outros partidos,
conforme os temas em causa, incluindo quanto ao OE, como era tradicional nos
governos minoritários do PS. A resposta
antecipada a esta questão pode ser importante para os próprios resultados
eleitorais do PS.
Na área
socialista há defensores de que o PS integra o mesmo campo político que o PCP e
o BE, ou seja, a esquerda, com a qual deve governar, em oposição ao campo da
direita, liderado pelo PSD. Porém, em 2015, prevalecia no PS o
entendimento de que havia três
campos políticos: a extrema-esquerda (BE e PCP), o centro-esquerda ou esquerda moderada (PS) e a direita (PSD e CDS-PP). O previsto crescimento substancial do Chega pode dar
lugar a um 4.º campo político, a extrema-direita Neste quadro político, reduzir
o espectro partidário à bipolarização entre Esquerda e Direita constitui
simplificação desatualizada da realidade política.
Se se
considera má solução uma coligação de governo ao centro, é de duvidar da lógica
de soluções que impliquem coligações à esquerda ou à direita onde é difícil
a convergência de posições. Por outro lado, fomentar a polarização PS versus PSD parece inviável.
Poderá ainda
o PS anunciar que só encara uma nova aliança
política à esquerda com base num compromisso assinado – que
provavelmente o próprio PR exigirá, ao invés do que não fez em 2019, e
como fez Cavaco Silva em 2015 –, segundo o qual não seria posto em causa nem o
rigor das finanças públicas nem a competitividade da economia, deixando ao BE e ao PCP “o ónus de
recusar essa fórmula governativa”. De igual modo, os demais partidos devem
dizer ao que vêm e definir as futuras políticas de alianças, a fim de que o
jogo fique bem claro.
Sem dramatismo excessivos, mas com toda a clarividência!
2021.11.06
– Louro de Carvalho
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