quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

No termo dum ano tão difícil, vale a pena exprimir gratidão a Deus

 

Não é para esquecer o ano de 2020 em que o SARS-CoV-2 pôs o mundo inteiro em sentido, mesmo com o ceticismo inicial de alguns sobre a periculosidade deste novo coronavírus. Na verdade, com celeridade inédita, a covid-19 tornou-se pandemia, que mostrou a fragilidade dos sistemas de saúde que os decisores políticos, levados por interesses vários e ideologias pró-capitalistas foram depauperando ao longo dos anos.

Para combater, suster, conter e mitigar o vírus, os governos vêm impondo confinamento geral ou parcial, declarando situações de alerta, contingência, calamidade pública e, mesmo, decretando declaração de estado de emergência, com restrições à circulação, condicionamento do regime de trabalho, encerramento de estabelecimentos, suspensão do trabalho escolar, supressão de atos públicos de culto, catequeses atividades similares, condicionamento da iniciativa privada, eventual requisição civil, diminuição dos direitos dos trabalhadores, isolamento profilático, recolher obrigatório. Perderam-se muitas vidas humanas e outras ficaram com sequelas, diminuiu o rendimento e a produtividade, aumentou a precariedade, cresceu o desemprego, os estabelecimentos de saúde não afetos à covid-19 pararam. A covid-19, qual eucalipto secador, obnubilou as demais comorbidades. Muitos faleceram e foram sepultados em condições de quase clandestinidade sem que a família pudesse fazer luto com um mínimo de dignidade. Os Estados tiveram de fazer um esforço sobre-humano para compensar perdas de trabalho e diminuição de produção nas empresas. Enfim, havia que responder à crise sistémica que a pandemia criou ou que pôs a nu. E tomaram-se medidas nem sempre proporcionadas.

Entretanto, depois de as diversas estruturas serem convidadas a refazer os seus espaços físicos de acordo com as novas regras de segurança, timidamente foi-se regressando à atividade económica, escolar, cultual e catequética, bem como à prestação das diversas valências da saúde, mas as artes, a cultura e o desporto levaram tempo a reerguer-se e as unidades de saúde familiar, que prestam os cuidados primários de saúde, fazem esperar os utentes fora de portas suportando a intempérie e abusam dos consultas por telefone, dificilmente funcionando este por iniciativa dos utentes. Voltamos – talvez para ficar e bem – ao sistema do guichê protetor do funcionário e do utente, herdado da pandemia de 1918 e abolido irresponsavelmente.

Todavia, a crise tornou-se oportunidade de enriquecimento de alguns por meios legítimos, por saberem reconverter a sua atividade no todo ou em parte, e de outros, por oportunismo negocial e açambarcador de meios e recursos. Mesmo a descoberta de vacinas em tempo record prosseguiu na lógica da concorrência, em vez da lógica da convergência, levando ao enriquecimento fabulosos de uns tantos. Porém, neste aspeto a ciência marcou pontos.

A par de tudo isto, registam-se fenómenos de resposta à crise, sobretudo em termos da atenção às pessoas. Instituições de solidariedade como as Cáritas ou outras associações humanitárias, militares, forças de segurança, autarquias, confissões religiosas multiplicaram-se em atos de solidariedade, ajudando pessoas e famílias carenciadas, muitas das quais tinham antes vida estabilizada, obviando à solidão de pessoas idosas ou das que tiveram que entrar em quarentena ou isolamento profilático, procedendo a compras e respetiva entrega, levando comida e ajudando alunos sem computador ou acesso à Internet para acompanhar as aulas online.

Helena Gouveia, diretora de marketing da IKEA Portugal, disse ao Expresso deste dia 31 de dezembro que o impacto da pandemia promoveu claramente o “crescimento da importância da casa como um todo”, transformando-a muito “rapidamente em escola, escritório, ginásio, espaço de brincadeira e de descanso”. Na verdade, como escreve Raquel Albuquerque, aumentou a entrega de comida “à porta” e as “refeições cozinhadas em casa” ou o serviço de take away; encheram-se os cestos de compras “de carne e peixe, legumes e frutas, massas e arroz”. E a casa teve mais “utensílios de cozinha, frascos e decorações, plantas e hortas”, bem como “mais pijamas, meias e chinelos, mais secretárias, cadeiras e candeeiros, mais sofás e poltronas”, “além de cimento e tintas para pequenas obras”.  

Porém, isto não se cingiu ao confinamento da primavera. Surgiu mesmo uma alteração de hábitos, havendo mais portugueses a comprar online, a trabalhar a partir de casa, a andar de bicicleta, a fazer exercício físico na rua e a procurar casas com terraços e/ou com maiores dimensões, assim como automóveis topo de gama e caravanas. Na verdade, muitas pessoas sentiram-se encaixotadas no confinamento (apartamentos sobrelotados fautores da contaminação, a par dos locais de trabalho), enquanto outras que se sentiram encaixilhadas, pois contactavam com o mundo.

Outro fator de mudança foi a generalização do teletrabalho, que teve papel central no regime laboral, mas que precisa de ser regulado para não se transformar num encargo adicional para os trabalhadores nem constituir uma sobrecarga de trabalho para os mesmos pelo excesso de conteúdo, extrapolação de horário e vigilância sem rosto. Segundo um estudo do grupo Ageas e Eurogroup Consulting Portugal, a maioria daquele “mais de um milhão de portugueses” que “foi trabalhar para casa em março e menos de metade voltou ao escritório entretanto”, “quer permanecer assim, sobretudo se for num modelo misto.

Também as escolas tiveram de se reinventar e ministrar aulas online e através da nova telescola, a que se recorrerá em regime absoluto quando e enquanto for necessário e permanecerá em regime de complementaridade. Na verdade, em termos educativos, nada há como o encontro presencial: o resto é um simples remedeio.

O ano fica, pois, marcado pelo grande impulso dado às compras online e às entregas em casa. Com efeito, a pandemia acelerou a digitalização e “criou o hábito na maioria dos portugueses de comprar online”.

Os portugueses não esqueceram o desporto. Assim, como refere Jorge Simões, diretor de marketing da Sport Zone, “todos os produtos relacionados com a prática de exercício físico em casa foram mais procurados”. Por outro lado, há mais desporto na rua que em ginásio. E as bicicletas foram uma das grandes redescobertas do ano: às cicloficinas chegaram muitos pedidos de arranjos, até de estafetas de distribuição de comida; e já há novos espaços para abrir. Com efeito, há mais passeios e mais deslocações em alternativa ao automóvel.

Posto isto, importa justificar o porquê da gratidão.

Além das descobertas positivas que a pandemia fez aflorar, algumas por via da generalização e muitas outras por via da generosidade solidária, como se entrelê acima, e dos diversos gabinetes de atendimento telefónico personalizado e até apoio psicológico, criados por tantas instituições públicas e privadas, é de referir que o Primeiro-Ministro elencou umas quantas razões de gratidão na sua mensagem de Natal, que devemos assumir: a grande “capacidade de adaptação e sacrifício, determinação e disciplina com que todos os portugueses têm coletivamente enfrentado a pandemia”; a prestação de “assistência a quem dela mais necessita” por parte de “funcionários de lares ou da Segurança Social, militares das Forças Armadas ou elementos das Forças de Segurança”; a “mobilização da comunidade científica”; o trabalho dos professores, que “nunca abandonaram os seus alunos, mesmo quando as escolas tiveram de encerrar”; a garantia de que nada de essencial “nos tenha faltado” por parte de “todos os que, ininterruptamente desde março, mantiveram o país a funcionar”, “na agricultura, na indústria e no comércio”; e o trabalho dedicado dos profissionais de saúde, “que dia e noite dão o seu melhor para tratar quem está doente, tantas vezes com sacrifício de folgas, tempo de descanso e contacto com a sua própria família”.

A nível dos crentes, é de realçar o esforço de adaptação às regras sanitárias aquando da reposição da ação cultual e catequética e sobretudo o esforço da reinvenção e utilização dos diversos meios de comunicação com que alimentam a fé das pessoas, o sentido da comunidade e a profundidade dos mistérios a celebrar, bem como as catequeses quanto possível. Ficam na retina gestos como a Bênção do SS. mo Sacramento no tabuleiro superior da Ponte Dom Luís, no Porto, ou à porta da Sé Patriarcal de Lisboa, no domingo de Páscoa, a Consagração ao Coração de Jesus e de Maria na Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima pelo Cardeal Marto em nome de 22 conferências episcopais, a 25 de março, e, sobretudo, o momento de oração protagonizado pelo Papa na Praça de São Pedro totalmente desprovida da presença física de pessoas, a 27 de março, e a bênção Urbi et Orbi em domingo de Páscoa, da Basílica Vaticana.

A par da rarefação dos réditos das instituições eclesiais (dioceses, paróquias, associações, movimentos e santuários), não podemos olvidar factos notáveis como o desenvolvimento do ano da encíclica Laudato Si, por ocasião do 5.º aniversário da sua publicação; o simpósio online “Economia de Francisco”; a encíclica Fratelli tutti, sobre a fraternidade e a amizade social; a convocação do Ano de São José e do Ano Especial Família “Amoris Laetitia” – tudo com inspiração no dever do cuidado, da Criação, das pessoas e das famílias.

Por tudo isto e porque devemos a Deus o dom da vida e da graça, pois Ele não nos abandona, várias Igrejas organizam celebrações neste dia final do ano, em que se entoa “Te Deum Laudamus” em louvor e ação de graças ao Deus que nos cria, redime e eleva. Já se procedeu a várias celebrações vespertinas da Eucaristia em honra da Santa Mãe de Deus. E Eucaristia é, sobretudo, ação de graças e pedido de bênção, contexto em que se oferece o Santo Sacrifício e se realiza o banquete dos filhos de Deus ansiando pela Páscoa do fim dos tempos.

E, no Vaticano, apesar de o Papa não poder presidir às celebrações desta noite de 31 de dezembro e da manhã do dia 1.º de janeiro no altar da Cátedra devido a uma dolorosa ciatalgia, a celebração das Primeiras Vésperas, Te Deum e Bênção com o Santíssimo Sacramento foi presidida pelo Cardeal Giovanni Battista Re, Decano do Colégio dos Cardeais, que leu a homilia de Francisco; a Santa Missa da Solenidade de Maria Santíssima Mãe de Deus será presidida pelo Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado; e o Santo Padre fará a oração do Angelus na Biblioteca do Palácio Apostólico, conforme previsto.               

Enfim, Deo gratias e muita esperança para o próximo ano!

2020.12.31 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Orçamento do Estado para 2021 entra em vigor a 1 de janeiro

 

Estabelece-o o texto da lei e, para que tal pudesse acontecer, mais de um mês após a sua aprovação na Assembleia da República (AR), o Presidente da República (PR) recebeu o Orçamento do Estado para 2021 (OE 21) em Belém e decidiu promulgá-lo no dia 29 de dezembro, o Primeiro-Ministro assinou a referenda no mesmo dia, a publicação em Diário da República, I Série, ocorrerá no dia 31 e o diploma entrará em vigor no dia seguinte. Este é o último orçamento que Marcelo Rebelo de Sousa promulga neste mandato dado que as eleições presidenciais, às quais se recandidata, estão marcadas para 24 de janeiro.

E, como sucedeu com os quatro orçamentos anteriores que lhe passaram pelas mãos, o Chefe de Estado promulgou a Lei do Orçamento para 2021 e a que aprova as Grandes Opções do Plano (GOP) apresentando as justificações por que o fez e deixando alguns reparos e avisos.

As razões da promulgação prendem-se com a “urgência do combate à pandemia e seus efeitos comunitários, bem como à adequada receção das ajudas europeias”, ou seja, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), ou seja, em concreto, motivaram a promulgação as medidas de compensação da perda de rendimentos, sobretudo dos mais sacrificados, e do reforço da saúde, cuja importância, na opinião do inquilino de Belém, recomenda que entrem em vigor a 1 de janeiro, para que o Governo possa, desde logo, implementar as respetivas medidas.

Contudo, Marcelo, reconhecendo as dificuldades encontradas para a viabilização do OE 21, deixa reparos e avisos atinentes às “limitações” da parte social e o “renovado não acolhimento de algumas pretensões empresariais”, mas sem concretizar. É certo que a atenção dada às empresas tem sido um aviso constante do Presidente ao longo dos últimos anos, bem como o combate à pobreza, designadamente a atenção aos sem-abrigo. Por outro lado, a nota emitida pela Presidência da República refere a “existência de soluções de caráter programático, na fronteira da delimitação de competências administrativas”, no respeitante às diferentes competências da AR e do Governo. Está, neste último caso, subjacente o questionamento do PR à aprovação de algumas normas na especialidade por parte dos deputados como, por exemplo, a avaliação de impacto ambiental ao aeroporto do Montijo ou a renegociação das SCUTS, cuja competência é do Executivo.

E o PR, reconhecendo, como se disse, as “complexas condições que rodearam a elaboração do OE 21, salienta a busca do equilíbrio para o controlo do défice”. Na verdade, o OE 2021 contou com o voto contra do Bloco de Esquerda, ao contrário dos anteriores, arriscando não passar no Parlamento e criar uma crise política que era “indesejada”, nas palavras do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

É o seguinte o teor da Nota da Presidência da República:

Presidente da República promulgou Grandes Opções do Plano e Orçamento do Estado para 2021

Apesar das limitações a maior ênfase social, do renovado não acolhimento de algumas pretensões empresariais e da existência de soluções de caráter programático, na fronteira da delimitação de competências administrativas, considerando as complexas condições que rodearam a sua elaboração e a busca do equilíbrio entre o controlo do défice, a adoção de medidas relevantes em domínios como a saúde e os rendimentos dos mais sacrificados, e, sobretudo, a óbvia importância de os portugueses disporem de Orçamento de Estado em 1 de janeiro de 2021, atendendo à urgência do combate à pandemia e seus efeitos comunitários, bem como à adequada receção das ajudas europeias, designadamente, do Plano de Recuperação e Resiliência, o Presidente da República promulgou o diploma da Assembleia da República que aprova o Orçamento do Estado para 2021.

O Presidente da República promulgou igualmente o diploma que aprova as Grandes Opções do Plano para 2021.”

Entretanto, o Primeiro-Ministro publicou uma fotografia no Twitter, escreveu que assinou, esta terça-feira a “referenda ministerial da Lei que aprova o OE para 2021” e aduz que “é um Orçamento que combate a pandemia, protege as pessoas e apoia a economia e o emprego”.

Depois de o PR ter promulgado o OE 2021, apesar das reservas, o Ministro das Finanças, João Leão, gravou um vídeo a defender o documento, sustentado que “este é um bom orçamento” e “o orçamento de que Portugal precisa para conseguir superar esta crise.

Parecendo responder ao Chefe de Estado no tocante à limitações, o Ministro enumera as “prioridades” do OE 21, em termos de proteção do emprego, recuperação económica e combate à pandemia. Enfatiza o reforço do Serviço Nacional de Saúde (SNS) com mais de 1000 milhões de euros, o aumento do salário mínimo nacional em 30 euros e a subida extraordinária das pensões em 10 euros para dois milhões de pessoas. E conclui que se trata de medidas que “vão dar um contributo fundamental para uma forte recuperação da economia” e também “para a redução do défice e da dívida pública”.

Antecipando um “inverno bastante exigente”, João Leão acredita que o surgimento das vacinas contra a covid-19 permite “antecipar uma evolução favorável da pandemia ao longo do próximo ano, o que cria as condições para uma forte recuperação da economia em 2021”, pois, como sublinha, “já conseguimos ver a luz ao fundo do túnel, mas ainda o temos de atravessar”.

Além disso, o OE 21 prevê o novo apoio social de até 501 euros incluindo sócios-gerentes, informais e estagiários e os vários tipos de lay-off pagos a 100% a partir do próximo ano.

Recorde-se que o OE 21 foi aprovado a 26 de novembro com o voto favorável do PS, a abstenção do PCP, PAN, PEV, Cristina Rodrigues e Joacine Katar Moreira e o voto conta do PSD, Bloco de Esquerda – que votou contra um OE pela primeira vez desde 2016 –, CDS, Chega e Iniciativa Liberal. O número recorde de propostas de alteração (mais de 1.500) dificultou não só o processo de votação, que decorreu em quatro dias, como a redação final do documento, como ocorrera no OE 2020, em que houve mais de 1.300 propostas de alteração.

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É óbvio que é importante o Governo dispor dum orçamento a partir de 1 de janeiro para poder tomar as medidas nele previstas e mais adequadas a cada tema, circunstância e setor, embora a gestão dos negócios do Estado em regime de duodécimos não fosse uma tragédia.

O Presidente poderia ter-se dispensado, até porque é recandidato à eleição presidencial, de justificar as razões da promulgação. Quanto às referidas limitações, penso que não adiantaria nada opor-lhe o veto político, pois, daí não resultaria qualquer mais-valia, quer no atinente à ênfase, quer no atinente às reivindicações empresariais – teríamos numa eventual reapreciação parlamentar a dita esquerda e a dita direita a puxar cada uma para o seu lado e, provavelmente, acrescida dificuldade em reaprovar o diploma. E, no respeitante à “existência de soluções de caráter programático, na fronteira da delimitação de competências administrativas”, se tem dúvidas, pode suscitar junto do Tribunal Constitucional a fiscalização sucessiva de tais normas.

Assim, é de referir que o PR não pode deixar que paire na mente dos cidadãos a ideia de que o OE 21 pode ter normas inconstitucionais. Por outro lado, justificando as razões por que promulga um diploma, o que não é necessário, fica politicamente vinculado a ele. Por isso, querendo ou não, assume responsabilidades que não lhe competem. E, quanto à interferência em matérias de outros órgãos, é o escrutínio recíproco legítimo (sem abuso) que está em causa.

2020.12.30 – Louro de Carvalho

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

O Papa anunciou Ano “Família Amoris laetitia”

 

No passado dia 27 de dezembro, por ocasião da recitação dominical do Angelus, o Papa Francisco anunciou a convocação de um “Ano especial dedicado à Família Amoris laetitia”, que será inaugurado a 19 de março de 2021, dia da Solenidade de São José, esposo da Virgem Santa Maria, e 5.º aniversário da publicação da Exortação Apostólica Amoris laetitia (AL), na sequência do XIV Sínodo ordinário dos Bispos sob o tema “A vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo”, celebrado de 4 a 25 de outubro e 2015 e que fora antecedido pelo III Sínodo extraordinário os Bispos sob o tema “Os desafios pastorais sobre a família no contexto da evangelização”, celebrado de 5 a 26 de outubro de 2014.

O encerramento deste ano especial está marcado para 26 de junho de 2022, termo do X Encontro Mundial das Famílias, em Roma, com o Santo Padre.  

Com a intenção de “prosseguir o percurso sinodal” que levou à publicação do documento, este será “um ano de reflexão” e uma oportunidade para “aprofundar os conteúdos do documento” pós-sinodal em referência. Para tanto, o Santo Padre lançou a todos o convite “a aderir às iniciativas que serão promovidas ao longo do ano e que serão coordenadas pelo Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida” e confiou à Sagrada Família de Nazaré, em particular a São José, esposo e pai solícito, este caminho com as famílias de todo o mundo”.

Na verdade, a experiência da pandemia fez sobressair o papel central da família como Igreja doméstica, bem como a importância dos laços entre as famílias, que fazem da Igreja uma “família de famílias” (AL 87). Assim, através das iniciativas de caráter espiritual, pastoral e cultural planeadas no Ano “Família Amoris Laetitia, Francisco dirige-se a todas as famílias e a todas as comunidades eclesiais do mundo, exortando cada pessoa a ser uma testemunha do amor familiar. O tema merece um ano de celebrações porque está no centro do empenho e do cuidado de cada realidade pastoral e eclesial.

Por consequência, nas paróquias, dioceses, universidades, no contexto dos movimentos eclesiais e das associações familiares, serão divulgados instrumentos de espiritualidade familiar, de formação e ação pastoral sobre a preparação para o matrimónio, a educação dos jovens para o afeto, sobre a santidade dos cônjuges e das famílias que vivem a graça do sacramento na vida quotidiana. Além disso, serão organizados simpósios académicos internacionais para aprofundar os conteúdos e as implicações da sobredita exortação apostólica em relação aos temas de grande atualidade que interessarão as famílias em todo o mundo.

Tendo em vista a inauguração deste ano especial em 19 de março, o Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida preparou um folheto informativo para ser compartilhado com as dioceses, as paróquias e as famílias, disponível no site do Dicastério – um site desenvolvido em cinco línguas (inglês, francês, espanhol, português e italiano), rico em gráficos e conteúdos, de fácil consulta e atualizável com as propostas e iniciativas realizadas gradativamente ao longo do ano.

Os objetivos já definidos são:

- Difundir o conteúdo da exortação apostólica “Amoris Laetitia, para “fazer experimentar que o Evangelho da família é uma alegria que  enche o coração e toda a vida ” (AL 200), pois uma família que descobre e experimenta a alegria de ter um dom e de ser um dom para a Igreja e para a sociedade “pode ​​tornar-se uma luz nas trevas do mundo” (AL 66) e o mundo hoje precisa dessa luz.

- Anunciar que o sacramento do matrimónio é um dom  e contém em si a força transformadora do amor humano, pelo que têm os pastores e as famílias de caminhar em corresponsabilidade e complementaridade pastoral entre as diversas vocações na Igreja (cf AL 203).

- Fazer das famílias os  protagonistas da pastoral familiar, pelo que é necessário “um esforço evangelizador e catequético dirigido no seio da família” (AL 200), pois o discípulo familiar torna-se também família missionária.

- Sensibilizar os jovens para  a importância da formação na verdade do amor e do dom de si com iniciativas a eles dedicadas.

- Ampliar o olhar e a ação da pastoral familiar  para que se torne transversal à família, de modo a incluir os cônjuges, os filhos, os jovens, os idosos e as situações de fragilidade familiar.

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Como ficou entredito, os destinatários e, ao mesmo tempo, agentes deste ano especial são: as conferências episcopais, as dioceses, as paróquias/freguesias, os movimentos eclesiais, as associações familiares, mas, acima de tudo, as famílias de todo o mundo. E o convite, dirigido a todas as comunidades, insta a participar e tornar-se protagonista de  outras propostas a implementar a nível da Igreja local: diocese, paróquias, comunidades eclesiais...

Para já, o Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, sob o lema “Caminhando com famílias”, tendo em conta as diferentes caraterísticas e possibilidades das diversas realidades eclesiais, convida cada realidade eclesial a tomar as iniciativas que julga possível realizar de acordo com suas próprias condições e necessidades. E, neste sentido, propõe 12 caminhos para implementar a “Amoris Laetitia”, que aqui se especificam:

1. Fortalecer a pastoral da preparação ao matrimónio com novos itinerários catecumenais a nível diocesano e paroquial (cf AL 205-222) para propiciar a preparação remota e mediata do matrimónio, bem como o acompanhamento dos cônjuges nos primeiros anos de vida matrimonial – compromisso confiado de modo particular aos cônjuges que, juntamente com os pastores, se tornam companheiros de viagem de noivos e de casamentos mais jovens.

2. Fortalecer a pastoral do acompanhamento dos cônjuges com encontros aprofundados e momentos de espiritualidade e oração a eles dedicados para adquirirem consciência do dom e da graça do sacramento nupcial (cf AL 58 ss e 223-230).

3. Organizar encontros para os pais sobre a educação dos filhos e sobre os desafios mais atuais (cf AL 172 ss e 259-290), respondendo à indicação do Papa que sugere que os pais procurem compreender “onde estão os filhos na sua viagem” (cf AL 261).

4. Promover encontros de reflexão e discussão sobre a beleza e dificuldades da vida familiar   (cf AL 32-ss e 89-ss), para favorecer o reconhecimento do valor social da família e a criação duma rede de famílias e pastores capazes de estarem perto em situações de cansaço, com anúncio, partilha e testemunho.

5. Intensificar o acompanhamento de casais em crise (cf AL 232 ss) apoiando e formando a atitude resiliente que leve a ver nas dificuldades uma oportunidade para crescer no amor e fortalecer-se.

6. Envolver os casais nas estruturas  diocesanas e paroquiais para estabelecer a pastoral familiar (cf AL 86-88) e a formação dos agentes pastorais, seminaristas e sacerdotes para que estejam à altura dos desafios de hoje (cf AL 202 ss) colaborar com as famílias, para o que será importante fazer funcionar a reciprocidade entre a “Igreja família-doméstica” e a Igreja (AL 200), para que se descubra e valorize uma como dom insubstituível para a outra.

7. Promover a vocação missionária natural nas famílias (cf AL 201, 230 e 324), criando momentos de formação para a evangelização e iniciativas missionárias (vg: por ocasião da formação para os sacramentos dos filhos, casamentos, aniversários ou momentos litúrgicos importantes).

8. Desenvolver uma pastoral de idosos (cf AL 191-193) que vise superar a cultura do desperdício e da indiferença e promover propostas transversais em relação às diferentes idades da vida, tornando também os idosos protagonistas da pastoral comunitária.

9. Envolver a pastoral juvenil com iniciativas para refletir e discutir questões como família, casamento, castidade, abertura à vida, uso das redes sociais, pobreza, respeito pela criação (vd AL 40), para o que é necessário saber despertar o entusiasmo e valorizar a capacidade dos jovens de se empenharem plenamente em grandes ideais e os desafios que eles apresentam e dar especial atenção, este ano, às crianças, para que tomem conhecimento do Ano “Família Amoris Laetitia ” e das iniciativas propostas.

10. Promover a preparação para o X Encontro Mundial das Famílias com catequese e cursos formativos que, por meio de várias etapas e experiências, acompanhem as famílias ao encontro com o Santo Padre.

11. Lançar iniciativas de acompanhamento e discernimento para as famílias feridas (cf AL 50 ss, 241 ss e 291 ss), para ajudá-las a descobrir e realizar a missão que têm na família e na comunidade, a partir do Batismo.

12. Organizar grupos nas paróquias e comunidades para encontros aprofundados sobre a Amoris Laetitia”, para sensibilizar para as oportunidades pastorais concretas que se apresentam em cada comunidade eclesial (cf AL 199 ss).

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A este respeito, o Arcebispo Vincenzo Paglia, Grão-Chanceler do Pontifício Instituto Teológico João Paulo II para as Ciências do Matrimónio e da Família, pedindo um relançamento da pastoral familiar em nome do envolvimento dos leigos, frisa que a força dos laços familiares está conexa com a força do tecido social, pois “refletir sobre a família é falar sobre o próprio destino da humanidade”, pelo que urge “impulsionar a pastoral familiar, redescobrir a família como recurso para toda a sociedade e refletir sobre a esterilidade das gerações”.

Em entrevista, concedida a Marco Guerra, do Vatican News, o prelado considera que esta reflexão, que envolverá toda a comunidade católica no mundo, chega no final duma pandemia global que evidenciou o papel insubstituível da instituição familiar no acolhimento, cuidado e conforto de todas as pessoas.

Paglia justifica a coincidência do ano dedicado à família com a esperança do fim da pandemia pela chegada das vacinas, com o facto de, na pandemia (que nos ensinou que ninguém se salva sozinho e que todos precisamos uns dos outros, a começar pela família), “a família com todas as suas limitações” se ter revelado “a realidade mais sólida”, pois “conseguiu confortar e acompanhar muitos numa situação tão dramática”. Assim, pelo seu “caráter dramático”, esta experiência constitui “uma grande lição” – supostamente apendida – que “nos ajuda a compreender melhor a preciosidade da família tanto para a Igreja como para a sociedade”.

No âmbito da reflexão sobre a família a partir da Amoris Laetitia, o Grão-Chanceler refere que o Pontifício Instituto João Paulo II pretende promover uma pesquisa para recolher o que se conseguiu nas Igrejas locais a partir da Amoris Laetitia, pois, nestes cinco anos, foram muitas as iniciativas nas Igrejas locais que “repropuseram a família como lugar de vida cristã”. Todavia, como não basta ver o que foi feito, é indispensável dar um novo e bem mais forte impulso a toda a pastoral familiar, “entendida como lugar que deve abranger toda a pastoral”, ou seja, toda a pastoral deve ser “familiar”, pois, “quando a Igreja fala da família, fala de si mesma”.

Em relação à fundamentalidade do ideal evangélico da Sagrada Família para todos os cristãos, o Arcebispo recorda que o Papa “enfatiza o ideal da família desejada por Deus já no início da criação”, sendo o tema central “a aliança entre homem e mulher”, os quais, na família, em toda a sociedade e na Igreja, “são chamados tanto à custódia da criação como à responsabilidade das gerações”. Porém, é necessária “uma maior reflexão tanto a nível teológico como pastoral”, isto é, há necessidade duma “teologia da família”. E diz o prelado que o Instituto João Paulo II deu início a esta perspetiva teológica que postula “o desenvolvimento duma reflexão sobre as múltiplas articulações dos laços familiares e dos da paternidade, maternidade, fraternidade, das relações sociais, das responsabilidades mútuas e assim por diante” – uma reflexão que se dirija ao lado teológico e ao das ciências humanas, sem esquecer o nível da moral.

No atinente ao primado educativo da família e ao seu lugar fundamental para a transmissão da fé e campo de formação para a convivência, o entrevistado engrandece o precioso serviço que a Igreja presta à sociedade, “com a sua reflexão e ação no contexto familiar”, até porque “uma sociedade desfamiliarizada leva ao desmoronamento daquele ‘nós’ que é a base de toda sociedade”, sendo que o “colapso do nós” começa “na família e estende-se à nação e à família das nações”. E, porque se fala da evaporação do pai, do afrouxamento dos laços e da desintegração cultural da família como arquitetura de laços, “este é um ano importante” para impelir os fiéis e os não fiéis a redescobrir a família como “recurso único e extraordinário para a sociedade como tal”.

Atendendo a que o Papa tem denunciado as colonizações ideológicas que atingem a família e questionado sobre se este ano de reflexão servirá para fortalecer o papel e a importância da família no plano cultural, o entrevistado reage:

Por isso enfatizava como a fraqueza dos laços leva ao enfraquecimento do ‘nós’. Não é por acaso que o Papa usa o termo ‘irmão’ para indicar o vínculo universal entre todos; é um termo tipicamente associado à perspetiva familiar. Fratelli tutti é impossível de ser compreendida sem uma visão profunda da dimensão familiar que o termo comporta. Nesse sentido, acredito que refletir sobre a família significa falar do próprio destino da humanidade.”.

Isto é tão relevante que até “na linguagem mais secular, laica, falamos da família dos povos”.

Por fim, quanto às iniciativas a desencadear nas dioceses e paróquias, diz que são múltiplas e preveem – com o Dicastério dos Leigos, a Família e a Vida – “um compromisso direto de explicar alguns capítulos do documento” e “o envolvimento de todas as Igrejas locais na reflexão sobre os vários capítulos da Exortação”, uma vez que, até agora, “a atenção foi dada apenas ao capítulo VIII sobre a questão da comunhão para os casados ​​e divorciados, que é apenas um aspeto dos problemas”. E Dom Vincenzo deixa os seguintes pontos de reflexão: os poucos casamentos de jovens; o fechamento das famílias em si mesmas; a existência de “uma esterilidade de geração e não apenas em gerar filhos, mas também em gerar esperança, cultura e generosidade”; o tema da dificuldade de diálogo intergeracional; e a questão dos idosos.

Ora, é bom que todas essas fronteiras sejam ultrapassadas com as indicações que o Dicastério deu e que “cada Igreja local deve desenvolver com os homens e as mulheres de boa vontade”.

Assim seja!

2020.12.28 – Louro de Carvalho

Eleições presidenciais de 2021 são atípicas, mas não de candidato único

 

No seu comentário político do passado dia 27 de dezembro, na SIC, Marques Mendes opinou que as próximas eleições presidenciais são atípicas porque são três eleições dentro de uma.

E especificou: a primeira é para escolher o presidente, sendo Marcelo Rebelo de Sousa o único e verdadeiro candidato; a segunda será para perceber qual dos três candidatos à esquerda fica mais bem colocado, Ana Gomes, Marisa Matias ou João Ferreira, sendo esta mais uma questão para bolha jornalística e política; e a terceira é para saber quem vai ficar em segundo lugar.

Em relação à primeira escolha, a única dúvida é saber se Marcelo ficará acima ou abaixo dos 60% de votos, ou seja, se será muito ou pouco penalizado pela abstenção.

No atinente à liderança à esquerda, ou seja, saber quem à esquerda fica mais bem colocado – Ana Gomes, Marisa Matias ou João Ferreira – trata-se duma disputa que apenas interessa à bolha político-mediática, nada dizendo ao povo e nada acrescentando à política.

E a última questão não é tão importante para Ana Gomes, para quem o segundo lugar seria uma vantagem simbólica, como para o líder do Chega. Com efeito, quanto mais votos André Ventura conseguir nas presidenciais, maior será o dano para o PSD, visto que, para Ventura, são um ensaio para ver quantos votos consegue tirar ao PSD.

Se Ana Gomes ficar em segundo lugar, tem uma vitória simbólica, que se esgota no dia da eleição, ao passo que, para André ventura, a questão é essencial.

Considerando que André Ventura joga muito nestas eleições, o comentador sustenta que só o debate entre Ventura e Ana Gomes é que pode ter algum impacto nas intenções de voto, porque disputam o segundo lugar. Porém, Ana Gomes não lidera um partido nem pensa criar um novo partido, ao passo que André Ventura, que não está propriamente a concorrer para Belém, muito menos contra Marcelo, quer fazer destas eleições um ensaio para as próximas legislativas (E porque não para as autárquicas?) e vai tentar crescer o mais possível, retirando votos ao PSD, porque a maioria dos seus eleitores são do PSD. E, se as pessoas que normalmente votam no PSD se fidelizam no Chega, a situação é mais complicada para o PSD, que vai esvaziando o seu eleitorado, o que se vê já nas sondagens.

A este respeito, Marques Mendes, verificando que, no último mês foram publicadas, pelo menos, quatro sondagens sobre intenções de voto nos partidos, lembrou-se de fazer uma média de que resulta que o PSD fica com 25,6% e o PS com 37,8%, sendo a esquerda maioritária em relação à direita. E daqui tira, pelo menos, duas conclusões: abrir uma crise política e ter eleições antecipadas não serviria para nada nem beneficiaria ninguém, pois o PS continuaria a ganhar, mas sem chegar à maioria absoluta, enquanto O PSD continuava a perder; ao fim de 5 anos de oposição ainda não há alternativa (a democracia precisa de uma alternativa) – problema sério, desde logo para o PSD (com resultados abaixo de 30% ou até nos 30%, nunca o PSD conseguirá ganhar eleições), mas igualmente para a direita em geral, pois todos somados, os partidos à direita do PS não ultrapassam os 36% da PAF de Passos Coelho e Portas, de 2015, e não é possível formar governo com menos de 44-45% dos votos.

Para já, a pandemia tem beneficiado o poder, quer em Portugal, quer na Europa. Mas falta saber como será quando o impacto chegar ao domínio económico e social.

Assim, estando prestes a começar os debates entre os vários candidatos, o comentador pensa que os debates não terão impacto relevante no sentido de voto dos eleitores. Admite que uns vão ter mais audiência que outros (por exemplo, Marcelo Rebelo de Sousa vs Ventura e Marcelo vs Ana Gomes)mas sustenta que o único que pode ter real influência eleitoral é o debate Ventura/Ana Gomes, pois os dois estão muito próximos nas sondagens. E entende que os candidatos à esquerda estão demasiado focados no discurso do Chega e este agradece, pois, quanto mais de dele falarem, mais notoriedade lhe dão e as intenções de voto nas presidenciais estão a baixar à esquerda.

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Ora bem. Que um analfabeto em política partidária como eu, entenda que as próximas eleições presidenciais estejam vencidas pelo recandidato, é admissível. Porém, um político da nossa praça, que já liderou o maior partido da oposição, foi deputado, desempenhou cargos ministeriais, dinamizou ações de formação política e integra o Conselho de Estado, órgão de consulta do Presidente da República, não pode considerar, nem por um momento, que só há um “verdadeiro e único” candidato presidencial. Com efeito, a democracia também vive de regras e formalismos, pelo que ninguém pode decretar, à face da nossa Constituição, a recondução automática do Presidente da República. Aliás, em muitos setores do mundo associativo em que os estatutos e regulamentos impõem eleições dos corpos sociais, muitas vezes há lista única, mas faz-se a eleição. E a legitimidade do eleitor expressa-se no voto a favor, no voto branco e no voto nulo, bem como na abstenção, não sendo desejáveis as duas últimas hipóteses.

Outrossim, em democracia tudo pode acontecer e, havendo vários candidatos, cuja candidatura o Tribunal Constitucional validou ou validará, não pode ninguém, muito menos um comentador ou órgão de comunicação social, arvorar-se em classificador de candidatos em 1.ª, de 2.ª ou 3.ª. Tanto assim é que, nos termos do n.º 3 do art.º 124.º da Constituição, “em caso de morte de qualquer candidato (sublinhei) ou de qualquer outro facto que o incapacite para o exercício da função presidencial, será reaberto o processo eleitoral, nos termos a definir por lei”.

Além disso, caberá ao comentador político, além da análise da situação, uma função pedagógica de modo a contribuir para a valorização dos atos eleitorais e para o combate à abstenção, apelando à satisfação do direito/dever cívico de intervir politicamente. Andamos a lamentar o desinteresse dos cidadãos pela política e vamos mantendo incólumes os aparelhos partidários e fazendo o discurso adequado à manutenção do status quo da mediocridade e do desinteresse.

É óbvio que só haverá um ganhador nestas eleições, mas os diferentes candidatos, para lá de outras intenções com que pretendam preencher o palco da campanha eleitoral, podem fornecer aos cidadãos eleitores a sua visão do modo como deve ser desempenhada a função presidencial. E isso dependerá tanto dos candidatos como dos entrevistadores e dos moderadores dos debates. Ora, prendermo-nos com uma dose de vacina de gripe ou com a hipótese de dar posse a um Governo apoiado também por um determinado partido é paupérrimo em termos de debate eleitoral. E, mesmo no caso do recandidato, mais do que a avaliação do mandato que está prestes a chegar ao fim, importa saber o que pensa do futuro e do modo como pensa desempenhar a função presidencial em contexto de eventual crise sistémica polimorfa, no respeito pela separação dos poderes, que não pode ser apenas regra geral, e na construção da interdependência desses mesmos poderes, sem se colar ao Governo, ao Parlamento e ao poder judiciário e sem deles se demarcar, mas intervindo como firmeza, oportunidade e diálogo.

Quanto à propaganda a um determinado partido a cargo dos outros candidatos, é justo dizer que o comentador também a vai fazendo. Na verdade, se o Tribunal Constitucional (TC) deve analisar as candidaturas a criação de partidos com mais cuidado e se o Ministério Público deve motivar o TC a julgar eventuais discursos e atos de cariz racista, xenófobo e anti-humano, também é certo que os democratas devem ajudar os poderes a corrigir excesso, facilitismo e perversão que se instalam em órgãos do poder e organismos corporativos que servem o Estado.                 

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Não obstante, não se pode acusar Mendes de opção discriminatória na sociedade. Com efeito, ao falar de vacinas da covid-19, salienta não haver o risco de discriminações sociais, pois todos (ricos e pobres) terão o mesmo tratamento e as vacinas são gratuitas. Por outro lado, não há o risco de falta de adesão das pessoas, sendo que uma sondagem aponta para 62% dos portugueses que querem ser vacinados, percentagem que está a aumentar com a proximidade da vacina.

Assinalando o primeiro dia da vacinação contra a covid-19, referiu que a adesão entusiasta dos profissionais de saúde é o “maior sinal de segurança” e “um exemplo importante de confiança”. Mas avisou que é preciso moderar as expectativas porque ainda não assegurámos todas as vacinas de que precisamos, nem para as primeiras fases de vacinação.

Portugal tem 22 milhões de doses (o que dá para 11 milhões de portugueses: mais do que a nossa população), mas algumas vacinas ainda não foram aprovadas pela EMA e os processos das duas últimas, da Janssen e da Sanofi, estão atrasados. E explicitou:

No curto prazo só temos disponíveis 6,3 milhões de vacinas”; e é preciso vacinar 3,65 milhões de pessoas nas primeiras e duas fases. As vacinas autorizadas dão para 3,15 milhões pessoas, o que representa 86% das vacinações previstas na primeira e segunda fase. Para concluir as primeiras duas fases, Portugal precisa da vacina da Astra Zeneca/Oxford ou do reforço das doses de outras farmacêuticas que já têm autorização.”.

Depois, apresentou três quadros de cuja leitura resulta:

- Das 6 vacinas contratadas, há uma aprovada e outra em aprovação (Pfizer e Moderna)duas em início de avaliação (AstraZeneca/Universidade de Oxford e Curevac)e duas que ainda não estão em avaliação (Janssen e Sanofi/GSK) – cenário insuficiente para os desafios de vacinação;

- Na primeira e segunda fase da vacinação, está previsto vacinar 3.650 milhões de pessoas, sendo que as vacinas que vamos ter da Pfizer e da Moderna, mesmo que cheguem com rapidez, só dão para vacinar 3.150 milhões de pessoas, ou seja, cerca de 90% das pessoas previstas para as duas primeiras fases.

- Para atingirmos a imunidade de grupo, precisamos de, pelo menos, mais duas vacinas: a da AstraZeneca/Universidade de Oxford (é a que nos fornecerá maior número de doses) e mais uma, que pode ser a da Janssen (tem a vantagem de ser só uma “toma”) ou um reforço das doses da Moderna, reforço esse que a UE (União Europeia) vai assegurar.

Aliás, a Comissão Europeia acaba de anunciar que decidiu adquirir mais 100 milhões de doses da vacina BioNTech/ Pfizer, a juntar aos 200 milhões já contratados desta vacina que foi considerada “segura e eficaz”.    

Mendes considerou que as vacinas surgiram em tempo record por três razões conjuntas: um notável exemplo da ciência e da comunidade científica; o apoio financeiro público, quer da UE quer de vários países que financiaram em grande esta operação; e a inovadora decisão da UE que, fazendo compras em conjunto e para todos os Estados-Membros, permitiu que todos tenham vacinas ao mesmo tempo.

Por isso, é paladino da esperança, que não da euforia, pois, se não se explicar a situação, corre-se o risco de má gestão das expectativas, reforçando ansiedades e frustrações na população.

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Ainda em termos da equidade, destacou a notícia de que o Governo decidiu que os trabalhadores do Estado com contrato individual de trabalho passam a ser também beneficiários da ADSE, considerando-a uma medida justa, pois, se a ADSE é um “seguro” de saúde dos trabalhadores do Estado, não faz sentido haver trabalhadores de 1.ª e de 2.ª, e uma medida necessária para garantir a sustentabilidade da ADSE, como ainda há um ano realçou o Tribunal de Contas. Por outro lado, entende que não se trata dum favor político, pois a ADSE, hoje, não é do Estado, que não põe ali um único euro, pertencendo ela exclusivamente aos beneficiários (1 milhão e 200 mil), que são quem a sustenta com os seus descontos. Porém, o Estado não só não financia a ADSE como ainda lhe tira receitas. Com efeito, é o Estado quem determina quais os beneficiários que ficam isentos, mas não paga essas isenções. Ora, se é política social, é o OE que deve pagar.

Também referiu como prenda de Natal o aumento do salário mínimo nacional, que entende como medida correta, apesar de contestada à direita, contrariando aqui o seu partido. Na verdade, é uma medida elementar de justiça social e correta do ponto de vista económico, visto que a competitividade da economia não se pode fazer na base de salários baixos. E não se trata dum papão que afete o emprego, já que os últimos quatro anos provaram que é possível aumentar o SMN e ao mesmo tempo baixar o desemprego.

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E, dada a atualidade do acontecimento, o comentador, não esqueceu o acordo subsequente ao Brexit como excelente notícia para a presidência alemã da UE. Assim, a Alemanha pode dizer que termina a sua presidência em grande, pois resolveu todos os dossiês difíceis. E também sustenta que se trata de excelente notícia para a presidência portuguesa, pois, se este acordo não tivesse sido feito agora, o pesadelo do Brexit cairia na nossa presidência.

Também acha que o acordo é excelente para a UE. De facto, em si o Brexit foi mau, uma vez que tornou a UE mais fraca. Já este acordo torna o Brexit menos mau, pois, não deixando de ser um divórcio, é um divórcio amigável entre UE e UK (Reino Unido). Deixam de ser casados mas continuam parceiros e amigos. E entende que é excelente para o UK, visto que “uma coisa é querer sair da UE” e “outra coisa é estar de costas voltadas para a UE”. Ora, com este acordo, o UK evitou o caos e o isolamento da sua economia.

E sustenta, que à finalização deste acordo não será estranha a influência da nova atmosfera política vinda dos EUA. Biden quer reforçar a relação com a UE. Neste quadro, não fazia sentido que o UK (o maior aliado dos EUA) fizesse o contrário, afastando-se da UE a 27. 

Até o Parlamento britânico retificar o acordo, o que sucederá dentro de dias, e o Conselho Europeu o assumir formalmente, ele entra provisoriamente em vigor no próximo dia 1 de janeiro, por entendimento de reunião em que estiveram presentes representantes dos 27.

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Assim, fica patente que, sendo o comentador adepto da igualdade dos cidadãos e dos eleitores – caso da ADSE e do SMN –, só pode ter estado politicamente distraído ou movido pela amizade por Marcelo ao discriminar ou “anular” candidatos e o debate político eleitoral.

Estaremos para ver se os debates e a campanha em geral – com 8 ou 9 candidatos – se pautarão pela pobreza de ideias ou se enriquecerão a democracia. As eleições são atípicas, sim, mas pelo contexto de restrições impostas ou voluntariamente assumidas por causa da covid-19.

2020.12.29 – Louro de Carvalho

domingo, 27 de dezembro de 2020

Ele está mais perto de nós que nós de nós mesmos

 

No coração da oitava do Natal, a Liturgia celebra a Sagrada Família: Jesus, Maria e José. Na verdade, o nascimento de Jesus surge na moldura familiar com Maria e José, marcada pela humildade, tribulação e justiça, e que os artistas nos têm apresentado como o tipo apolíneo da beleza e da intangibilidade.

Porém, esta família em que Deus nasce na pessoa de Jesus de Nazaré é tudo menos família cor-de-rosa. A mãe concebera o filho quando ainda não casada; José, ao saber da gravidez da noiva, pensou em deixá-la em segredo, para não a difamar; o parto ocorreu fora da terra de residência e num estábulo, sem um mínimo de conforto; após da adoração dos magos, teve a família que se refugiar no Egito; o esposo de Maria morreu, cumprida a missão educacional; a mãe viu o filho apodado de louco porque ensinava doutrina diferente da dos doutores da Lei e viu-o condenado à morte de cruz no auge da vida terrena. Não obstante, esta é a Sagrada Família e a que nos é dada por modelo. Com efeito, para lá das tribulações, soube escutar a voz de Deus. Maria concebeu segundo o anúncio do anjo por vontade e obra, não de homem, mas de Deus; José foi posto fora da angústia porque o anjo explicou o mistério de que Maria era portadora como obra do Espírito Santo no cumprimento da promessa plasmada nas Escrituras; a família parte para o Egito e regressa conduzida por José e à voz do anjo, no primeiro momento, para escapar à sanha assassina de Herodes e, no segundo, para poder viver na tranquilidade da sua terra e concretizar a preparação do menino para a vida adulta e a pregação do Evangelho de Deus, segundo o desígnio até agora oculto, mas que Nele se tornou projeto audível e visível para os homens.    

Assim, enquanto dispomos do nosso olhar contemplativo para esta Família Sagrada, pela obediência à voz de Deus e pelo cultivo do amor que tudo suporta, somos convidados a perceber e concretizar a forte sensibilidade familiar que, no dizer de São Paulo VI, quando visitou Nazaré em 1974, nos dá três lições – a do silêncio orante, a da perceção da família como fulcro do crescimento e a do trabalho – e fazer a celebração festiva do nosso viver em família.

A perícopa evangélica assumida nesta liturgia (Lc 2,22-40) apresenta-nos a cena familiar da apresentação de Jesus no Templo de Jerusalém como pretexto para, em jeito de catequese bem amadurecida e bem refletida, nos dizer quem é Jesus e qual a sua missão no mundo.

Antes de mais, ressalta a fidelidade desta família à Lei do Senhor, deixando claro que Jesus, desde o início da sua caminhada entre os homens, viveu fiel ao mandamento do Pai. Com efeito, a sua missão no mundo passa pelo cumprimento da vontade do Pai.

Sobressai no cenário o velhinho Simeão (nome que significa “Escutador”), que vive atentamente à escuta e que o Evangelho apresenta como homem justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel. E, porque vivia de coração vigilante, veio ao Templo sob a moção do Espírito (en tô pneúmati), não por qualquer outra fonte de energia e alegria, antiga ou moderna. Porém, nós tendemos a falar a todo o tempo sem deixar vez e voz ao Espírito. E Jesus adverte: “Não sois vós que falais, mas o Espírito Santo(Mc 13,11; cf. Mt 10,20; Lc 12,12). Logo, há que esperar como Simeão, que entoa o canto feliz do entardecer da vida, um dos mais belos cantos bíblicos:

Agora, Senhor, deixas o teu servo partir em paz, porque os meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos, Luz que vem iluminar as nações e glória do teu povo, Israel!” (Lc 2,29-32).

As suas palavras e gestos são bem sugestivos. Toma carinhosamente Jesus nos braços – os Padres gregos dão a Simeão o título de Theodókhos (“recebedor de Deus”)e apresenta-O ao mundo, definindo-O como “a salvação” que Deus oferece “a todos os povos”, “luz para se revelar às nações e glória de Israel”. Jesus é, assim, reconhecido pelo Israel fiel como o Messias libertador e salvador que Deus enviou – não só ao seu povo, mas a todos os povos da terra.

Aqui desponta um dos temas muito queridos a Lucas: a universalidade da salvação de Deus. Deus não tem já um Povo eleito, mas a sua salvação é para todos os povos, independentemente das raças, culturas, fronteiras e esquemas religiosos. As palavras que Simeão dirige a Maria (“este menino foi estabelecido para que muitos caiam ou se levantem em Israel e para ser sinal de contradição; e uma espada trespassará a tua alma”) aludem à divisão que a obra de Jesus provocará em Israel e ao resultado dessa divisão – o drama da cruz.

Paralelamente, aparece a profetiza Ana (que significa “Graça”), uma velhinha carregada de graça e de esperança e também sintonizada com a Palavra de Deus escutada, vivida e anunciada. E diz o texto que era filha de Fanuel (que significa “Rosto de Deus”) e da tribo de Aser (que quer dizer “Felicidade”). Também ela, serena e feliz, com 84 anos (número perfeito de números perfeitos: 7 x 12), teve a graça de ver o Menino e “falava daquele Menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém(Lc 2,38).

Vemos então que, no Templo, duas personalidades acolhem Jesus – Simeão e Ana – que representam esse Israel fiel que espera ansiosamente a sua libertação e a restauração do reinado de Deus sobre o seu Povo. Simeão esperava e Ana anunciava. Nestes dois maravilhosos velhinhos espelha-se a Escritura dos dois Testamentos e o retrato a corpo inteiro do Consagrado, que, na Bíblia hebraica, se diz Nazîr, nome passivo e recetivo do totalmente dedicado a Deus, conduzido por Deus, “compondo” com emoção os acontecimentos de Deus no seu coração.

O termo grego utilizado por Lucas para falar de libertação é “lýtrôsis(“resgate”), que surge no Êxodo para falar da libertação da escravidão do Egito (cf Ex 13,13-15; 34,20; Nm 18,15-16). Jesus é, assim, apresentado como o Messias libertador, que guiará o seu Povo do domínio da escravidão para o domínio da liberdade. A apresentação no Templo dum primogénito celebrava a libertação do Egito e a passagem da escravidão para a liberdade (cf Ex 13,11-16).

O texto termina com uma referência ao resto da infância de Jesus e ao crescimento do menino em “sabedoria” (sophía) e “graça” (kháris) – atributos vindos do Pai, que atestam a sua divindade.

Em conclusão: Jesus é o Deus que vem ao encontro dos homens com uma missão que lhe foi confiada pelo Pai. O objetivo de Jesus é cumprir integralmente o projeto do Pai: levar os homens da escravidão para a liberdade e apresentar o desígnio de salvação de Deus a todos os povos da terra, mesmo aos que não pertencem tradicionalmente à comunidade do Povo de Deus.

Simeão e Ana viram a Luz e exultaram de Alegria. Hoje somos nós quem se chama Simeão e Ana, pois recebemos a Luz nos braços fazemos parte da família da felicidade e vivemos pertinho de Deus, face a face com Deus, escutando atenta e vigilantemente o bater do coração de Deus, movidos pelo Espírito de Deus, recebedores de Deus, anunciadores de Deus.

No quadro da temática da família, o Antigo Testamento traz-nos dois trechos sapienciais do Livro de Ben Sirah (Sir 3,3-7.14-17a), que nos convida ao amor dedicado aos pais, para que o Senhor ponha sobre nós o seu olhar de bondade, sendo “honrar” a palavra que preside a este conjunto de conselhos do “sábio” Ben Sirah (repete-se 5 vezes, nestes versículos).

O termo leva-nos ao Decálogo do Sinai (“honra teu pai e tua mãe” – Ex 20,12). É usado o verbo “kabad”, traduzível por “dar glória”, “dar peso”, “dar importância”. Assim, “honrar os pais” é dar-lhes o devido valor e reconhecer a sua importância, pois são os instrumentos de Deus, fonte de vida. Este reconhecimento dos pais como os instrumentos pelos quais Deus nos concede a vida deve levar os filhos à gratidão, que não é só uma declaração de intenções, mas um sentimento que implica atitudes práticas, como ampará-los na velhice e não os desprezar nem abandonar; assisti-los materialmente – sem inventar qualquer desculpa – quando já não podem trabalhar (cf Mc 7,10-11); não fazer nada que os desgoste; escutá-los, ter em conta as suas orientações e conselhos; ser indulgente para com as limitações da idade ou da doença…

Como recompensa desta atitude de “honrar os pais”, Jesus Ben Sira promete o perdão dos pecados, a alegria, a vida longa e a atenção de Deus.

E o apóstolo Paulo (Col 3,12-21) propõe-nos viver em família revestidos do “Homem Novo”, ou seja, cultivando aquele conjunto de virtudes que resultam da união com Cristo: misericórdia, bondade, humildade, mansidão, paciência – com especial lugar para o perdão das ofensas –, a exemplo de Cristo que sempre manifestou a sua imensa capacidade de perdoar. Trata-se de exigências e manifestações da caridade, que é a fonte de onde brotam todas as virtudes do cristão. É certo que também os gregos enumeravam como exigência do viver humano uma série de virtudes. Porém, em Paulo e segundo o Evangelho, estas virtudes, porque resultantes da íntima relação do crente com Cristo, levam à verdade, à universalidade, à totalidade, à radicalidade. Assim, a humildade implica o respeito e cultivo da dignidade total em nós e nos outros, não podendo nós querer ser superiores a alguém, nem fingir pequenez para que nos engrandeçam; o perdão é para aplicar sempre e para com todos. Enfim, viver “em Cristo” implica viver, como Ele, no amor total, no serviço, na disponibilidade, no dom da vida, num dinamismo de amor não autossatisfatório, mas num amor oblativo, nada interesseiro e nada narcisista, mas extensivo a todos, os de perto e os de longe, sem distinção de amigos e inimigos.  

Aplicando o ideal da vida cristã ao âmbito concreto da vida familiar, o apóstolo faz recomendações específicas a cada elemento da família: à esposa, o respeito para com o marido (a submissão, que não sujeição, linguagem epocal, deve ser percebida como concórdia); ao marido, o amor à esposa, contra o domínio tirânico sobre ela; aos filhos, a obediência aos pais; aos pais, com intuição pedagógica, a firmeza e moderação para com os filhos, para não impedirem o normal desenvolvimento das suas capacidades e favorecerem a autonomia. Para todos, a “caridade” (“agapê”) – entendida como amor de doação, de entrega, a exemplo de Jesus que amou até ao dom da vida – que deve presidir às relações entre os membros da família.

É desta forma que, no espaço familiar, se manifesta o Homem Novo, o homem transformado por Cristo e que vive segundo Cristo.

E, considerando os sobreditos predicados paulinos como os vestidos próprios para a festa, mas que não se compram num pronto-a-vestir, diz o Bispo de Lamego, Dom António Couto, que “nesta época de bastante consumismo, convém que nunca nos esqueçamos de Deus, pois é Ele, e só Ele, que veste carinhosamente o coração e as entranhas dos seus filhos”.

Distraídos não damos conta de Deus em nós, nem de nós. A alienação de nós e da família, feita e regada no amor, vínculo de perfeição, afasta-nos de nós. E é porque nunca Se desligou do efetivo e afetivo laço familiar dentro de Si e para os homens, que enche do seu amor, que Ele está connosco e teima em fazer-Se Natal redentor nos corações. E é pelo amor total, feito dádiva generosa, que Ele não Se distrai e está em nós, mais perto do que nós pensamos e sentimos.

2020.12.27 – Louro de Carvalho