terça-feira, 16 de novembro de 2021

As (in)conclusões da COP26, a cimeira climática de Glasgow

 

Ao fim de duas semanas de conversações, sob a presidência do britânico Alok Sharma, no quadro da cimeira climática da ONU (COP26), que tiveram de ser estendidas por mais um dia para equilibrar as demandas das nações, foi aprovado, no passado dia 13 de novembro, o texto da declaração final, após longas negociações entre líderes políticos e milhares de especialistas reunidos em Glasgow, na Escócia.

O texto foi aprovado com a proposta de última hora de Bhupender Yadav, Ministro do Ambiente da Índia, para suavizar o apelo ao fim do uso de carvão. O Ministro indiano solicitou a mudança de formulação dum parágrafo em que se defendia o fim progressivo do uso de carvão para produção de energia sem medidas de redução de emissões. Assim, a Índia logrou substituir o fim progressivo (“phase-out”) por uma redução progressiva (“phase down”) – proposta aceite com mostras de desagrado de várias delegações, como da Suíça, da UE (União Europeia) e de países mais vulneráveis às alterações climáticas. Não obstante, as negociações climáticas terminaram em acordo global que visa, pelo menos, manter vivas as esperanças de limitar o aquecimento global a 1,5ºC, e assim alimentar a hipótese de salvar o mundo da crise climática.

Nestes termos, mantém-se a ambição do aumento da temperatura a 1,5ºC, expressa no Acordo de Paris, como se considera necessário reduzir as emissões de dióxido de carbono em 45% até 2030, em relação a 2010. Por conseguinte, reconhece-se que limitar o aquecimento global a 1,5ºC exige “reduções rápidas, profundas e sustentadas das emissões globais de gases com efeito de estufa, incluindo a redução das emissões globais de dióxido de CO2 em 45% até 2030 em relação ao nível de 2010 e para zero por volta de meados do século, bem como reduções profundas de outros gases com efeito de estufa”.

O Pacto salienta a urgência de reforçar a ambição e a ação em relação à mitigação, adaptação e financiamento nesta “década crítica” para colmatar as lacunas na implementação dos objetivos do Acordo de Paris, pelo que, nele, se pede aos países em falta que apresentem até novembro de 2022 as suas contribuições para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa.

Segundo o documento aprovado, os presentes em Glasgow instaram também os países desenvolvidos a, “pelo menos, duplicarem” o financiamento climático (cerca de 80 mil milhões de euros) para a adaptação às alterações climáticas dos países mais pobres até 2025. Neste sentido, surge o apelo aos países mais ricos e instituições financeiras a que acelerem “o alinhamento das suas atividades de financiamento com os objetivos do Acordo de Paris”.

É de ter em conta que o compromisso de os países desenvolvidos reunirem 80 mil milhões de euros anuais para financiamento climático aos países menos desenvolvidos, ajudando-os a tomar medidas de mitigação de emissões poluentes e adaptação aos efeitos das alterações climáticas, foi assumido em 2009 e tinha como meta 2020. Todavia, como anota o texto em tom de lamento profundo, esse compromisso falhou rotundamente, pelo que se pede aos países para, ao menos, duplicarem as suas contribuições até 2025 em relação aos níveis de 2019, para se estabelecer um “equilíbrio entre mitigação e adaptação”.

Pela primeira vez se menciona numa declaração final duma COP a questão dos combustíveis fósseis. O projeto inicial requeria aos países a aceleração da eliminação gradual dos subsídios ao carvão e aos combustíveis fósseis, mas o texto final fica-se pela “intensificação dos esforços” para reduzir o carvão e eliminar os subsídios a combustíveis fósseis.

A COP26 aprovou o chamado livro de regras do Acordo de Paris, o que não fora possível em reuniões anteriores. São regras destinadas a ajudar a reduzir as emissões de dióxido de carbono (CO2), impedindo, por exemplo, a dupla contagem do carbono (por vendedor e comprador).

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Em termos práticos e em síntese, é de assinalar que China, Índia, EUA e UE comprometeram a promessa global de eliminação progressiva dos combustíveis fósseis; e as nações ricas recusaram apoiar financeiramente os mais pobres no enfrentamento da crise climática.

Na verdade, a conclusão da COP26 refletiu, em certa medida, as conclusões dos relatórios IPCC SR1.5 e IEA net zero, ao ordenar uma aceleração na ação climática com novos planos até 2022 no contexto do regime voluntário e não vinculante da ONU.

Todos os principais emissores – e cada um deles – serão obrigados a, em 12 meses, explicar na ONU como as suas políticas e planos para o total das suas economias estão alinhados com os objetivos de teto para o aquecimento global do Acordo de Paris.

Embora a promessa de eliminação progressiva dos combustíveis fósseis tenha sido enfraquecida por acordo de última hora entre a China (o maior consumidor mundial de combustíveis fósseis), os EUA (o maior produtor mundial de combustíveis fósseis), a UE e a Índia, ela consta do texto final. Apesar da mudança de “eliminação gradual” para “redução gradual”, pela primeira vez a principal causa da crise climática foi explicitada pelos 198 signatários do Acordo de Paris.

A COP26 não deu resposta aos países mais afetados pela crise climática atual, pois a UE e os EUA recusaram a criação dum fundo a usar pelos países mais pobres para o enfrentamento da crise. Tal como na pandemia de covid, não esteve presente em Glasgow a solidariedade global para salvar vidas. No entanto, é de observar que os próximos 18 meses serão cruciais para se determinar se os países tomarão efetivamente medidas alinhadas com o teto de aquecimento global de 1,5oC – o que implica reduzir as emissões em 45% até 2030.

Foi, enfim, completado o livro de regras do Acordo de Paris, o que leva à obrigação de todos os países de relatarem e detalharem até 2024 as emissões que formam a linha de base a partir da qual podem ser avaliadas as futuras reduções.

O acordo sobre as novas regras do mercado de carbono fecha algumas das lacunas escandalosas que haviam sido consideradas ao longo da discussão e cria um regime de comércio estruturado entre países, mas a linguagem não é tão clara que impeça as empresas de trapacearem.

Em 2025 os países desenvolvidos precisam de duplicar os seus fundos coletivos para adaptação à mudança do clima. Porém, isto não proporcionará os milhares de milhões necessários para o financiamento da adaptação de que os países mais pobres precisam. Em todo o caso, é uma grande melhoria no estado do financiamento climático atual: atualmente apenas cerca 1/4 do financiamento climático vai para a adaptação, sendo que a maioria dos recursos ainda é empregada na mitigação dos efeitos da crise do clima.

Acordos setoriais específicos sobre florestas, carvão, automóveis e metano, além dum acordo de 24 mil milhões de dólares para parar o financiamento de combustíveis fósseis no exterior, têm o potencial de fazer incursões significativas no corte de emissões, mas exigirão ratificação pelos governos nacionais em forma de políticas e planos que devem ser apresentados à COP27, que se realizará no Egito no próximo ano. Os principais bancos do mundo comprometeram-se a alinhar os seus financiamentos com a meta de emissão líquida zero nesta década e enfrentarão um exame minucioso sobre o modo como cumprirão as suas promessas ecológicas, cortando recursos aos combustíveis fósseis e outros ativos com alto teor de carbono. E, como anunciou António Guterres, Secretário-Geral da ONU, será criado, em 2022, em resposta aos temores de greenwash empresarial, um novo grupo de especialistas para avaliar os planos líquidos-zero corporativos. Uma questão chave será se esses planos impulsionam realmente a redução de emissões ou apenas fazem compensações.

Apesar da covid-19 e dos altos custos que impediram a participação de muitos grupos e ativistas e da sociedade civil, ainda diversos grupos se reuniram nesta COP, em todos ecoando forte onda de apoio à ação climática. Por exemplo, a 6 de novembro, mais de 100.000 pessoas saíram às ruas em Glasgow, numa das maiores manifestações já vistas na cidade, com grupos indígenas, profissionais de saúde, jovens, sindicatos, trabalhadores rurais e ativistas, pela justiça climática e contra o racismo ambiental. É óbvio que, a par do apoio à ação climática, houve a crítica ao difícil descolamento das políticas ambientais para travar as alterações climáticas, cujos efeitos sensíveis serão o sobreaquecimento, a subida do nível das águas oceânicas e o efeito de estufa.

Com efeito, ficaram por decidir matérias importantes e decisivas. Assim, queriam os países em desenvolvimento um plano claro para um mecanismo de financiamento de perdas e danos, o que não aconteceu, sendo este o foco na COP27, no Egito, em 2022. As nações africanas gastam em média até 10% do PIB por ano em adaptação à mudança do clima, enquanto os impactos podiam atingir 205 do PIB das nações pobres até 2050, conforme estimativa da Christian Aid.

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Seguem, em síntese os diversos itens do texto principal aprovado.

No âmbito das Finanças, os países desenvolvidos duplicaram o financiamento coletivo de adaptação desde os níveis de 2019 até 2025; exprime-se o “profundo pesar” pelo incumprimento da meta de 100 mil milhões de dólares por parte dos países desenvolvidos; urge que os países cumpram em pleno a meta de 100 mil milhões de dólares até 2025; parabeniza-se a continuação da operacionalização da Rede de Santiago, a qual será dotada de fundos para apoiar a assistência técnica, devendo os países contribuir para os fundos desta rede.

No âmbito da Ambição Climática, é enviado sinal para que todas as economias acelerem a transição dos combustíveis fósseis para energia renovável; exige-se novo programa de trabalho da ONU para aumentar os cortes de gases de efeitos estufa, reportando-o na COP27 em 2022; insta-se junto dos países que ainda não apresentaram novos planos climáticos para que os entreguem até 2022; pede-se a todos os países que aumentem as metas climáticas de acordo com 1,5-2oC até 2022; far-se-á a avaliação anual dos planos climáticos da ONU a partir de 2022;

No âmbito do Livro de Regras do Acordo de Paris, o texto, em relação aos mercados de carbono, fechou algumas das brechas mais escandalosas, mas não é suficientemente forte para impedir que empresas e países joguem de má-fé contra o sistema, tendo sido até vetada a taxa sobre algumas dessas transações que poderiam ajudar a financiar a adaptação dos mais pobres às mudanças climáticas; a nível da transparência, as novas regras representam uma nova era de escrutínio dos compromissos climáticos dos governos e garantirão que até 2024 todos possam avaliar o que os demais países estão a fazer, o que mostra que um elemento central do Acordo de Paris estará pronto e a funcionar até meados da década de 2020, de modo que doravante devemos ter informações mais regulares e mais robustas sobre o estado das emissões de gases de efeito estufa e o progresso feito na implementação das NDCs (Contribuições Nacionalmente Determinadas), mas foram vetadas propostas que defendiam que algumas Partes não utilizariam em seus relatórios as mesmas tabelas e formatos aplicados a todos, pelo que o texto inclui referências ao apoio aos países em desenvolvimento na tarefa de utilização desses instrumentos e mantém o prazo para a apresentação dos primeiros relatórios bienais de transparência no âmbito do Acordo de Paris até 2024; e, em termos de marcos temporais, as regras acordadas implicam a entrega de planos climáticos à ONU por todos os países, em ciclos de 5 anos, embora os analistas apontem para o uso da linguagem “incentivo” (o termo “incentiva” é mais fraco que o do rascunho anterior) ao uso de um cronograma comum para as NDCs a partir de 2025 (com os países apresentando NDCs para 2035 em 2025, NDCs para 2040 em 2030, etc.).

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Registam os observadores que, além de tudo isto, houve um tsunami de acordos em Glasgow, mas nem todos têm qualidade. Segundo cálculos do Climate Action Tracker, os acordos de metano, carvão, florestas e transporte contêm ações adicionais que fechariam em 9% a lacuna de emissões para o caminho de 1,5oC (o equivalente a 2,2 GtCO2e). Estes acordos paralelos, segundo o relatório do think tank Sistemiq divulgado durante a COP26, chegam no momento de transição que está em andamento para que não haja mais motivos significativos para investir em novas infraestruturas intensivas em carbono. Todos os principais setores da economia global são hoje capazes de desenvolver soluções ecológicas de custo competitivo até 2030, o que significa que deve ser questionado seriamente o fundamento económico para qualquer infraestrutura de carbono construída hoje. Para que a ação de cada setor da economia ajude a fechar a lacuna para o alcance da meta-limite de 1,5oC, os governos terão de implantar políticas claras e os signatários dos acordos devem ser responsabilizados para o cumprimento das promessas.

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Não sei se a COP26 responde ao apelo da mensagem papal quanto à subsistência da “vontade política de destinar com honestidade, responsabilidade e coragem mais recursos humanos, financeiros e tecnológicos para mitigar os efeitos negativos das mudanças climáticas e para ajudar as populações mais pobres e vulneráveis, que mais sofrem por causa delas”.

Dizia Francisco a Sharma que só podemos alcançar os objetivos (“ambiciosos, mas inadiáveis”) do Acordo de Paris, se agirmos de maneira coordenada e responsável”, pelo que a COP26 devia “contribuir ativamente para esta construção conscienciosa dum futuro onde os comportamentos diários e os investimentos económico-financeiros possam verdadeiramente salvaguardar as condições para uma vida digna da humanidade de hoje e de amanhã num planeta saudável”.

Recordou o Pontífice que a Santa Sé adotou uma estratégia para atingir a emissão líquida zero  em dois planos: o compromisso do Estado da Cidade do Vaticano em atingir o objetivo até 2050; e o compromisso da Santa Sé em promover a educação para a ecologia integral, consciente de que as medidas políticas, técnicas e operacionais devem ser combinadas com um processo educativo que, também e especialmente entre os jovens, promova novos estilos de vida e encoraje um modelo cultural de desenvolvimento e sustentabilidade centrado na fraternidade e na aliança entre o ser humano e o ambiente natural. E evocou o Apelo conjunto de vários líderes religiosos e cientistas, a 4 de outubro, em que se pôde sentir “uma forte convergência de todos num compromisso diante da necessidade urgente de iniciar uma mudança de rota capaz de passar com decisão e convicção da ‘cultura do descarte’, predominante na nossa sociedade, para uma ‘cultura do cuidado” da nossa casa comum e daqueles que nela vivem ou viverão”. Com efeito, no dizer de Francisco, “as feridas provocadas à humanidade pela pandemia de covid-19 e pelo problema das mudanças climáticas são comparáveis às derivantes de um conflito global”, sendo hoje “necessário que toda a comunidade internacional dê prioridade à atuação de ações colegiais, solidários e clarividentes”.

Convicto de que “precisamos de esperança e coragem”, pois “a humanidade dispõe dos meios para enfrentar esta transformação, que exige uma verdadeira conversão, tanto individual como comunitária, e uma decidida vontade de empreender este caminho”, o Papa sublinhou que se trata da “transição para um modelo de desenvolvimento mais integral e integrador, baseado na solidariedade e na responsabilidade, uma transição durante a qual será preciso considerar atentamente também os efeitos que ela terá no mundo do trabalho”, pelo que é de “prestar particular atenção às populações mais vulneráveis, em relação às quais amadureceu uma “dívida ecológica”, ligada tanto a desequilíbrios comerciais com consequências ambientais, como à utilização desproporcionada dos recursos naturais, próprios e de outros países”.

E o Papa, verificando que “estamos longe de alcançar os objetivos desejados para combater as mudanças climáticas”, disse não podermos esperar mais tempo, pois “já são demasiados os rostos humanos que sofrem devido a esta crise climática” e, além dos seus impactos cada vez mais frequentes e intensos na vida quotidiana de inúmeras pessoas (sobretudo as mais vulneráveis), ela se tornou “uma crise dos direitos das crianças e que, num futuro próximo, os migrantes ambientais serão mais numerosos que os refugiados por causa dos conflitos”. Por isso, no dizer do Papa, é “preciso agir com urgência, coragem e responsabilidade” e “preparar um futuro no qual a humanidade seja capaz de cuidar de si própria e da natureza”, pois os jovens, que “pedem com insistência que ajamos, não terão um planeta diferente do que lhes deixamos, do que poderão receber em virtude das nossas escolhas concretas de hoje” e é este “o momento da decisão, que lhes dê motivos de confiança no futuro”.

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Enfim, os decisores têm muita dificuldade em desprenderem-se dos interesses nacionais e em estimularem a investigação por forma a encontrarem-se recursos alternativos a preços acessíveis. Por isso, marca-se mais passo do que se avança na marcha.

2021.11.16 – Louro de Carvalho

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