segunda-feira, 22 de novembro de 2021

O reino de Cristo não é deste mundo, mas já está entre nós

 

 

No 34.º domingo do Tempo Comum, celebramos a Solenidade de Jesus Cristo, Rei e Senhor do Universo. Sob a denominação de “Festa de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei”, foi instituída a 11 de dezembro de 1925, com a Carta Encíclica Quas Primas do Papa Pio XI, homem de ação, que fundara a Ação Católica em 1922, sendo que a Festa, a celebrar no último domingo de outubro visava promover, em tempos sombrios e turvos como os hodiernos, a militância católica e ajudar a sociedade a revestir-se dos valores cristãos. E a reorganização da Liturgia no pós-Concílio passou a Festa para o último domingo do Ano Litúrgico, alterando-lhe a denominação para “Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo”.

A Palavra de Deus proclamada neste 34.º e último domingo do ano litúrgico (Ano B) leva-nos a tomar consciência da realeza de Jesus, mas clarificando que tal realeza não pode ser entendida ao jeito dos reis deste mundo, mas segundo a lógica de Deus.

A 1.ª leitura (Dn 7,13-14) apresenta-nos o Deus que intervirá no mundo para eliminar a crueza e a opressão que marcam a história humana. Através dum “filho de homem” que surgirá “sobre as nuvens”, Deus devolverá à história a dimensão de humanidade, possibilitando que os homens sejam livres e vivam na paz e tranquilidade. Os cristãos veem neste filho de homem vitorioso o anúncio de Jesus, o rei supremo. O Livro de Daniel aparece na 1.ª metade do século II a.C., quando o rei selêucida Antíoco IV Epífanes tenta impor ao Povo de Deus a cultura grega, o que espoletou forte resistência pela insurreição armada, caso de Judas Macabeu e seus heroicos seguidores, e pelo combate com a palavra e escritos contra a prepotência dos reis helénicos.

O autor do Livro é um judeu fiel à cultura e aos valores religiosos dos antepassados, empenhado em defender a sua religião, apostado em mostrar aos concidadãos que a fidelidade aos valores tradicionais seria recompensada por Javé com a vitória sobre os inimigos.

Narrando a história de Daniel, judeu exilado na Babilónia, que mantém a fé em ambiente de adversidade, o autor humano do Livro pede aos concidadãos que não se deixem vencer pela perseguição e se mantenham fiéis à religião dos pais e garante-lhes que Deus está do lado do seu Povo recompensando a sua fidelidade à Lei e aos mandamentos. O trecho em referência integra a 2.ª parte do Livro (Dn 7,1-12,13). O recurso à figura da visão dá-nos uma leitura profética da história, cuja finalidade é transmitir a esperança aos crentes perseguidos por causa da fé.

Na 1.ª visão, surgem 4 grandes animais: o 1.º era semelhante a leão com asas de águia; o 2.º, a urso com costelas na boca; o 3.º, a leopardo alado com 4 cabeças; e o 4.º era um monstro horroroso com dentes de ferro (que tudo tritura, cospe e espezinha), aterrador e duma força excecional, tinha dez chifres e, depois, nasceu-lhe outro chifre mais pequeno e insolente que “tinha olhos como homem e boca que proferia palavras arrogantes”. Evocam a sucessão dos impérios humanos. O primeiro seria o império neobabilónico; o segundo, o império dos medos; o terceiro, o império persa; e o quarto, o império grego de Alexandre, do qual os reis selêucidas eram os herdeiros diretos. Os ditos dez chifres do 4.º animal serão os dez reis que se sucederam; e o chifre, mais pequeno que os outros, será Antíoco IV Epífanes, o perseguidor do Povo de Deus. Em paralelo, o Livro põe em cena “um ancião” de cabelos e vestes brancos “como a neve, sentado num trono de luz e chamas e servido “por milhares e dezenas de milhares”. O ancião decretou a morte do 11.º chifre e o fim do poderio dos 4 animais (Dn 7,9-12). E aqui se inicia a cena descrita no texto da 1.ª leitura de hoje: a entronização do Filho do Homem (Dn 7,13-14).

A visão descrita até agora amplia-se com o aparecimento de um filho de homem. Ao invés dos animais, que vêm do mar (reino do mal), o filho de homem surge “sobre as nuvens do céu”, tendo, portanto, origem transcendente. Vem de Deus, pertence ao mundo de Deus e recebe de Deus um reino com as dimensões do universo (“todos os povos e nações O serviram”) e poder não limitado pelo tempo, nem pela finitude dos reinos humanos (“o seu poder é eterno, não passará jamais; e o seu reino não será destruído”), não assente no poder da brutalidade, mas no poder manso do Amor (Dn 7,13-14).

Para os judeus, o filho de homem que virá instaurar o reino de Deus na terra é o Messias, o ungido, de Deus. A sua intervenção porá fim à perseguição dos justos e trará a vitória dos santos sobre as forças da morte. É esta a esperança que anima os corações dos crentes na época antecedente à chegada de Jesus. Jesus aplicará a Si a imagem do “filho de homem que vem sobre as nuvens”. Interrogado pelo sumo-sacerdote, Jesus assume que é “o Messias, o Filho de Deus bendito”, o “Filho do Homem sentado à direita do Poder”, que virá “sobre as nuvens do céu” (Mc 14,61-62). A catequese cristã tomará esta imagem para vincar a glória de Cristo e o seu poder soberano sobre a história humana (cf At 7,55-56). E, para os cristãos, Cristo é este “filho de homem”, que libertará os santos das garras da opressão e instaurará o reino definitivo.

“O Senhor Reina” é a expressão de abertura do Salmo 93, com que se responde à 1.ª leitura, expressão usual no AT para dizer Deus na ação de reinar, ou seja, salvar, justificar, perdoar, criar. E é esta a missão do rei-pastor referido na Bíblia. No profundo sentido bíblico, diz Dom António Couto, “justificar e perdoar são ações que só Deus pode fazer, dado que transformar um pecador em justo é igual a criar ou recriar”. E, como a ação de criar é inerente ao ser divino, “o Novo Testamento transforma o ativo ‘Deus Reina’ no mais abstrato ‘Reino de Deus’.

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O Livro do Apocalipse (‘Apocalipse’ significa “manifestação de algo que está oculto), de que é retirado o trecho da 2.ª leitura (Ap 1,5-8), apresenta-se como revelação sobre “as coisas que brevemente devem acontecer” (Ap 1,1) e que João, exilado por causa da fé na ilha de Patmos (pequena ilha do Mar Egeu), tem por missão comunicar aos irmãos na fé.

É a fase final do reinado do imperador Domiciano (cerca do ano 95). As comunidades cristãs da Ásia Menor vivem a crise das heresias e do medo de dar testemunho da fé. Enquanto muitos seguidores de Jesus eram condenados e assassinados, outros, cheios de medo, abandonavam o Evangelho e passavam para o lado do império. Na comunidade dizia-se: “Senhor Jesus(“Kýrios Iêsoûs”); mas lá fora, quem mandava como senhor todo-poderoso era o imperador romano.

Assim, o objetivo do Apocalipse é levar os crentes a revitalizarem o compromisso com Jesus e a não perderem a esperança. Nestes termos, começa pelo apelo à conversão (Ap 1-3); depois, apresenta uma leitura profética da história humana, que atesta a vitória final de Deus e dos fiéis sobre as forças do mal (Ap 4-22). O recurso sistemático ao símbolo (como na literatura apocalíptica) torna estranho e difícil o livro, mas belo e interpelante. O texto em referência nesta solenidade apresenta-nos alguns dos primeiros versículos do Apocalipse. É uma introdução litúrgica, onde se apresenta o diálogo entre leitor e comunidade cristã reunida para escutar uma proclamação, sendo a comunidade instada a aceitar Cristo como o centro da história humana, a razão de ser da comunidade, a coordenada em torno da qual se estrutura e organiza a vida cristã.

O leitor mostra Jesus à comunidade reunida para celebrar o Senhor com três títulos cristológicos típicos da catequese da comunidade joânica: testemunha fiel, primogénito dos mortos, príncipe dos reis da terra. Ele é a “testemunha fiel” (“ho mártys ho pistós”), pois, com a vida, palavra, serviço, doação, amor e entrega até à morte, testemunhou, de forma perfeita, o que Deus quer dizer aos homens e revelou aos homens o rosto do Deus-amor. É o “primogénito dos mortos” (“ho prôtótokos tôn nekrôn”), pois foi o primeiro a vencer a morte e assim mostrou que quem vive nos caminhos de Deus não será vencido pela morte, mas se destina à vida. É o “príncipe dos reis da terra” (“ho árkhôn tôn basilléôn tês gês”), porque inaugurou nova forma de ser e novo reino, de vida e felicidade sem fim. Escutada a proclamação, a comunidade, grata, louva o seu Senhor:

Àquele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou do pecado e fez de nós um reino de sacerdotes para Deus seu Pai, a Ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amén.” (Ap 1,5b-6).

Os membros da comunidade cristã têm consciência de que a entrega de Jesus na cruz exprime o amor sem medida com que Ele ama todos os homens. E, porque nos ama, Jesus associou-nos à sua missão, tornando-nos sacerdotes que oferecem a Deus o culto das nossas próprias vidas. Por isso, a comunidade, consciente desta realidade, manifesta no culto o seu reconhecimento.

A predita liturgia prossegue com o leitor a recordar à comunidade que Jesus virá, entre as nuvens, ao encontro dos seus, cheio de poder e majestade, inaugurar nova era de vida e paz sem fim (imagem tirada do AT e associada às manifestações de Deus – vd Dn 7,13 – o “filho de homem” que aparece sobre as nuvens está associado à vitória de Deus sobre os reinos e os poderes do mundo).

Os crentes sabem que a última palavra nunca é dos maus e perseguidores, mas de Deus. Todos poderemos ver o coração trespassado de Cristo e tomaremos consciência de quanto Ele nos ama. Com efeito, a vitória de Cristo concretizar-se-á pelo amor, feito dom a todos, sem exceção. A comunidade manifesta a adesão a Cristo e às verdades proclamadas respondendo: “sim. Amén”. O predito leitor conclui a apresentação de Jesus, definindo-O como o princípio e o fim de todas as coisas (o “Alfa” e o “Ómega”, a primeira e a última letra do alfabeto grego), Aquele que é Senhor da História e que abarca a totalidade do tempo (“Aquele que é, que era e que há de vir”). E Os cristãos que participam nesta liturgia sabem que podem confiar incondicionalmente em Jesus, a referência fundamental da história humana, e, que são convidados a fazer de Jesus o centro das suas vidas.

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O Evangelho (Jo 18,33b-37) descreve uma cena do processo de Jesus diante de Pôncio Pilatos, o governador romano da Judeia. Para trás ficara o frente a frente de Jesus com os líderes judaicos, nomeadamente com Anás (sogro de Caifás, o sumo-sacerdote; Anás, tendo deixado o cargo de sumo-sacerdote, continuava personagem muito influente e terá sido ele a liderar o processo contra Jesus – cf Jo 18,12-14.19-24).

Pilatos governou a Judeia e a Samaria entre os anos 26 e 36. As informações de Flávio Josefo e de Fílon dão-no como governante duro e violento, obstinado e áspero, culpado de ordenar execuções de opositores sem processo legal. As queixas de excesso de crueldade apresentadas pelos samaritanos no ano 35 levaram Vitélio, legado romano na Síria, a enviá-lo a Roma a explicar-se ao imperador, o que resultou na perda do cargo. Ao invés, o 4.º Evangelho descreve-o como fraco, indeciso e volúvel, marioneta manobrada pelos líderes judaicos. Tal descrição – longe dos dados referidos pelos historiadores da época – deve ser uma tentativa de livrar os romanos de culpa no processo de Jesus. Aquando da escrita o 4.º Evangelho (cerca do ano 100), não era conveniente os cristãos acusarem Roma, afirmando a sua responsabilidade no processo que levou Jesus à crucifixão. Assim, os escritores cristãos preferiram branquear o papel do poder imperial e fazer recair sobre as autoridades judaicas a culpa pela condenação de Jesus.

O interrogatório de Jesus começa com a pergunta direta de Pilatos: “Tu és o Rei dos judeus?(s`y eî ho basileùs tôn Ioudaíôn;”: Jo 18,33). Aqui se revela qual a acusação feita pelas autoridades judaicas contra Jesus: a pretensão messiânica de restaurar o reino ideal de David e libertar Israel dos opressores. A acusação vê em Jesus um agitador político empenhado em mudar o mundo pela força, fundamentando as suas pretensões e ação no poder das armas e na autoridade militar. Porém, Jesus recusa esta vertente messiânica. A sua resposta orienta no genuíno sentido o seu messianismo. Assume-se como o Messias que Israel esperava e confirma a sua realeza (como dizes, sou rei – “s`y légeis hóti basileús eimí”), mas descarta parecença com os reis que Pilatos conhece.

Diz o Bispo de Lamego que os Judeus e Pilatos representam, neste episódio evangélico, os impérios envelhecidos, podres e caducos da violência e estupidez. Os 4 Evangelhos contêm a pergunta de Pilatos: “Tu és o rei dos Judeus?(Mt 27,11; Mc 15,2; Lc 23,3; Jo 18,33). Nos sinóticos, Jesus dá resposta breve: “Tu o dizes(“s`y légeis”: Mt 27,11; Mc 15,2; Lucas 23,3), para se remeter a silêncio habitado e teológico (Mt 27,12; Mc 15,4; Lc 23,9), ao jeito do Servo de Javé, Cordeiro levado ao matadouro, que não abriu a boca (Is 53,7). João, ao invés, apresenta longo diálogo entre Jesus e Pilatos, em que o ponto mais alto está no dizer de Jesus: “O meu reino não é deste mundo(“hê basileía hê emê ouk éstin ek toû kósmou toútou”: Jo 18,36). E explica Jesus que, se o seu reino fosse deste mundo, estariam, para o defenderem, as suas forças militares. Em vez disso, refere António Couto, “o seu Reino assenta num Amor novo e subversivo, que não pode deixar de amar a nossa violência até ao fim e ao fundo, sorvendo-lhe todo o veneno”.

De facto, os reis deste mundo apoiam-se na força das armas e impõem aos outros homens o seu domínio e autoridade, com base na prepotência e ambição, gerando opressão, injustiça e sofrimento. Jesus, em contraponto, é o prisioneiro indefeso, traído pelos amigos, ridicularizado pelos líderes judaicos, abandonado pelo povo, mas que veio ao encontro dos homens para os servir, obedecendo em tudo à vontade do Pai. A sua realeza é de outra ordem, da ordem de Deus, que toca os corações e que, em vez de produzir opressão e morte, produz vida e liberdade. Jesus é rei e messias, que nos propõe um mundo novo, assente numa lógica de amor, de doação, de entrega, de serviço.

A sua declaração causa estranheza a Pilatos, que não entende que um rei renuncie ao poder e à força e firme a sua realeza no amor e doação da própria vida. A expressão posta na boca de Pilatos “então, Tu és Rei(“oukoûn basileùs eî sí”: Jo 18,37) parece uma deixa de alguém para quem as declarações do interlocutor não são claras, conservando a porta aberta a ulterior explicação. Na sequência, Jesus confirma a sua realeza e define o sentido e o conteúdo do seu reinado.

A realeza de que Jesus está investido por Deus consiste em dar testemunho da verdade. No 4.º Evangelho, a verdade (“Alêtheia”) é a realidade de Deus e visualiza-se nos gestos, palavras e atitudes de Jesus e, sobretudo, no amor vivido até à dádiva da vida. A verdade é o amor total que Deus derrama sobre o homem para o levar à vida verdadeira. E opõe-se à mentira do egoísmo, do pecado, da injustiça, de tudo o que desfeia a vida do homem e o impede de alcançar a vida plena. Assim, a realeza de Jesus concretiza-se na luta contra o egoísmo e o pecado, que escravizam o homem, e consuma-se na proposição duma vida feita amor e entrega a Deus e aos irmãos – meta que não se obtém pela lógica de poder e força (só multiplica as cadeias de injustiça e violência), mas pelo amor, partilha, serviço em prol dos irmãos. É o reino a que Jesus preside e que propõe. A sua proposta provoca resposta livre do homem. Quem Lhe escuta a voz adere ao seu projeto e compromete-se a segui-Lo; renuncia ao egoísmo e faz da vida dom de amor a Deus e aos irmãos; integra a comunidade do Reino de Deus, que está em crescimento em nós.

2021.11.21- Louro de Carvalho

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