Não é
para esquecer o ano de 2020 em que o SARS-CoV-2 pôs o mundo inteiro em sentido,
mesmo com o ceticismo inicial de alguns sobre a periculosidade deste novo
coronavírus. Na verdade, com celeridade inédita, a covid-19 tornou-se pandemia,
que mostrou a fragilidade dos sistemas de saúde que os decisores políticos,
levados por interesses vários e ideologias pró-capitalistas foram depauperando
ao longo dos anos.
Para
combater, suster, conter e mitigar o vírus, os governos vêm impondo
confinamento geral ou parcial, declarando situações de alerta, contingência, calamidade
pública e, mesmo, decretando declaração de estado de emergência, com restrições
à circulação, condicionamento do regime de trabalho, encerramento de
estabelecimentos, suspensão do trabalho escolar, supressão de atos públicos de
culto, catequeses atividades similares, condicionamento da iniciativa privada,
eventual requisição civil, diminuição dos direitos dos trabalhadores, isolamento
profilático, recolher obrigatório. Perderam-se muitas vidas humanas e outras
ficaram com sequelas, diminuiu o rendimento e a produtividade, aumentou a
precariedade, cresceu o desemprego, os estabelecimentos de saúde não afetos à
covid-19 pararam. A covid-19, qual eucalipto secador, obnubilou as demais
comorbidades. Muitos faleceram e foram sepultados em condições de quase
clandestinidade sem que a família pudesse fazer luto com um mínimo de
dignidade. Os Estados tiveram de fazer um esforço sobre-humano para compensar
perdas de trabalho e diminuição de produção nas empresas. Enfim, havia que
responder à crise sistémica que a pandemia criou ou que pôs a nu. E tomaram-se
medidas nem sempre proporcionadas.
Entretanto,
depois de as diversas estruturas serem convidadas a refazer os seus espaços
físicos de acordo com as novas regras de segurança, timidamente foi-se
regressando à atividade económica, escolar, cultual e catequética, bem como à
prestação das diversas valências da saúde, mas as artes, a cultura e o desporto
levaram tempo a reerguer-se e as unidades de saúde familiar, que prestam os
cuidados primários de saúde, fazem esperar os utentes fora de portas suportando
a intempérie e abusam dos consultas por telefone, dificilmente funcionando este
por iniciativa dos utentes. Voltamos – talvez para ficar e bem – ao sistema do
guichê protetor do funcionário e do utente, herdado da pandemia de 1918 e
abolido irresponsavelmente.
Todavia,
a crise tornou-se oportunidade de enriquecimento de alguns por meios legítimos,
por saberem reconverter a sua atividade no todo ou em parte, e de outros, por
oportunismo negocial e açambarcador de meios e recursos. Mesmo a descoberta de
vacinas em tempo record prosseguiu na lógica da concorrência, em vez da lógica
da convergência, levando ao enriquecimento fabulosos de uns tantos. Porém,
neste aspeto a ciência marcou pontos.
A par de
tudo isto, registam-se fenómenos de resposta à crise, sobretudo em termos da
atenção às pessoas. Instituições de solidariedade como as Cáritas ou outras
associações humanitárias, militares, forças de segurança, autarquias,
confissões religiosas multiplicaram-se em atos de solidariedade, ajudando
pessoas e famílias carenciadas, muitas das quais tinham antes vida
estabilizada, obviando à solidão de pessoas idosas ou das que tiveram que
entrar em quarentena ou isolamento profilático, procedendo a compras e
respetiva entrega, levando comida e ajudando alunos sem computador ou acesso à
Internet para acompanhar as aulas online.
Helena
Gouveia, diretora de marketing da IKEA Portugal, disse ao Expresso deste dia 31 de dezembro que o impacto da pandemia
promoveu claramente o “crescimento da importância da casa como um todo”,
transformando-a muito “rapidamente em escola, escritório, ginásio, espaço de
brincadeira e de descanso”. Na verdade, como escreve Raquel Albuquerque,
aumentou a entrega de comida “à porta” e as “refeições cozinhadas em casa” ou o
serviço de take away; encheram-se os
cestos de compras “de carne e peixe, legumes e frutas, massas e arroz”. E a
casa teve mais “utensílios de cozinha, frascos e decorações, plantas e hortas”,
bem como “mais pijamas, meias e chinelos, mais secretárias, cadeiras e
candeeiros, mais sofás e poltronas”, “além de cimento e tintas para pequenas
obras”.
Porém,
isto não se cingiu ao confinamento da primavera. Surgiu mesmo uma alteração de
hábitos, havendo mais portugueses a comprar online, a trabalhar a partir de
casa, a andar de bicicleta, a fazer exercício físico na rua e a procurar casas
com terraços e/ou com maiores dimensões, assim como automóveis topo de gama e
caravanas. Na verdade, muitas pessoas sentiram-se encaixotadas no confinamento (apartamentos
sobrelotados fautores da contaminação, a par dos locais de trabalho), enquanto outras que se sentiram
encaixilhadas, pois contactavam com o mundo.
Outro fator de mudança foi a generalização do teletrabalho,
que teve papel central no regime laboral, mas que precisa de ser regulado para
não se transformar num encargo adicional para os trabalhadores nem constituir
uma sobrecarga de trabalho para os mesmos pelo excesso de conteúdo,
extrapolação de horário e vigilância sem rosto. Segundo um estudo do grupo
Ageas e Eurogroup Consulting Portugal, a maioria daquele “mais de um milhão de
portugueses” que “foi trabalhar para casa em março e menos de metade voltou ao
escritório entretanto”, “quer permanecer assim, sobretudo se for num modelo
misto.
Também as escolas tiveram de se reinventar e ministrar aulas
online e através da nova telescola, a que se recorrerá em regime absoluto quando
e enquanto for necessário e permanecerá em regime de complementaridade. Na
verdade, em termos educativos, nada há como o encontro presencial: o resto é um
simples remedeio.
O ano fica, pois, marcado pelo grande impulso dado às compras
online e às entregas em casa. Com efeito, a pandemia acelerou a digitalização e
“criou o hábito na maioria dos portugueses de comprar online”.
Os portugueses não esqueceram o desporto. Assim, como refere
Jorge Simões, diretor de marketing da Sport Zone, “todos os produtos
relacionados com a prática de exercício físico em casa foram mais procurados”. Por
outro lado, há mais desporto na rua que em ginásio. E as bicicletas foram uma
das grandes redescobertas do ano: às cicloficinas chegaram muitos pedidos de
arranjos, até de estafetas de distribuição de comida; e já há novos espaços
para abrir. Com efeito, há mais passeios e mais deslocações em alternativa ao
automóvel.
Posto isto, importa justificar o porquê da gratidão.
Além das descobertas positivas que a pandemia fez aflorar,
algumas por via da generalização e muitas outras por via da generosidade
solidária, como se entrelê acima, e dos diversos gabinetes de atendimento
telefónico personalizado e até apoio psicológico, criados por tantas
instituições públicas e privadas, é de referir que o Primeiro-Ministro elencou umas
quantas razões de gratidão na sua mensagem de Natal, que devemos assumir: a grande
“capacidade de adaptação e sacrifício,
determinação e disciplina com que todos os portugueses têm coletivamente enfrentado a pandemia”; a prestação
de “assistência a quem dela mais necessita” por parte de “funcionários de lares
ou da Segurança Social, militares das Forças Armadas ou elementos das Forças de
Segurança”; a “mobilização da comunidade científica”; o trabalho dos professores,
que “nunca abandonaram os seus alunos, mesmo quando as escolas tiveram de
encerrar”; a garantia de que nada de essencial “nos tenha faltado” por parte de
“todos os que, ininterruptamente desde março, mantiveram o país a funcionar”, “na
agricultura, na indústria e no comércio”; e o trabalho dedicado dos
profissionais de saúde, “que dia e noite dão o seu melhor para tratar quem está
doente, tantas vezes com sacrifício de folgas, tempo de descanso e contacto com
a sua própria família”.
A nível dos crentes, é de realçar o esforço
de adaptação às regras sanitárias aquando da reposição da ação cultual e
catequética e sobretudo o esforço da reinvenção e utilização dos diversos meios
de comunicação com que alimentam a fé das pessoas, o sentido da comunidade e a
profundidade dos mistérios a celebrar, bem como as catequeses quanto possível.
Ficam na retina gestos como a Bênção do SS. mo Sacramento no
tabuleiro superior da Ponte Dom Luís, no Porto, ou à porta da Sé Patriarcal de
Lisboa, no domingo de Páscoa, a Consagração ao Coração de Jesus e de Maria na
Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima pelo Cardeal Marto em nome de 22
conferências episcopais, a 25 de março, e, sobretudo, o momento de oração
protagonizado pelo Papa na Praça de São Pedro totalmente desprovida da presença
física de pessoas, a 27 de março, e a bênção Urbi et Orbi em domingo de Páscoa, da Basílica Vaticana.
A par da rarefação dos réditos das
instituições eclesiais (dioceses, paróquias, associações, movimentos e santuários), não podemos
olvidar factos notáveis como o desenvolvimento do ano da encíclica Laudato Si, por ocasião do 5.º
aniversário da sua publicação; o simpósio online “Economia de Francisco”; a encíclica Fratelli tutti, sobre a fraternidade e a amizade social; a convocação
do Ano de São José e do Ano Especial Família “Amoris Laetitia” – tudo com
inspiração no dever do cuidado, da Criação, das pessoas e das famílias.
Por tudo isto e porque devemos a Deus o dom
da vida e da graça, pois Ele não nos abandona, várias Igrejas organizam
celebrações neste dia final do ano, em que se entoa “Te Deum Laudamus” em louvor e ação de graças ao Deus que nos cria,
redime e eleva. Já se procedeu a várias celebrações vespertinas da Eucaristia em
honra da Santa Mãe de Deus. E Eucaristia é, sobretudo, ação de graças e pedido
de bênção, contexto em que se oferece o Santo Sacrifício e se realiza o banquete
dos filhos de Deus ansiando pela Páscoa do fim dos tempos.
E, no Vaticano, apesar de o Papa não poder
presidir às celebrações desta noite de 31 de dezembro e da manhã do dia 1.º de
janeiro no altar da Cátedra devido a uma dolorosa ciatalgia, a celebração das
Primeiras Vésperas, Te Deum e Bênção com o Santíssimo Sacramento foi presidida
pelo Cardeal Giovanni Battista Re, Decano do Colégio dos Cardeais, que leu a
homilia de Francisco; a Santa Missa da Solenidade de Maria Santíssima Mãe de
Deus será presidida pelo Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado; e o
Santo Padre fará a oração do Angelus
na Biblioteca do Palácio Apostólico, conforme previsto.
Enfim, Deo gratias e muita esperança para o
próximo ano!
2020.12.31
– Louro de Carvalho