domingo, 6 de dezembro de 2020

Não há pandemia nem crise que possa extinguir a luz do Natal

 

Após a oração mariana do Angelus, o Papa Francisco falou, neste 2.º domingo do Advento no Ano B, da árvore de Natal e do Presépio que estão a ser preparados na Praça São Pedro e, recordando que, nestes dias, em muitas casas, estão a ser preparados estes sinais natalinos para a alegria das crianças e dos adultos, vincou:

Estes são sinais de esperança, especialmente nestes tempos difíceis. Tenhamos o cuidado de não nos determos no sinal, mas de ir ao sentido, isto é, a Jesus: ao amor de Deus que Ele nos revelou, de ir à infinita bondade que fez brilhar o mundo. Não há nenhuma pandemia, nenhuma crise que possa extinguir esta luz. Deixemo-la entrar em nossos corações: estendamos nossas mãos àqueles que mais necessitam. Assim, Deus nascerá de novo em nós e em nosso meio.”.

Na verdade, o texto da passagem de Isaías assumida para 1.ª leitura desta dominga (Is 40,1-5.9-11) pertence ao “Livro da Consolação”, do Deuteroisaías (cf Is 40-55), autor convencional com que os biblistas designam um profeta anónimo da escola de Isaías que terá profetizado na Babilónia, entre os exilados (alguns situem a sua atividade em Jerusalém), na fase final do Exílio (550 - 539 a.C.), em que muitos dos exilados não entendiam porque permitiu Deus o drama do exílio, enquanto outros, instalados e acomodados, não pensavam em regressar à sua terra nem esperavam nada de Deus. Não obstante, a notícia das vitórias de Ciro, o persa, sobre os babilónios levam a esperar o desmoronamento do império babilónico e a libertação dos exilados. E a questão que se levanta é se a esperada libertação deve ser atribuída ao Senhor ou aos deuses persas. Se ao Senhor, então porque é escolheu um estrangeiro e não um membro do Povo de Deus para realizar a obra da libertação? E valerá a pena o regresso e encarar as dificuldades do recomeço?

Assim, a mensagem do Deuteroisaías consola os exilados e aponta-lhes as novas razões da esperança. Anuncia a iminência da libertação e compara a saída da Babilónia ao êxodo, quando Deus libertou o Povo da escravidão do Egito, sendo Ciro o escolhido do Senhor para instrumento de Deus na libertação de Judá. Depois, vem o anúncio da reconstrução de Jerusalém, que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus fará voltar a alegria e a paz sem fim.

No texto em referência na liturgia desta dominga, o profeta é enviado por Deus a anunciar “ao coração de Jerusalém” que a “consolação” do Senhor está próxima, sugerindo a imagem do “falar ao coração” a relação de amor e ternura entre o Senhor e o seu Povo.

Esta consolação consiste na dádiva do perdão de Deus fazendo terminar o tempo de rutura e afastamento a que estavam remetidos os judeus que se sentiam indignos e pecadores, a fim de se reencontrarem em comunhão entre si e em aliança com o seu Deus.

Para tanto, o profeta importa uma imagem do universo militar, garantindo que o tempo do serviço militar obrigatório acabou, e uma imagem importada do universo cultual, assegurando que o castigo que o Povo sofreu foi aceite pelo Senhor, apenas restando que se ouça a voz que apela a que se prepare “no deserto o caminho do Senhor”, se abra “na estepe uma estrada para o nosso Deus”. Evocar o deserto remete para o Êxodo, o acontecimento fundamental da história e da fé de Israel, a libertação do Egito e a viagem da terra da escravidão para a terra da liberdade, tendo feito o Povo a experiência de encontro com Deus. A referência ao caminho pelo deserto sugere que Deus prepara um Novo Êxodo para o seu Povo e rasgará um caminho fácil, direito, glorioso, triunfal, pelo qual os exilados passarão da terra da escravidão à terra da liberdade, numa retoma atualizada e benfazeja do Êxodo. E o profeta quererá, sobretudo, dizer aos exilados que Deus lhes vai oferecer, de novo, a possibilidade de uma “caminhada espiritual”, em que poderão fazer uma nova experiência do amor e da bondade de Deus e redescobrir os caminhos da comunhão e da aliança, o que postula a preparação do espírito para o acolhimento desta nova possibilidade que Deus oferece.

Por fim, o trecho põe em cena um “mensageiro” (em grego, “euaggelistês” e, em hebraico, no feminino “mebasseret – um “evangelista”) que eleva a sua voz sobre uma alta montanha e proclama uma “boa notícia” a Jerusalém e às outras cidades de Judá: o Deus poderoso do Êxodo (“vem com poder, o seu braço dominará”) conduz pessoalmente o seu Povo de regresso à Terra Prometida. É o Pastor que reúne e apascenta o seu rebanho, cuida das ovelhas frágeis, das que amamentam e das recém-nascidas e as conduz ao seu descanso, oferece de novo ao seu Povo a vida e a fecundidade.

A clara referência às ovelhas mais fracas, às recém-nascidas e às que amamentam – objeto de especial cuidado de Deus, o Pastor – vinca o amor, a ternura e a solicitude do Senhor pelo Povo e constitui a mensagem de consolação destinada a despertar nos exilados a fé e a esperança.

É a mensagem que temos o dever de emprestar aos nossos semelhantes em tempo de pandemia e de crise socioeconómica porque vem aí o Natal, porque o Natal está entre nós, nada havendo que possa extinguir a sua luz ou obnubilar os sinais de Deus.

Assenta Dom António Couto, Bispo de Lamego, em que “a boa metodologia da Evangelização tem o seu modelo em ‘Deus-que-Vem’ ao nosso encontro para cuidar de nós com carinho” devendo continuar a fazer-se “através do anúncio que devemos fazer acompanhado do fazer das nossas mãos carinhosas”. Assim, o texto de Isaías documenta a passagem do arauto masculino (mebasser) para o feminino (mebasseret), para designar “a própria Cidade de Sião ou Jerusalém, personificada e evangelizadora das suas cidades irmãs” – uma “cidade evangelizada que se transforma naturalmente em evangelizadora”.

Estamos, como diz o académico e prelado, nas nascentes do termo Evangelho”, vendo-se claramente que “a Notícia é Deus que vem”, pois “Deus não salva o seu povo com programas feitos à distância nem com conceções teológicas friamente administradas desde cima”, mas Deus está em saída: “Deus vem!”.

***

O trecho do Evangelho desta dominga (Mc 1,1-8) evidencia que se trata da Boa Nova de Jesus, o Filho de Deus e foca uma das fortes personagens do Advento, João, o precursor, enunciando o seu estilo de vida, a sua missão e a reação dos ouvintes. Se Isaías, com a sua pertinente eloquência fala de outrora, de longe, João fala do hoje e aqui.

João não vive num palácio, mas no deserto (lugar onde o Povo de Deus realizou uma caminhada de purificação e conversão); não mostra poder e riqueza, mas critica quem se agarra ao poder e obtém a riqueza a todo o custo; não é dono de nada nem de ninguém, mas é o servo cuja alegria é servir ‘Aquele-que-Vem’; não fala de si, mas o seu falar não é vanglória autorreferencial, é “dizer Outro”; veste-se e alimenta-se com o que o deserto dá (veste-se com pelos de camelo, cinge-se com uma correia e come gafanhotos e mel silvestre). João, como Elias (são os únicos na Bíblia que se vestem com pelos de camelo), veste-se com pelos de camelo. É um homem essencial, reto, puro e duro. Não é um homem-cana, pois a cana é oca e pode ser fendida e agitada pelo vento.

E Dom António Couto, vendo que “nunca faltaram e nunca faltarão, na humana paisagem, homens-cana, ocos, vazios e oscilantes, em abundância”, admite que “talvez o sejamos nós também”. E, se assim for, “é, então, a nós também que João Batista chama ao deserto, ao essencial, à confissão dos pecados, a alijar a carga inútil de mentiras, devaneios e vaidades”. Com efeito, como diz o ilustre prelado, “no deserto aprende-se o essencial” e “o deserto devolve-nos a nossa verdadeira identidade alteritária”, vendo-se ali que Deus vem em nosso auxílio, aprendendo-se “a lição de que somos irmãos” e entrando “em curto-circuito os nossos circuitos fechados, egolátricos, egocêntricos, autorreferenciais”. Daí, o convite a uma visita guiada pela perícopa evangélica em referência, cuja tradução diverge da oficial litúrgica:

«Início do Evangelho de Jesus Cristo [Filho de Deus] (archê toû euaggelíou Iêsoû Christoû [hyioû theoû]). Como está escrito em Isaías, o profeta: “Eis que envio (apostéllô) o meu mensageiro (ággelós mou) diante da tua face (prò prosôpou sou), o qual preparará o teu caminho (hodós sou). Voz de um que grita no deserto: “Preparai o caminho do Senhor (hodós kyríou), fazei direitas as suas veredas”. Aconteceu João a batizar no deserto e a anunciar (kêrýssô) um batismo de conversão para a remissão dos pecados. E saía (exeporeúeto: imperf. de ekporeúomai) para ele toda a região da Judeia e todos os habitantes de Jerusalém, e eram batizados (ebaptízonto: imperf. pass. de baptízô) por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados. E João andava vestido de pelos de camelo e um cinto de pele à volta dos seus flancos, e alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre. E anunciava (ekêryssen: imperf. de kêrýssô), dizendo: “Vem (érchetai) o mais forte do que eu (ho ischyróterós mou) depois de mim, do qual eu não sou competente (ikanós), inclinando-me, de desatar a correia das suas sandálias. Eu batizei-vos em água, mas ele batizar-vos-á no Espírito Santo”».

O trecho assinala, em relação ao que se vai seguir (Novo Testamento: NT), o início e, em relação ao antecedente (Antigo Testamento: AT), assinala o cumprimento da profecia. João, como homem do deserto, aponta o essencial. Indica Aquele-que-Vem e que fica no meio de nós. O Batista é provisório, pois só lava com água, mas “é único”, pois eram recorrentes, entre os judeus, os banhos e abluções em ordem à purificação. Porém, os que o procuram não tomam o usual banho de purificação: é João quem os batiza. E, por esta forma de fazer insólita de fazer é que João recebe o cognome de Batista, sendo, no mundo judaico, o primeiro que batiza outros.

O batismo de penitência (literalmente, “batismo de conversão” ou de “metanoia”) proposto e ministrado por João representa o convite à mudança radical de vida, de comportamento, de atitude, de mentalidade, não bastando abandonar este ou aquele pecado. Na perspetiva de João, este batismo é um rito de iniciação à comunidade messiânica: quem aceitava este batismo passava a viver uma vida nova e aceitava integrar a comunidade do Messias.

Ora, se João é provisório, ‘Aquele-que-Vem’ é definitivo, o Alpha e o Ómega, o Primeiro e o Último”, o Princípio e o Fim; e, dando “o Espírito Santo sem medida, admite à comunhão com Deus”. O que João faz “é em ordem ao Fazer novo e criador d’Aquele-que-Vem com o Espírito Santo, que tem e dá a Vida verdadeira”.

Adverte Dom António Couto que a citação dita de Isaías (Mc 1,2) é um mixtum de Malaquias 3,1 e de Isaías 40,3. No referido segmento de Malaquias, lemos, com Deus em primeira pessoa: “Vou enviar o meu mensageiro e ele preparará o meu caminho diante de mim…”. E Malaquias refere, mais adiante (3,23), que o mensageiro é Elias. Marcos muda, na citação, duas formas pronominais, a mostrar a importância d’Aquele-que-Vem: “Vou enviar o meu mensageiro diante de ti, o qual preparará o teu caminho”. Continua, pois, a ser o mensageiro de Deus (meu) que é enviado; e é-o para preparar o caminho de Jesus (teu), adiante de Jesus (ti). O mensageiro é João, que satisfaz a função de Elias (cf Mc 9,13; Mc 11,14). E a citação de Isaías 40,3 aparece inalterada em Marcos 1,3: «Voz do que clama no deserto: “Preparai o caminho do Senhor”», em que a voz é João e o caminho do Senhor é o de Jesus, o Filho de Deus que vem até nós e cuja vinda devemos preparar, pois não basta ficar à espera, mas a sua relevância postula a espera ativa da preparação e da esperança. No entanto, o caminho santo do Advento (“Ele mesmo andará nesse caminho” – Is 35,8) não é tanto o nosso caminho para Deus, mas, antes de mais, “o caminho de Deus para nós”.

João não se sente capaz (ikanós) de desatar a correia das sandálias d’Aquele-que-Vem (1,7). É, sem dúvida, a confissão de humildade da parte de João face a Quem lhe é incomparavelmente superior. Porém, Dom António Couto, para mostrar que esta confissão de humildade “não esgota a metáfora das sandálias”, cita o artigo “As sandálias do Messias noivo”, de Luís Alonso-Schökel, que remete “este dizer e esta metáfora para o domínio da esponsalidade do Messias”, visto que, segundo referem os Salmos 60,10 e 108,9, “pôr a sandália sobre” significa “tomar posse de” – “linguagem jurídica de posse”. Efetivamente, segundo o Deuteronómio (Dt 25,5-9), o não cumprimento da lei do levirato implica a retirada a sandália ao cunhado não cumpridor da lei, o que lhe garante a perda de posse no âmbito matrimonial. Aqui já se trata de direito matrimonial; e, em Rute 4,7-10, temos um caso daquele que tem o direito de resgatar o património e de desposar Rute, mas prescinde desse direito. Para o dizer juridicamente, em reunião pública à porta da cidade (Rt 4,1), o homem em causa tira a sandália e entrega-a a Booz, que fica com o direito de resgatar o património e desposar Rute. Por isso, a metáfora da sandália em Marcos 1,7 e nos demais dizeres do NT “significa também que é Jesus o noivo, a quem assiste o direito de desposar Israel, e que a João não assiste esse direito ou competência”.

Segundo Marcos, acorria a João “toda a gente” da região da Judeia e todos os habitantes de Jerusalém” para serem batizados, confessando os seus pecados. Porém, há de ter-se em conta que essa afirmação é hiperbólica. Contudo, ao apresentar esta perspetiva ideal da forma como a mensagem foi acolhida pelo Povo, Marcos sugere o caráter decisivo e determinante da proposta que João faz: não é “mais um” convite à conversão, mas é o último e definitivo apelo de Deus ao seu Povo.

Ademais, a identificação física de João com Elias significa que a era messiânica chegou e que João é o mensageiro esperado, cuja mensagem prepara a chegada do Messias libertador. João fala da força do Messias e define a sua missão como “batizar no Espírito”. Tanto a fortaleza como o dom do Espírito são prerrogativas do Messias, segundo a catequese profética (cf Is 9,6; 11,2). Portanto, o Messias terá a força de Deus e a sua missão será comunicar esse Espírito de Deus, que transforma, renova e recria os corações dos homens.

Em suma, João é o mensageiro enviado por Deus para preparar os homens para a chegada do Messias. A mensagem transmitida por João – com a palavra e com a vida – é um apelo à mudança de vida e de mentalidade, para que a proposta do Libertador encontre lugar no coração do homem e lhe comunique o Espírito que o transforma, na pessoa e na comunidade.

Enfim, se o Advento é sobretudo o caminho de Deus ao nosso encontro, também, como alerta São Pedro (2 Pe 3,8-14), no trecho tomado como 2.ª leitura desta dominga, o tempo de Deus não é o nosso tempo, pois “um dia, para Ele, é como mil anos e mil anos como um dia” (2 Pe 3,8; cf Sl 90,4). É a paciência de Deus que espera a nossa conversão, que é uma graça que tem de se pedir, acolher e cultivar. O tempo é-nos dado para alijarmos futilidades que nos pesam e nos prendem.

Por isso, o Advento reclama de nós vestes novas, dado que novos céus e nova terra surgirão (2Pe 3,13), habitados por filhos e irmãos, que entendem a nova linguagem da paz, justiça, fidelidade, mansidão, misericórdia (Sl 85) – o que postula, como o Papa dizia neste domingo, “desapego do pecado e da mundanização e busca de Deus e do seu reino”, sabendo-se que “o abandono do conforto e da mentalidade mundana não é por si só um objetivo, mas visa alcançar algo maior, ou seja, o reino de Deus, a comunhão com Deus, a amizade com Deus”.  

Se percebermos os sinais do Deus que vem, teremos um Natal como nunca tivemos!

2020.12.06 – Louro de Carvalho

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