quarta-feira, 3 de novembro de 2021

“Tu que passas, pensa, dos teus passos, no último passo”

 

É um dos recados que o Papa Francisco nos deixa na homilia da Missa pela Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos, a 2 de novembro, no Cemitério Militar de França, em Roma.

Como explicitou, o breve discurso homilético da celebração inspirou-se numa inscrição que viu à porta dum cemitério: “Tu que passas, pensa nos teus passos, e dos teus passos, pensa no último passo”. E, atentando no verbo “passar” e no nome gramatical “passo” e “passos”, assumiu que “a vida é um caminho” e que “todos nós estamos a caminho”.

Porém, advertiu que não é dum passeio que se trata, nem dum labirinto. Com efeito, não andamos em inútil diversão neste mundo, mas caminhamos com o estatuto de peregrinos; não andamos perdidos na confusão do labirinto, nem nos metemos em qualquer beco sem saída. Ao invés, nós estamos em saída para os irmãos e com direção permanente e final para Deus.  

Depois, avisando que, no caminho, passamos diante de numerosos acontecimentos históricos, perante muitas situações difíceis”, incluindo cemitérios, o Papa exorta a que nos detenhamos na reflexão sobre a nossa caminhada e pensemos no momento do último passo neste mundo, passo que nos catapulta para a eternidade – obviamente sem clangor e luto, mas em nome da verdade, sendo importante que “aquele último passo nos encontre a caminho”.

Nesta ordem de ideias reflexivas, Francisco recorda as pessoas que já deram o último passo, nomeadamente as que morreram na guerra, chamadas a defender a pátria, valores, ideais e até “situações políticas tristes e lamentáveis”. Enfim, são “as vítimas da guerra, que devora os filhos da pátria – dumas sabe-se o nome, enquanto de outras nem sequer o nome se conhece. Porém, como diz o Pontífice, “no coração de Deus está o nome de todos nós” e “todos aqueles que se foram de boa vontade, chamados pela pátria para a defender, estão com o Senhor”.

Não obstante, Bergoglio interpela-nos a todos nós, que estamos a caminho, sobre “se lutamos o suficiente para que não haja guerras” e “para que as economias dos países não sejam fortificadas pela indústria do armamento”. Por isso, na ótica de Francisco, estas sepulturas são um grito pela paz: “Parai, irmãos e irmãs, parai! Parai, fabricantes de armas, parai!”.

***

E, na perspetiva do caminho, tão cara a este Sumo Pontífice, surgiu, neste dia 3 de novembro, na audiência geral de quarta-feira, na Sala Paulo VI, a 14.ª Catequese sobre a Carta aos Gálatas, sob o título “Caminhar segundo o Espírito”.

Verificando que Paulo exorta os cristãos a caminhar segundo o Espírito Santo (cf Gl 5,16.25), Francisco assegura que este é um estilo: caminhar segundo o Espírito Santo. E, digo eu, se assumirmos este modo de viver e nos deixarmos guiar pelo Espírito Santo, não nos ateremos ao passeio de entretenimento inútil, nem ficaremos perdidos na trama labiríntica da vida, mas sentiremos sempre a saborosa companhia do Senhor.  

De facto, crer em Jesus implica segui-Lo, ir atrás d’Ele no seu caminho, como fizeram os primeiros discípulos e como fez o Cireneu, o que leva a evitar o caminho oposto, o do egoísmo, o da procura do próprio interesse, a que o Apóstolo chama “desejo da carne(Gl 5,16). E o Espírito é o guia neste caminho pela vereda de Cristo, caminho maravilhoso, que se inicia no Batismo, e cansativo, que dura a vida inteira.

Caminhar segundo o Espírito” indica ação, movimento, dinamismo que impede de parar nas primeiras dificuldades”, antes induz a confiança na “força que vem do alto”. Percorrer este caminho dá ao cristão uma visão positiva da vida, apesar de o mal continuar presente no mundo e não faltarem os impulsos negativos do egoísmo e orgulho. E leva a crer que “Deus é sempre mais forte do que a nossa resistência e maior do que os nossos pecados”.

Ao exortar os Gálatas a seguir este caminho, o Apóstolo põe-se ao nível deles, prescinde do imperativo “caminhai” e, em “enalláx prosôpou(sente a exortação necessária também para si) usa o “nós” (no indicativo) “caminhamos segundo o Espírito” (Gl 5,25). Assim, na ótica de Paulo, caminhamos em sintonia guiados pelo Espírito Santo. E, embora saiba que Jesus vive nele, está convicto de que ainda não atingiu a meta. Por isso, não se põe acima da comunidade: como devem fazer os pastores, “põe-se no meio, a caminho com todos, para dar exemplo concreto do modo como é necessário obedecer a Deus, correspondendo cada vez mais e melhor à guia do Espírito”. O líder não se coloca sobranceiro aos demais, não os apouca. Insta pela palavra e pelo exemplo, mas é solidário, sabe caminhar com eles e percebe-os.

Depois, o Pontífice adverte que este “caminhar segundo o Espírito” não é mera ação individual: diz respeito à comunidade como um todo. Cá está o subtexto da sinodalidade da Igreja, constitutivo do ser da comunidade eclesial, tecla em que bate insistentemente este Papa.

De facto, construir a comunidade como indicado pelo Apóstolo entusiasma e desafia. Os “desejos da carne”, que todos nós temos (inveja, preconceito, hipocrisia, ressentimento) continuam a sentir-se. E recorrer à rigidez do preceito parecerá óbvio, mas desvia do caminho da liberdade. Assim, em vez de subirmos ao cume, voltaríamos para baixo. Na verdade, seguir o caminho do Espírito postula dar lugar à graça e à caridade de Deus, o que requer ação consciente e livre.

Após ter falado em tom severo, Paulo convida os Gálatas a ocuparem-se das dificuldades uns dos outros e a usarem de mansidão para com alguém que tenha errado. Diz o Apóstolo:

Se alguém for surpreendido nalguma falta, vós, que sois animados pelo Espírito, admoestai-o com espírito de mansidão; e tu, tem cuidado ti mesmo, para não caíres também tu em tentação. Carregai os fardos uns dos outros.” (Gl 6,1-2).

Atitude diferente da tagarelice, que não é segundo o Espírito. Segundo o Espírito, diz o Papa, é ter “doçura com o irmão para o corrigir e vigiar sobre nós mesmos com humildade, para que não caiamos naqueles pecados”. E, ao sermos tentados a julgar mal os outros, devemos primeiro refletir sobre a nossa fragilidade, sendo bom questionarmo-nos sobre “o que nos motiva a corrigir um irmão ou uma irmã e se não somos, de algum modo, corresponsáveis pelo seu erro”.

Na verdade, como assume o Papa, o Espírito Santo dá-nos a graça da mansidão e impele-nos à solidariedade, a carregar os fardos dos outros. E são muitos os que há na vida – a doença, a falta de trabalho, a solidão, a dor... – que exigem a proximidade e o amor dos irmãos.

E, apoiado nas recomendações de Santo Agostinho, Francisco adota como regra suprema da correção fraterna o amor, ou seja, “querer o bem dos nossos irmãos e irmãs”. E o percurso é: “tolerar os problemas dos outros, os defeitos dos outros em silêncio na oração e, depois, encontrar a forma correta de os ajudar a corrigir-se”. Dito de outro modo: isto requer “mansidão, paciência, oração, proximidade”. E daqui resulta a alegria de caminhar pelo Espírito Santo em regime de verdadeira sinodalidade peregrinacional.

***

Voltando à linha do discurso homilético papal de 2 de novembro, é de assumir que honrar a memória dos que nos precederam na partida para o seio do Pai é prerrogativa comum a todos os seres humanos e povos, que o fazem em conformidade com as respetivas categorias mentais e culturais. Porém, quem radica a vida pessoal e comunitária na fé duma Igreja que peregrina caminhando com rumo certo e seguro, faz dos momentos de evocação dos mortos expressões da certeza viva de que aqueles irmãos que partiram antes de nós estão no “eterno descanso” por que almejaram e realizam a inspirada profecia de Job, que sabe que o seu redentor vive e prevalecerá, por fim, sobre o pó da terra”. E garante: Eu mesmo O verei, os meus olhos e não outros o hão de contemplar!” (cf Jb 19,25.27).

Por sua vez, Paulo na Carta aos Romanos, assegura que fomos justificados pelo sangue de Cristo, que Ele nos reconciliou com o Pai pela sua morte, pelo que, no termo desta caminhada de peregrinos solidários, teremos a vida que não tem fim, o que nos dá consolação e glória (cf Rm 5,5-11). E, na versão do 4.º Evangelho (cf Jo 6,37-40), Jesus veio ao mundo para fazer a vontade do Pai, que é: todo aquele que vê o Filho e Nele crê tenha a vida eterna”; e Filho o ressuscitará no último dia. De facto, acima da lucidez e vontade dos homens, avulta o desígnio e a vontade de Deus, segundo a qual o Filho não há de perder nada do que lhe foi entregue pelo Pai.

Assim, costumamos rezar pelos que agora dormem o sono da paz enquanto aguardam eles a ressurreição no fim dos tempos e nós anelamos pela nova e fulgente alvorada plasmada nos pascais “aleluias” que entoamos mesmo aquando da morte dos nossos parentes, amigos, benfeitores e demais concidadãos deste mundo e do céu. É a antecipação da madrugada da ressurreição final.

Ademais, como já cria Judas Macabeu (cf 2 Mac 12,43-46), está reservada para os que morrem piedosamente enorme e indizível recompensa, sendo por isso santo e piedoso pensamento orar pelos defuntos para que sejam definitivamente libertos de suas culpas.  

Entretanto, é de registar que o 2 de novembro, no momento celebrativo e de sufrágio pelos mortos, nos deixa o apelo à revisão da nossa vida de seres humanos e comunidade, aliás como assegura o Santo Padre a ver como está a nossa fé e a nossa confiança e esperança em Deus, a nossa luta pela paz e pela justiça, a nossa solidariedade para com os outros.

De facto, ao nível da esperança, é de ter em conta o que Paulo diz na 2.ª Carta aos Coríntios (cf 2 Cor 5,1.6-10), isto é, quando esta morada, que é o nosso corpo, for desfeita, receberemos nos Céus outra morada, que é eterna, porque obra de Deus, não dos homens. Portanto, devemos empenhar-nos em ser agradáveis a Deus na postura connosco próprios, em boa consciência, e na relação com os outros na linha da solidariedade, justiça e caridade, como convém à nossa condição de irmãos, postura que, aliada à generosidade de Deus, alimenta fé, que é a raiz da esperança num futuro risonho e na vida eterna. Na verdade, como garantiu a Marta (cf Jo 11,21-27), Jesus é a ressurreição e a vida; e quem acredita n’ Ele viverá. Por isso, somos instados a, tal como Marta, confessar que Ele é “o Messias, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo”. 

É na fé e na esperança que, em memória por quem partiu e nos interpela, fazemos a nossa oração, partilhamos os bens que a vida nos proporciona e vivemos a Eucaristia partilhando do Corpo e Sangue do Senhor, alimento de quem peregrina na fé e na esperança no seio da viva comunidade dos crentes (cf Jo 6,51-58), concretizando aqui e agora a visão de Isaías (cf Is 25,6a.7-9): o Senhor, em quem pusemos toda a confiança, serve a todos os povos um banquete de manjares suculentos. Por isso, apesar da saudade, irrompe alegria por via da salvação. Com efeito, todos ressuscitaremos – ninguém ficará para trás ou à margem –, como garante na 1.ª Carta aos Tessalonicenses (cf 1Ts 4,13-18) Paulo, o apóstolo que pretende que nos confortemos mutuamente com estas palavras da fé, com os pés firmes na Terra e o olhar levantado para o Alto.

2021.11.03 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário