No
34.º domingo do Tempo Comum, celebramos a Solenidade de Jesus Cristo, Rei e
Senhor do Universo. Sob a denominação de “Festa de
Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei”, foi instituída a 11 de dezembro de 1925, com a
Carta Encíclica Quas Primas do Papa Pio XI, homem de ação, que fundara
a Ação Católica em 1922, sendo que a Festa, a celebrar no último domingo de outubro
visava promover, em tempos sombrios e turvos como os hodiernos, a militância
católica e ajudar a sociedade a revestir-se dos valores cristãos. E a reorganização
da Liturgia no pós-Concílio passou a Festa para o último domingo do Ano
Litúrgico, alterando-lhe a denominação para “Solenidade de Nosso Senhor Jesus
Cristo, Rei do Universo”.
A Palavra de Deus proclamada neste 34.º e último domingo do
ano litúrgico (Ano B) leva-nos a tomar consciência da
realeza de Jesus, mas clarificando que tal realeza não pode ser entendida ao
jeito dos reis deste mundo, mas segundo a lógica de Deus.
A
1.ª leitura (Dn 7,13-14)
apresenta-nos o Deus
que intervirá no mundo para eliminar a crueza e a opressão que marcam a
história humana. Através dum “filho de homem” que surgirá “sobre as nuvens”,
Deus devolverá à história a dimensão de humanidade, possibilitando que os homens
sejam livres e vivam na paz e tranquilidade. Os cristãos veem neste filho de
homem vitorioso o anúncio de Jesus, o rei supremo. O Livro de Daniel aparece na
1.ª metade do século II a.C., quando o rei selêucida Antíoco IV Epífanes tenta
impor ao Povo de Deus a cultura grega, o que espoletou forte resistência pela
insurreição armada, caso de Judas Macabeu e seus heroicos seguidores, e pelo
combate com a palavra e escritos contra a prepotência dos reis helénicos.
O autor do Livro é um judeu fiel à cultura e aos valores
religiosos dos antepassados, empenhado em defender a sua religião, apostado em
mostrar aos concidadãos que a fidelidade aos valores tradicionais seria recompensada
por Javé com a vitória sobre os inimigos.
Narrando a história de Daniel, judeu exilado na Babilónia,
que mantém a fé em ambiente de adversidade, o autor humano do Livro pede aos
concidadãos que não se deixem vencer pela perseguição e se mantenham fiéis à
religião dos pais e garante-lhes que Deus está do lado do seu Povo recompensando
a sua fidelidade à Lei e aos mandamentos. O trecho em referência integra a 2.ª
parte do Livro (Dn
7,1-12,13). O recurso à
figura da visão dá-nos uma leitura profética da história, cuja finalidade é
transmitir a esperança aos crentes perseguidos por causa da fé.
Na 1.ª visão, surgem 4 grandes animais: o 1.º era semelhante
a leão com asas de águia; o 2.º, a urso com costelas na boca; o 3.º, a leopardo
alado com 4 cabeças; e o 4.º era um monstro horroroso com dentes de ferro (que tudo tritura, cospe e espezinha), aterrador e duma força excecional, tinha
dez chifres e, depois, nasceu-lhe outro chifre mais pequeno e insolente que
“tinha olhos como homem e boca que proferia palavras arrogantes”. Evocam a
sucessão dos impérios humanos. O primeiro seria o império neobabilónico; o
segundo, o império dos medos; o terceiro, o império persa; e o quarto, o
império grego de Alexandre, do qual os reis selêucidas eram os herdeiros diretos.
Os ditos dez chifres do 4.º animal serão os dez reis que se sucederam; e o chifre,
mais pequeno que os outros, será Antíoco IV Epífanes, o perseguidor do Povo de
Deus. Em paralelo, o Livro põe em cena “um ancião” de cabelos e vestes brancos
“como a neve, sentado num trono de luz e chamas e servido “por milhares e
dezenas de milhares”. O ancião decretou a morte do 11.º chifre e o fim do poderio
dos 4 animais (Dn 7,9-12). E aqui se inicia a cena descrita no
texto da 1.ª leitura de hoje: a entronização do Filho do Homem (Dn 7,13-14).
A visão descrita até agora amplia-se com o aparecimento de um
filho de homem. Ao invés dos animais, que vêm do mar (reino do mal), o filho de homem surge “sobre as
nuvens do céu”, tendo, portanto, origem transcendente. Vem de Deus, pertence ao
mundo de Deus e recebe de Deus um reino com as dimensões do universo (“todos os povos e nações O serviram”) e poder não limitado pelo tempo, nem
pela finitude dos reinos humanos (“o seu poder é eterno, não passará jamais; e o seu reino não
será destruído”), não
assente no poder da brutalidade, mas no poder manso do Amor (Dn 7,13-14).
Para os judeus, o filho de homem que virá instaurar o reino
de Deus na terra é o Messias, o ungido, de Deus. A sua intervenção porá fim à perseguição
dos justos e trará a vitória dos santos sobre as forças da morte. É esta a esperança
que anima os corações dos crentes na época antecedente à chegada de Jesus. Jesus
aplicará a Si a imagem do “filho de homem que vem sobre as nuvens”. Interrogado
pelo sumo-sacerdote, Jesus assume que é “o Messias, o Filho de Deus bendito”, o
“Filho do Homem sentado à direita do Poder”, que virá “sobre as nuvens do céu” (Mc 14,61-62). A catequese cristã tomará esta
imagem para vincar a glória de Cristo e o seu poder soberano sobre a história
humana (cf At 7,55-56). E, para os cristãos, Cristo é este
“filho de homem”, que libertará os santos das garras da opressão e instaurará o
reino definitivo.
“O Senhor
Reina” é a expressão de abertura do Salmo 93, com que se responde à 1.ª
leitura, expressão usual no AT para dizer Deus na ação de reinar, ou seja,
salvar, justificar, perdoar, criar. E é esta a missão do rei-pastor referido na
Bíblia. No profundo sentido bíblico, diz Dom António Couto, “justificar e
perdoar são ações que só Deus pode fazer, dado que transformar um pecador em
justo é igual a criar ou recriar”. E, como a ação de criar é inerente ao ser
divino, “o Novo Testamento transforma o ativo ‘Deus Reina’ no mais abstrato
‘Reino de Deus’.
***
O Livro do Apocalipse (‘Apocalipse’ significa “manifestação de algo que está
oculto), de que é
retirado o trecho da 2.ª leitura (Ap 1,5-8), apresenta-se como revelação sobre
“as coisas que brevemente devem acontecer” (Ap 1,1) e que João, exilado por causa da fé na ilha de Patmos (pequena ilha do Mar Egeu), tem por missão comunicar aos irmãos
na fé.
É a fase final do reinado do imperador Domiciano (cerca do ano 95). As comunidades cristãs da Ásia
Menor vivem a crise das heresias e do medo de dar testemunho da fé. Enquanto muitos
seguidores de Jesus eram condenados e assassinados, outros, cheios de medo,
abandonavam o Evangelho e passavam para o lado do império. Na comunidade
dizia-se: “Senhor Jesus” (“Kýrios
Iêsoûs”); mas lá
fora, quem mandava como senhor todo-poderoso era o imperador romano.
Assim, o objetivo do Apocalipse é levar os crentes a
revitalizarem o compromisso com Jesus e a não perderem a esperança. Nestes
termos, começa pelo apelo à conversão (Ap 1-3); depois, apresenta uma leitura profética da história humana, que atesta a
vitória final de Deus e dos fiéis sobre as forças do mal (Ap 4-22). O recurso sistemático ao símbolo (como na literatura apocalíptica) torna estranho e difícil o livro, mas
belo e interpelante. O texto em referência nesta solenidade apresenta-nos
alguns dos primeiros versículos do Apocalipse. É uma introdução litúrgica, onde
se apresenta o diálogo entre leitor e comunidade cristã reunida para escutar
uma proclamação, sendo a comunidade instada a aceitar Cristo como o centro da
história humana, a razão de ser da comunidade, a coordenada em torno da qual se
estrutura e organiza a vida cristã.
O leitor mostra Jesus à comunidade reunida para celebrar o Senhor
com três títulos cristológicos típicos da catequese da comunidade joânica:
testemunha fiel, primogénito dos mortos, príncipe dos reis da terra. Ele é a
“testemunha fiel” (“ho mártys ho pistós”), pois, com a vida, palavra, serviço,
doação, amor e entrega até à morte, testemunhou, de forma perfeita, o que Deus
quer dizer aos homens e revelou aos homens o rosto do Deus-amor. É o “primogénito
dos mortos” (“ho prôtótokos tôn nekrôn”), pois foi o primeiro a vencer a
morte e assim mostrou que quem vive nos caminhos de Deus não será vencido pela
morte, mas se destina à vida. É o “príncipe dos reis da terra” (“ho
árkhôn tôn basilléôn tês gês”), porque inaugurou nova forma de ser e novo reino, de vida e
felicidade sem fim. Escutada a proclamação, a comunidade, grata, louva o seu
Senhor:
“Àquele que nos ama e pelo seu sangue nos
libertou do pecado e fez de nós um reino de sacerdotes para Deus seu Pai, a Ele
a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amén.” (Ap 1,5b-6).
Os membros da comunidade cristã têm consciência de que a
entrega de Jesus na cruz exprime o amor sem medida com que Ele ama todos os
homens. E, porque nos ama, Jesus associou-nos à sua missão, tornando-nos
sacerdotes que oferecem a Deus o culto das nossas próprias vidas. Por isso, a
comunidade, consciente desta realidade, manifesta no culto o seu
reconhecimento.
A predita liturgia prossegue com o leitor a recordar à
comunidade que Jesus virá, entre as nuvens, ao encontro dos seus, cheio de
poder e majestade, inaugurar nova era de vida e paz sem fim (imagem tirada do AT e associada às
manifestações de Deus – vd Dn 7,13 – o “filho de homem” que aparece sobre as
nuvens está associado à vitória de Deus sobre os reinos e os poderes do mundo).
Os crentes sabem que a última palavra nunca é dos maus e
perseguidores, mas de Deus. Todos poderemos ver o coração trespassado de Cristo
e tomaremos consciência de quanto Ele nos ama. Com efeito, a vitória de Cristo
concretizar-se-á pelo amor, feito dom a todos, sem exceção. A comunidade
manifesta a adesão a Cristo e às verdades proclamadas respondendo: “sim. Amén”. O predito leitor conclui a
apresentação de Jesus, definindo-O como o princípio e o fim de todas as coisas (o “Alfa” e o “Ómega”, a primeira e a
última letra do alfabeto grego), Aquele que é Senhor da História e que abarca a totalidade do tempo (“Aquele que é, que era e que há de
vir”). E Os cristãos que
participam nesta liturgia sabem que podem confiar incondicionalmente em Jesus,
a referência fundamental da história humana, e, que são convidados a fazer de
Jesus o centro das suas vidas.
***
O Evangelho (Jo 18,33b-37) descreve uma cena do processo de
Jesus diante de Pôncio Pilatos, o governador romano da Judeia. Para trás ficara
o frente a frente de Jesus com os líderes judaicos, nomeadamente com Anás (sogro de Caifás, o sumo-sacerdote;
Anás, tendo deixado o cargo de sumo-sacerdote, continuava personagem muito
influente e terá sido ele a liderar o processo contra Jesus – cf Jo
18,12-14.19-24).
Pilatos governou a Judeia e a Samaria entre os anos 26 e 36.
As informações de Flávio Josefo e de Fílon dão-no como governante duro e
violento, obstinado e áspero, culpado de ordenar execuções de opositores sem
processo legal. As queixas de excesso de crueldade apresentadas pelos
samaritanos no ano 35 levaram Vitélio, legado romano na Síria, a enviá-lo a
Roma a explicar-se ao imperador, o que resultou na perda do cargo. Ao invés, o
4.º Evangelho descreve-o como fraco, indeciso e volúvel, marioneta manobrada
pelos líderes judaicos. Tal descrição – longe dos dados referidos pelos
historiadores da época – deve ser uma tentativa de livrar os romanos de culpa
no processo de Jesus. Aquando da escrita o 4.º Evangelho (cerca do ano 100), não era conveniente os cristãos
acusarem Roma, afirmando a sua responsabilidade no processo que levou Jesus à
crucifixão. Assim, os escritores cristãos preferiram branquear o papel do poder
imperial e fazer recair sobre as autoridades judaicas a culpa pela condenação
de Jesus.
O interrogatório de Jesus começa com a pergunta direta de
Pilatos: “Tu és o Rei dos judeus?” (s`y
eî ho basileùs tôn Ioudaíôn;”: Jo 18,33). Aqui se revela qual a acusação feita pelas autoridades
judaicas contra Jesus: a pretensão messiânica de restaurar o reino ideal de
David e libertar Israel dos opressores. A acusação vê em Jesus um agitador
político empenhado em mudar o mundo pela força, fundamentando as suas
pretensões e ação no poder das armas e na autoridade militar. Porém, Jesus
recusa esta vertente messiânica. A sua resposta orienta no genuíno sentido o
seu messianismo. Assume-se como o Messias que Israel esperava e confirma a sua realeza
(como dizes, sou rei – “s`y légeis hóti basileús eimí”), mas descarta parecença com os reis
que Pilatos conhece.
Diz o Bispo
de Lamego que os Judeus e Pilatos representam, neste episódio evangélico, os
impérios envelhecidos, podres e caducos da violência e estupidez. Os 4
Evangelhos contêm a pergunta de Pilatos: “Tu
és o rei dos Judeus?” (Mt 27,11; Mc 15,2; Lc 23,3; Jo 18,33). Nos sinóticos, Jesus dá resposta breve: “Tu o dizes” (“s`y légeis”: Mt 27,11; Mc 15,2; Lucas
23,3), para se remeter a silêncio
habitado e teológico (Mt 27,12; Mc 15,4; Lc 23,9), ao jeito do Servo de Javé, Cordeiro levado ao
matadouro, que não abriu a boca (Is 53,7). João, ao
invés, apresenta longo diálogo entre Jesus e Pilatos, em que o ponto mais alto
está no dizer de Jesus: “O meu reino não
é deste mundo” (“hê basileía hê
emê ouk éstin ek toû kósmou toútou”: Jo 18,36). E explica Jesus que, se o seu reino fosse deste
mundo, estariam, para o defenderem, as suas forças militares. Em vez disso, refere
António Couto, “o seu Reino assenta num Amor novo e subversivo, que não pode
deixar de amar a nossa violência até ao fim e ao fundo, sorvendo-lhe todo o
veneno”.
De facto, os reis deste mundo apoiam-se na força das armas e
impõem aos outros homens o seu domínio e autoridade, com base na prepotência e ambição,
gerando opressão, injustiça e sofrimento. Jesus, em contraponto, é o prisioneiro
indefeso, traído pelos amigos, ridicularizado pelos líderes judaicos,
abandonado pelo povo, mas que veio ao encontro dos homens para os servir, obedecendo
em tudo à vontade do Pai. A sua realeza é de outra ordem, da ordem de Deus, que
toca os corações e que, em vez de produzir opressão e morte, produz vida e
liberdade. Jesus é rei e messias, que nos propõe um mundo novo, assente numa
lógica de amor, de doação, de entrega, de serviço.
A sua declaração causa estranheza a Pilatos, que não entende
que um rei renuncie ao poder e à força e firme a sua realeza no amor e doação
da própria vida. A expressão posta na boca de Pilatos “então, Tu és Rei” (“oukoûn basileùs eî sí”: Jo
18,37) parece uma deixa
de alguém para quem as declarações do interlocutor não são claras, conservando
a porta aberta a ulterior explicação. Na sequência, Jesus confirma a sua
realeza e define o sentido e o conteúdo do seu reinado.
A realeza de que Jesus está investido por Deus consiste em dar
testemunho da verdade. No 4.º Evangelho, a verdade (“Alêtheia”) é a realidade de Deus e visualiza-se
nos gestos, palavras e atitudes de Jesus e, sobretudo, no amor vivido até à dádiva
da vida. A verdade é o amor total que Deus derrama sobre o homem para o levar à
vida verdadeira. E opõe-se à mentira do egoísmo, do pecado, da injustiça, de
tudo o que desfeia a vida do homem e o impede de alcançar a vida plena. Assim, a
realeza de Jesus concretiza-se na luta contra o egoísmo e o pecado, que
escravizam o homem, e consuma-se na proposição duma vida feita amor e entrega a
Deus e aos irmãos – meta que não se obtém pela lógica de poder e força (só multiplica as cadeias de injustiça
e violência), mas pelo
amor, partilha, serviço em prol dos irmãos. É o reino a que Jesus preside e que
propõe. A sua proposta provoca resposta livre do homem. Quem Lhe escuta a voz
adere ao seu projeto e compromete-se a segui-Lo; renuncia ao egoísmo e faz da
vida dom de amor a Deus e aos irmãos; integra a comunidade do Reino de Deus,
que está em crescimento em nós.
2021.11.21- Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário