quarta-feira, 17 de novembro de 2021

“A Bíblia em Portugal”, de Frei Herculano Alves, num antecongresso

Vai ser apresentada, a 20 deste mês de novembro, pelas 16 horas, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Santarém, a obra “A Bíblia em Portugal(6 volumes), da autoria de Frei Herculano Alves, capuchinho investigador em ciências bíblicas, que publicou 6 volumes sobre “A Bíblia em Portugal” e que, em 6000 páginas, analisa os seus reflexos no culto e na cultura, a partir da tradução de João Ferreira de Almeida.
De acordo, com uma nota enviada à agência Ecclesia, a apresentação ficará a cargo de Eugénia Abrantes, diretora do Instituto de Estudos Avançados em Catolicismo & Globalização.
Segundo o investigador, João Ferreira de Almeida, cuja primeira edição da sua tradução da Bíblia foi atirada ao mar porque estava “cheia de erros”, foi “o ponto de partida.
Como referiu Frei Herculano Alves, “a primeira tradução do Novo Testamento foi corrigida por holandeses, em Amsterdão, e ficou cheia de erros”. E, porque Ferreira de Almeida ficou furioso com aquela obra, onde os holandeses estavam a deturpar a sua tradução, e ele próprio disse que não queria aquela edição, os holandeses houveram por bem deitá-la ao mar “para que ela desaparecesse mesmo”. E o investigador em ciências bíblicas recorda que o tradutor, protestante calvinista, ficou com 50 exemplares que ele corrigiu à mão e desses “só é conhecido um”, que Frei Herculano Alves disse ter encontrado na Biblioteca Nacional, na investigação para o seu doutoramento, assegurando que “esse único exemplar que existe está muito guardado”.
A tradução para português de João Ferreira de Almeida, no século XVII, é um marco na obra publicada por Herculano Alves sobre os “23 séculos de traduções da Bíblia” e sobre a Bíblia no culto e na cultura portuguesa, porque é “de longe” a obra mais editada em português. “O catálogo de João Ferreira de Almeida dá entre 150 a 200 milhões de exemplares editados em todo o mundo”, como sustentou Herculano Alves, lembrando que a tradução em causa não foi feita a pensar nos portugueses de Portugal, mas nos “portugueses do Oriente, da orla marítima da África e da Ásia, que falavam a língua portuguesa, sobretudo no comércio”.
É de recordar que a obra “A Bíblia em Portugal” que vai agora ser apresentada em Santarém, já o foi em Gouveia, no passado dia 1 de julho, no contexto dos eventos preparatórios do Congresso Internacional “A Bíblia na Cultura Ocidental – Milénios de Civilização”. Aí, Frei Herculano Alves recordou que a investigação que resultou na publicação de 6 volumes começou no ano 2000,  com o objetivo de referenciar as “raízes bíblicas da cultura”. E vincou:
Esteve sempre no meu horizonte esta coletânea para colocar a Bíblia na cultura, a Bíblia nas bibliotecas. Quem sabe se alguém, vendo na biblioteca ‘A Bíblia em Portugal’ desperta a curiosidade para folhear o livro e ver que a Bíblia esteve sempre nas nossas raízes da cultura portuguesa e europeia.”.
No percurso das traduções em português, a “primeira Bíblia católica” do Padre António Pereira de Figueiredo, no tempo do iluminismo pombalino, é analisada ao longo de 250 páginas, no V volume da obra, tendo sido a primeira “legalmente traduzida para português”.
Herculano Alves considera que o século XX é o “século da Bíblia e da cultura bíblica” na Igreja Católica, a partir do “pontapé na crise bíblica” do Papa Pio XII ao publicar a carta encíclica “Divino afflante spiritu” e da publicação da constituição do Concílio Vaticano II “Dei Verbum”.
A obra “A Bíblia em Portugal” foi apresentada no predito Colóquio, após as conferências do Cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício da Cultura, sobre “Bíblia, um código para compreender a cultura ocidental”, e de Dom Manuel Clemente, Cardeal-patriarca de Lisboa, sobre o tema “Portugal, um país bíblico?”. Entretanto, foi emitida uma entrevista de Frei Herculano Alves no programa “70×7” do domingo, dia 4 na RTP2, às 17,40 horas, dia em que a temática da Bíblia em Portugal foi abordada também no programa “Ecclesia” na Antena 1, às 6 horas, com a participação de Frei Herculano Alves e do Padre Mário Sousa, coordenador da nova tradução portuguesa da Bíblia, promovida pela Conferência Episcopal Portuguesa.
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O predito colóquio de preparação do Congresso Internacional da Bíblia “A Bíblia na Cultura Ocidental – Milénios de Civilização” começou com a inauguração da exposição filatélica Bíblia Global “A Bíblia na Arte Postal” dos países do mundo”, nos Paços do concelho de Gouveia, a que se seguiu a conferência de Gianfranco Ravasi, sobre a ‘Bíblia, um código para compreender a cultural ocidental’; o lançamento e ritual de obliteração do selo dos CTT comemorativo dos “1600 Anos do Nascimento de São Jerónimo, primeiro tradutor da Bíblia para Latim, a famosa e influente Vulgata”, com uma fotografia da igreja paroquial de Ribamondego e um pormenor da imagem de São Jerónimo; o lançamento da obra completa em 6 volumes ‘A Bíblia em Portugal”, de Frei Herculano Alves, Franciscano Capuchinho; e a conferência de Dom Manuel Clemente sobre ‘Portugal, um país bíblico?’, para enquadrar a obra completa. Depois, no sábado, 3 de julho, realizou-se a gala de entrega de prémios do ‘BÍBLIA MOOV’, às 15 horas.
O Cardeal-patriarca salientou que em “pontos basilares de cultura e civilização” se manifestam “alguns traços bíblicos essenciais”. E exemplificou:
O calendário é pontuado pelo Natal, a Páscoa e as celebrações locais de padroeiros, mesmo que as datas sofram reinterpretações profanas. Designamos os dias da semana em relação ao primeiro deles, é uma especialidade portuguesa, e desde o século VI pelo menos, o domingo, inovação tipicamente cristã.”.
Manuel Clemente destacou o uso, “com sentido genérico”, de palavras que provêm diretamente da Bíblia como “criação, redenção, ressurreição, ascensão, celebração, consagração”, e muitos nomes próprios têm origem bíblica, “com prevalência para Maria”. Sublinhou que “os quadros metais são tocados pela referência bíblica”. Assim, para o regresso a casa, no sentido mais alargado do termo, lembramos o filho pródigo; para o cuidado dos outros recordamos o bom samaritano; para o desenvolvimento das qualidades próprias falamos de talentos”. E inferiu:
São casos típicos de um culto que gerou cultura e alguma tensão entre o sentido que tinham e a memória que se dilui quando aquilo deixa de ser tão genuíno. Nada de irrecuperável ainda que em novos termos.”.
Para o conferencista, quando Portugal se vai transformando “em terra comum de uma centena de povos residentes”, de vários continentes e tradições culturais e religiosas, pode realmente verificar-se “com maior clareza a presença ou ausência da referência bíblica”. Como realçou, há “em Portugal povos que nunca tiveram nenhuma iniciação bíblica nem evangélica”.
A intervenção enquadrou a apresentação dos seis volumes ‘A Bíblia em Portugal’, de Frei Herculano Alves, Franciscano Capuchinho. E Dom Manuel Clemente frisou:
Dos textos editados ou por editar dos autores nacionais e estrangeiros, dos respetivos enquadramentos histórico ou culturais, da oratória às expressões plásticas dos temas bíblicos, de tudo encontramos informação preciosa nestes volumes. Podemos afirmar que sobre esta temática tão central há um ‘antes’ e um ‘depois’ do seu trabalho, que se torna assim num marco incontornável da cultura portuguesa.”.
Cada um dos volumes foi apresentado por um orador, e o investigador em ciências bíblicas, Frei Herculano Alves, disse que o trabalho surgiu com o 4.º livro, dedicado ao primeiro tradutor da Bíblia em Portugal, para a sua tese de doutoramento, e foi descobrindo “a beleza da Bíblia, a importância daquela Bíblia e a importância da Bíblia em Portugal”.
O presidente do Conselho Pontifício para a Cultura da Santa Sé apresentou, numa intervenção online, a reflexão a ‘Bíblia, um código para compreender a cultural ocidental’, fazendo ressaltar a qualidade estética da Bíblia, que é texto literário, e obviamente a força da Palavra.
Com efeito, a Palavra divina encarna-se em palavras humanas que têm no símbolo vida privilegiada. Assim, as Escrituras “são o universo sobre o qual a literatura e a arte ocidentais operaram até ao século XVIII e, em grande medida, ainda operam”. Esta afirmação assenta num facto facilmente comprovável para quem perscrute a história cultural do Ocidente: a Bíblia tem sido uma imensa gramática ou repertório iconográfico, ideológico e literário ao qual se atém constantemente a nível da alta cultura e da cultura popular. Até Nietzsche, filósofo “anticristão”, confessa que “para nós, Abraão é mais significativo que qualquer outra personagem da história grega ou alemã”.  
Assim, em termos reinterpretativos, assume-se o texto ou o símbolo bíblico relido no interior de novas e diversas coordenadas histórico-culturais. Por exemplo, Job, tornado na Arte Sacra imagem do Cristo paciente, transforma-se no paradigma da condição humana em Kierkegaard. Um outro modelo elabora os dados bíblicos de forma desconcertante e até degenerativa, sendo o texto sagrado pretexto para falar de outra coisa ou até para rebater o seu sentido original. Assim, no livro de Job, a tradição, ignorando o poema que constitui a substância da obra, fixou-se quase só no prólogo e no epílogo, pelo que Job surge como o homem paciente que supera a prova e é, por fim, recompensado por Deus, quando o corpo central da obra apresenta o drama da fé posta ante o mistério de Deus e o enigma do mal. E o culminar da procura dilacerada e exigente está na profissão de fé que sela realmente o inteiro.
Contudo, se é sinal de fecundidade e força plástica do original bíblico esta literatura assim “em desvio”, maior testemunho de força espiritual e cultural a Bíblia oferece quando transparece na sua riqueza simbólica e teológica. Por isso, é pertinente olhar o modelo transfigurativo. A arte torna visíveis ressonâncias secretas do texto sagrado, transcrevendo-o na sua pureza, fazendo germinar potencialidades que a exegese dificilmente conquista ou, então, ignora-as.
Imagine-se – diz o Cardeal – só o que pode significar a oratória Jefté de Carissimi, Vésperas da Bem-Aventurada Virgem de Monteverdi, Paixão segundo Mateus de Bach ou ainda, olhando para os nossos dias, Paixão segundo São Lucas de Penderecki ou Chichester Psalms de Bernstein. E o Laudate Dominum em Fá menor das Vésperas solenes de um Confessor (K 339) de Mozart recria toda a carga teológica e espiritual, hebraica e cristã do salmo, como não o saberia fazer nenhuma exegese textual direta. Em conclusão: deve-se entender que a Bíblia é um dos pontos de referência capitais para a fé e para a nossa própria civilização. Não por acaso Goethe dizia que o cristianismo é “a língua materna da Europa”. 
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Como foi dito, o colóquio em referência antecipou o Congresso Internacional “A Bíblia na Cultura Ocidental – Milénios de Civilização”, que foi adiado para 2022 por causa da pandemia de covid-19 e que é uma das iniciativas no contexto do futuro Museu Internacional do Livro Sagrado de Gouveia. Na apresentação do Congresso, a Comissão Científica frisa o facto de a Bíblia ser “uma biblioteca de textos, de origem longínqua, uma obra multicultural que expressa uma síntese de culturas”. E assenta em que, se nos escritos hebreus se evidencia “a influência das culturas egípcia e persa”, nem por isso as Escrituras cristãs se entendem “sem alusão às culturas grega e romana”. Ora, sendo a mundialização “um facto dos nossos dias”, revisitar esta obra de “apelo universal” iluminará “as relações interculturais na aldeia global”.
Por outro lado, a Bíblia, como obra literária, “cuja leitura, ao longo de milénios, influenciou o pensamento de pessoas, a vida de comunidades, a origem de nações, o curso dos acontecimentos e a história das civilizações”, está presente em Portugal “desde os primórdios da fundação de Portugal à contemporaneidade”, tendo perpassado o texto “regimes políticos antagónicos, períodos económicos distintos e diversas correntes de pensamento filosófico”. Assim, “a literatura, o teatro, as artes, a educação, a economia, o direito e tantas outras ciências foram impregnadas de uma metafísica bíblica”. Por isso, “as Escrituras judaico-cristãs continuam a ser a chave de leitura e interpretação para todo o património humano desde o espiritual ao material, a verdadeira face de identidades”. Nesta ordem de ideias, o estudo da Bíblia constitui “um enriquecedor contributo para a compreensão da nossa identidade e memória coletiva”, pois, além do valor religioso, há valores históricos, filosóficos e estéticos a não perder de vista, sob pena de hipotecar a nossa autocompreensão como “comunidade imaginada” e indivíduos.
A Bíblia, enquanto “repositório de palavras de Deus e dos homens”, constitui-se como “carta magna do universo da existência humana” e “observatório do ordinário dessa mesma experiência”. Por sua vez, “o exercício de tradução das Sagradas Escrituras tem vindo a constituir-se como um corpus religioso, espiritual e cultural, cujos múltiplos procedimentos ora bebem, ora influem nas tradições culturais de cada povo”. E, “indissociável da raiz da fundação de Portugal”, a Bíblia “é o livro ‘transportado’ pelos portugueses aos quatro cantos do mundo – um povo que soube “revigorar” esse caráter sempre universal da Bíblia – iniciando esse destino de globalização, marca tão impregnada de “alma lusitana”.
É de referir que, em 2019, se comemorou o 200.º aniversário da primeira edição da Bíblia completa da mais antiga tradução em língua portuguesa (Londres, 1819), feita no século XVII pelo “ilustre desconhecido” João Ferreira d’ Almeida. No atinente ao dizer “a ‘Bíblia’, na língua dos nossos afetos”, essa tradução é considerada, por uns, como “um tesouro de vocabulário”, e tida, por outros, como “um marco da cultura e da língua portuguesa”. Todavia, “vem permanecendo numa clandestinidade cultural, que tem ocultado o mérito e o prestígio reconhecidos pela maioria dos estudiosos”. Ora, é “retirando da sombra e do esquecimento o legado bíblico no percurso intelectual, artístico e cultural na sociedade portuguesa, no âmbito deste bicentenário”, que o Congresso Internacional “pretende apresentar uma compilação de análises críticas sobre a relevância da Bíblia como um ‘bem’ cultural, a pertinência dos ‘lugares’ que ocupa na construção da cultura e sociedade lusitana e, ainda, o universo da tradução e edição dos textos sagrados do Cristianismo”. Dissecando cientificamente a Bíblia, no cursar transversal pelas ciências, nas suas especificações, “proceder-se-á à identificação de paradigmas determinantes” na construção das identidades culturais.
O trabalho científico do Congresso dá o ensejo de “aprofundar, em dinâmica multidisciplinar, espírito ecuménico e inter-religioso, o universo transversal bíblico, que emerge desde a complexidade das dinâmicas de tradução, das dinâmicas socioculturais e religiosas atuais, às novas realidades contemporâneas de comunicação e informação da sociedade atual, altamente tecnológica. E, no seu curso final, o Congresso constitui “a oportunidade de conhecimento da Bíblia” – traduzida em mais de 2400 idiomas – e “uma oportunidade de reler o que se entende por ‘civilização ocidental’ e cidadania”. Nestes termos, “a reflexão dos princípios e valores revisitados assume-se como um exercício cívico que torna visível os conceitos de liberdade, justiça e solidariedade”.

2021.11.17 – Louro de Carvalho

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