Em
tempo, o PSD apresentou à Assembleia da República (AR) um projeto de lei para
transferir para a cidade de Coimbra o Tribunal Constitucional (TC) e o Supremo Tribunal Administrativo
(STA), bem como a Entidade das Contas
e Financiamentos Políticos (ECFP).
Em
sede de discussão na generalidade o diploma foi aprovado por uma maioria que
ficou longe de satisfazer o requisito constitucional para que viesse a
transformar-se em lei, uma vez que, tratando-se de uma lei orgânica, exigia-se,
na votação final global, o voto favorável da maioria absoluta dos deputados em
efetividade de funções. Na verdade, a abstenção dos grupos parlamentares do PS,
do BE e do PCP garantiu a aprovação na generalidade do projeto de lei do PSD,
que a esquerda associava às eleições autárquicas de Coimbra.
Entretanto,
em sede de discussão na especialidade, a Comissão de Assuntos Constitucionais,
Direitos, Liberdades e Garantias aprovou, no dia 3, o projeto do PSD para a
transferência do TC e do STA para a cidade de Coimbra, com os votos a favor dos
socialdemocratas e dos bloquistas (estes passaram da
abstenção para voto a favor).
Já os artigos que estipulavam a transferência da ECFP foram rejeitados com o
voto contra do PS.
O
projeto do PSD, que foi apresentado em período eleitoral autárquico, viu assim
luz verde, com o BE a justificar a mudança de voto pela “mudança de contexto”.
O deputado José Manuel Pureza justificou que “o projeto tinha um cunho
eleitoral e a abstenção foi uma crítica a esse timing”. Porém, ultrapassadas as autárquicas, o BE
entende que “faz sentido dar os passos legislativos” para esta mudança. Porém,
o PS manteve a posição do debate inicial, com o deputado Pedro Delgado Alves a
dizer que as críticas iniciais não tiveram alterações. Os socialistas pediam a
existência de normas transitórias e de planos para esta transferência. Com efeito,
o projeto não vinha sustentado num “levantamento das consequências práticas da
transferência da sede”, nem outrossim vinha dotado de “calendário,
identificação das sedes, gestão da transferência de pessoas ou de recrutamento”.
Por isso, o PS disse não ter “conforto suficiente para votar a favor”.
Apesar
desta viabilização, na discussão na especialidade, aliás como já o fora na
discussão na generalidade, porque a mudança de lei do TC assume um caráter de
alteração de lei orgânica, o projeto de lei não tinha pernas para andar, pois,
nos termos do n.º 5 do art.º 168.º, “as leis orgânicas carecem de aprovação, na
votação final global, por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções.
Por outro lado, a mudança da sede do STA, por alterar o art.º 146.º da Lei da Organização
do Sistema Judiciário (estabelece que a sede do STA é em
Lisboa) e por
integrar o mesmo projeto de lei estava sujeita a tal requisito, a menos que os
deputados subscritores do projeto tivessem autonomizado a matéria em outro
projeto. Quer isto dizer que, para garantir a aprovação final, o projeto do PSD
teria que recolher pelo menos 116 votos. Com os votos dos socialdemocratas e do
BE ficam a faltar 18 votos, mas aqui podiam entrar os 5 do CDS-PP, o do
Iniciativa Liberal e alguns do PS que já na votação na generalidade votaram a
favor do projeto. Ainda neste projeto do PSD, o PS votou contra a transferência
da ECFP, que foi assim rejeitada. O PS aduziu que, tendo a “esmagadora maioria
dos partidos sede em Lisboa não há vantagens práticas nesta transferência”,
chumbando este ponto em especifico e deixando apenas em aberto a mudança do TC
e do STA. E o PCP manteve na comissão parlamentar o sentido de voto do debate
na generalidade, voltando a abster-se.
Como
era de prever, na votação final global
realizada, neste dia 5, na AR, o diploma do PSD para a transferência do TC e do
STA para Coimbra teve o apoio de 109 deputados, num total de 226 deputados
votantes, tendo-se registado 108 abstenções e 9 votos contra. Dos 230 deputados
eram necessários 116 votos favoráveis. Os 109 votos a favor do projeto socialdemocrata
vieram das bancadas do PSD, Bloco de Esquerda, CDS-PP e de João Cotrim
Figueiredo da Iniciativa Liberal, assim como de 7 deputados do PS, entre eles
os eleitos por Coimbra, Ascenso Simões e Pedro Bacelar de Vasconcelos. As 108
abstenções partiram do PCP, do PEV, da maioria dos deputados do PS e das
deputadas não inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues. Votaram
contra a transferência destes dois tribunais para Coimbra o PAN, André Ventura
do Chega e 4 deputados do PS: Isabel Moreira, Jorge Lacão, Capoulas Santos e
Fernando Anastácio.
Assim, o TC, o STA e a ECFP permanecerão em Lisboa.
Perante este facto, o presidente do PSD, acusando o PS
de contradição e “hipocrisia” por impedir a transferência dos preditos
tribunais superiores através da sua abstenção na votação final na AR, disse aos
jornalistas no Parlamento, depois de se ter realizado esta votação:
“Lamento a votação que tivemos agora. Tal como
tive oportunidade de dizer na campanha autárquica, quando o PS viabilizou o
diploma na generalidade, alertei logo que era uma votação habilidosa. Com o
voto de abstenção, o PS sabia que não deixaria passar o diploma.”.
O líder do PSD considerou que, para todos os que querem “um Portugal diferente, mais equilibrado, menos centralizado, houve hoje
uma derrota pesada”, numa proposta “tão simples” como a
transferência destes tribunais para Coimbra. E, observando que o PSD e ele próprio
fizeram “tudo
o que era possível”, disse:
“Era o que estava à espera do PS:
há uma completa contradição entre o que dizem e o que fazem. O que dizem é descentralização
e desconcentração; o que fazem é o que vimos aqui.”.
Questionado sobre os argumentos do PS na base da sua
abstenção, a falta de “um levantamento exaustivo”
das “consequências práticas da transferência de sede” ou de um “calendário que
concretizasse essa transferência”, Rui Rio classificou-as como “desculpas de
mau pagador”. Com efeito, segundo Rio, “é o costume, a hipocrisia reinante”, pois
“este diploma está cá há mais de um ano”; e, como “ninguém pôs no diploma que o
tribunal muda nos próximos 15 dias”, era de ter em conta que “tudo é ajustável”,
mas “não há é vontade política do PS e da maioria da Assembleia, não há vontade
política de fazerem aquilo que dizem”.
Por seu turno, o PS,
pela voz da deputada Constança Urbano de Sousa, disse ter-se mostrado disponível para
apreciar este diploma à luz de estudos que fossem apresentados que nos
indicassem quais os custos-benefícios e as consequências práticas de tal
transferência”, pelo que a sua abstenção foi um exercício de coerência. Efetivamente,
a deputada, em declarações aos jornalistas no Parlamento, quis responder às críticas
feitas antes pelo presidente do PSD, que acusou o PS de contradição e “hipocrisia”
por impedir a transferência do TC e do STA de Lisboa para Coimbra, através da abstenção
na votação final global. Assim, defendeu a este respeito:
“Eu gostaria apenas de recordar o seguinte:
este projeto de lei já está nesta Assembleia há mais de um ano, nunca foi
acompanhado de estudos e foi agendado de forma súbita em cima das eleições
autárquicas. Na altura, como agora, o PS mostrou-se disponível para apreciar
este diploma à luz de estudos que fossem apresentados que nos indicassem quais
os custos benefícios e as consequências práticas de tal transferência.”.
Constança Urbano de Sousa sustentou que “não se trata de descentralização”, mas de transferir “a sede de instituições com implicações
bastante significativas na vida e no quotidiano dessas instituições: que têm
funcionários, que têm pessoas que trabalham há anos nessas instituições e,
portanto, isso tem que ser feito com a devida ponderação e sobretudo com
estudos”. E, como não existiram “estudos que permitissem a posição nem
que sim nem que não, então o PS, tal como na generalidade, absteve-se na especialidade
e na final global”, o que não configura “um exercício de hipocrisia”, mas apenas
“um exercício de coerência”.
Questionada sobre se o PS não terá dado uma ideia errada ao deixar o
diploma passar à especialidade perto das últimas eleições autárquicas, a
deputada respondeu que “quem fez o
agendamento em cima das eleições autárquicas foi o PSD e não o PS”. E sustentou
que “na discussão na generalidade, o que
dissemos foi que não havia estudos e ficámos à espera que esses estudos
pudessem ser trazidos durante a especialidade”.
***
Já em tempo me pronunciei sobre a inocuidade desta medida política. Se não
fosse o número de funcionários envolvidos, estes dois tribunais – e mesmo o STJ
(Supremo Tribunal de Justiça) e o TdC (TdC) – tanto poderiam funcional em Lisboa como em qualquer outra cidade do país,
desde que haja estruturas físicas de acolhimento para tais instituições, o que
não envolveria qualquer desprestígio para as instituições. Nem a distância corográfica
dos outros órgãos do poder político seria hoje significativa.
Também essas transferências não envolvem qualquer forma de descentralização
nem de desconcentração de competências ou de serviços. O único tribunal
superior que pode funcionar com alguma descentralização é o TdC (cf CRP, art.º 214.º, n.º 3 e n.º 4).
Justificar, para a cidade de Coimbra, a sua centralidade e o prestígio da
sua escola de Direito valeria para a instalação ali de todos os tribunais
superiores e mesmo outros órgãos de soberania, como a AR, o Governo e o Presidente
da República. Veja-se o STA estaria entre o Tribunal Central Administrativo do
Sul, sediado em Lisboa e o Tribunal Central Administrativo do Norte, sediado no
Porto; e o STJ estaria com o Tribunal da Relação em Coimbra, mas entre os
tribunais da relação de Évora e Lisboa, a sul, e os tribunais da relação de Guimarães
e do Porto a norte.
Porém, embora a Universidade de Coimbra seja considerada a mais antiga do
país (é de não esquecer que ela foi criada em Lisboa), hoje o peso do estudo do
Direito está bem repartido por Coimbra, Lisboa, Porto e Braga – só para falar de
universidades públicas, mas sem esquecer o peso das escolas de Direito da UCP (Universidade Católica Portuguesa) em Lisboa e no Porto.
Quanto ao processo legislativo sobre a matéria em referência, sabendo-se já
que era necessária a referida maioria constitucional para que o projeto do PSD
se transformasse em lei, ou o partido apresentava o estudo requerido pelo PS ou
este votaria contra. Como alternativa, haveria recurso à negociação entre os dois
partidos para a consecução dos votos favoráveis da maioria dos deputados em
efetividade de funções. Por isso, o que se passou foi brincadeira parlamentar,
perda de tempo ou discussão do oportunamente inútil.
Não tem razão, a meu ver, o PSD em insistir num projeto por que não lutou
com o mínimo de eficiência, nem o PS ao abster-se porque, ao deixar passar para
fases seguintes o diploma através da abstenção, fez com que a AR perdesse tempo
em matéria que sabia não vingar. De resto, a abstenção em matéria que configure
lei orgânica ou lei que tenha de resultar de voto favorável da maioria de dois
terços dos deputados presentes, desde que essa corresponda, pelo menos, à maioria
dos deputados em efetividade de funções, é postura inútil. E só há duas hipóteses:
a retirada do projeto ou a negociação. O mais será brincar com o povo, que os
deputados representam e que lhes paga para isso, não para se entreterem à custa
da cáfila que paga.
2021.11.05
– Louro de Carvalho
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