Após a oração
mariana do Angelus, o Papa Francisco falou, neste 2.º domingo do Advento no Ano
B, da árvore de Natal e do Presépio que estão a ser preparados na Praça São
Pedro e, recordando que, nestes dias, em muitas casas, estão a ser preparados
estes sinais natalinos
para a alegria das crianças e dos adultos, vincou:
“Estes são sinais de esperança,
especialmente nestes tempos difíceis. Tenhamos o cuidado de não nos determos no
sinal, mas de ir ao sentido, isto é, a Jesus: ao amor de Deus que Ele nos
revelou, de ir à infinita bondade que fez brilhar o mundo. Não há nenhuma
pandemia, nenhuma crise que possa extinguir esta luz. Deixemo-la entrar em
nossos corações: estendamos nossas mãos àqueles que mais necessitam. Assim,
Deus nascerá de novo em nós e em nosso meio.”.
Na verdade,
o texto da passagem de Isaías assumida para 1.ª leitura desta dominga (Is 40,1-5.9-11) pertence
ao “Livro da Consolação”, do Deuteroisaías (cf Is 40-55), autor convencional com que os
biblistas designam um profeta anónimo da escola de Isaías que terá profetizado
na Babilónia, entre os exilados (alguns situem a sua atividade em
Jerusalém), na fase
final do Exílio (550 - 539 a.C.), em que muitos dos exilados não
entendiam porque permitiu Deus o drama do exílio, enquanto outros, instalados e
acomodados, não pensavam em regressar à sua terra nem esperavam nada de Deus.
Não obstante, a notícia das vitórias de Ciro, o persa, sobre os babilónios
levam a esperar o desmoronamento do império babilónico e a libertação dos exilados.
E a questão que se levanta é se a esperada libertação deve ser atribuída ao
Senhor ou aos deuses persas. Se ao Senhor, então porque é escolheu um
estrangeiro e não um membro do Povo de Deus para realizar a obra da libertação?
E valerá a pena o regresso e encarar as dificuldades do recomeço?
Assim,
a mensagem do Deuteroisaías consola os exilados e aponta-lhes as novas razões da
esperança. Anuncia a iminência da libertação e compara a saída da Babilónia ao êxodo,
quando Deus libertou o Povo da escravidão do Egito, sendo Ciro o escolhido do
Senhor para instrumento de Deus na libertação de Judá. Depois, vem o anúncio da
reconstrução de Jerusalém, que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus fará voltar
a alegria e a paz sem fim.
No
texto em referência na liturgia desta dominga, o profeta é enviado por Deus a
anunciar “ao coração de Jerusalém” que a “consolação” do Senhor está próxima,
sugerindo a imagem do “falar ao coração” a relação de amor e ternura entre o
Senhor e o seu Povo.
Esta consolação consiste na dádiva do perdão de Deus fazendo
terminar o tempo de rutura e afastamento a que estavam remetidos os judeus que
se sentiam indignos e pecadores, a fim de se reencontrarem em comunhão entre si
e em aliança com o seu Deus.
Para tanto, o profeta importa uma imagem do universo militar,
garantindo que o tempo do serviço militar obrigatório acabou, e uma imagem
importada do universo cultual, assegurando que o castigo que o Povo sofreu foi
aceite pelo Senhor, apenas restando que se ouça a voz que apela a que se
prepare “no deserto o caminho do Senhor”, se abra “na estepe uma estrada para o
nosso Deus”. Evocar o deserto remete para o Êxodo, o acontecimento fundamental
da história e da fé de Israel, a libertação do Egito e a viagem da terra da
escravidão para a terra da liberdade, tendo feito o Povo a experiência de
encontro com Deus. A referência ao caminho pelo deserto sugere que Deus prepara
um Novo Êxodo para o seu Povo e rasgará um caminho fácil, direito, glorioso,
triunfal, pelo qual os exilados passarão da terra da escravidão à terra da
liberdade, numa retoma atualizada e benfazeja do Êxodo. E o profeta quererá,
sobretudo, dizer aos exilados que Deus lhes vai oferecer, de novo, a
possibilidade de uma “caminhada espiritual”, em que poderão fazer uma nova
experiência do amor e da bondade de Deus e redescobrir os caminhos da comunhão
e da aliança, o que postula a preparação do espírito para o acolhimento desta
nova possibilidade que Deus oferece.
Por fim, o trecho põe em cena um “mensageiro” (em grego, “euaggelistês” e, em hebraico, no feminino “mebasseret” – um “evangelista”) que eleva a sua voz sobre uma alta
montanha e proclama uma “boa notícia” a Jerusalém e às outras cidades de Judá:
o Deus poderoso do Êxodo (“vem
com poder, o seu braço dominará”) conduz pessoalmente o seu Povo de regresso à Terra
Prometida. É o Pastor que reúne e apascenta o seu rebanho, cuida das ovelhas frágeis,
das que amamentam e das recém-nascidas e as conduz ao seu descanso, oferece de
novo ao seu Povo a vida e a fecundidade.
A clara referência às ovelhas mais fracas, às recém-nascidas
e às que amamentam – objeto de especial cuidado de Deus, o Pastor – vinca o
amor, a ternura e a solicitude do Senhor pelo Povo e constitui a mensagem de
consolação destinada a despertar nos exilados a fé e a esperança.
É a mensagem que temos o dever de emprestar aos nossos
semelhantes em tempo de pandemia e de crise socioeconómica porque vem aí o
Natal, porque o Natal está entre nós, nada havendo que possa extinguir a sua
luz ou obnubilar os sinais de Deus.
Assenta Dom
António Couto, Bispo de Lamego, em que “a boa metodologia da Evangelização tem
o seu modelo em ‘Deus-que-Vem’ ao nosso encontro para cuidar de nós com carinho”
devendo continuar a fazer-se “através do anúncio que devemos fazer acompanhado
do fazer das nossas mãos carinhosas”. Assim, o texto de Isaías documenta a
passagem do arauto masculino (mebasser) para o feminino (mebasseret), para designar “a própria Cidade de Sião ou Jerusalém,
personificada e evangelizadora das suas cidades irmãs” – uma “cidade evangelizada
que se transforma naturalmente em evangelizadora”.
Estamos,
como diz o académico e prelado, nas nascentes do termo Evangelho”, vendo-se claramente que “a Notícia é Deus que vem”, pois
“Deus não salva o seu povo com programas feitos à distância nem com conceções
teológicas friamente administradas desde cima”, mas Deus está em saída: “Deus vem!”.
***
O trecho do Evangelho
desta dominga (Mc 1,1-8) evidencia
que se trata da Boa Nova de Jesus, o Filho de Deus e foca uma das fortes
personagens do Advento, João, o precursor, enunciando o seu estilo de vida, a
sua missão e a reação dos ouvintes. Se Isaías, com a sua pertinente eloquência
fala de outrora, de longe, João fala do hoje e aqui.
João não
vive num palácio, mas no deserto (lugar
onde o Povo de Deus realizou uma caminhada de purificação e conversão); não mostra poder e riqueza, mas critica quem se
agarra ao poder e obtém a riqueza a todo o custo; não é dono de nada nem de
ninguém, mas é o servo cuja alegria é servir ‘Aquele-que-Vem’; não fala de si,
mas o seu falar não é vanglória autorreferencial, é “dizer Outro”; veste-se e
alimenta-se com o que o deserto dá (veste-se com pelos de camelo,
cinge-se com uma correia e come gafanhotos e mel silvestre). João, como Elias (são os únicos na Bíblia que se
vestem com pelos de camelo), veste-se
com pelos de camelo. É um homem essencial, reto, puro e duro. Não é um
homem-cana, pois a cana é oca e pode ser fendida e agitada pelo vento.
E Dom
António Couto, vendo que “nunca faltaram e nunca faltarão, na humana paisagem,
homens-cana, ocos, vazios e oscilantes, em abundância”, admite que “talvez o
sejamos nós também”. E, se assim for, “é, então, a nós também que João Batista
chama ao deserto, ao essencial, à confissão dos pecados, a alijar a carga
inútil de mentiras, devaneios e vaidades”. Com efeito, como diz o ilustre
prelado, “no deserto aprende-se o essencial” e “o deserto devolve-nos a nossa
verdadeira identidade alteritária”, vendo-se ali que Deus vem em nosso auxílio,
aprendendo-se “a lição de que somos irmãos” e entrando “em curto-circuito os
nossos circuitos fechados, egolátricos, egocêntricos, autorreferenciais”. Daí,
o convite a uma visita guiada pela perícopa evangélica em referência, cuja
tradução diverge da oficial litúrgica:
«Início do Evangelho de Jesus Cristo [Filho
de Deus] (archê toû euaggelíou Iêsoû Christoû [hyioû theoû]).
Como está escrito em Isaías, o profeta: “Eis que envio (apostéllô)
o meu mensageiro (ággelós mou) diante da tua face
(prò prosôpou sou), o qual preparará o teu caminho (hodós
sou). Voz de um que grita no deserto: “Preparai o caminho do Senhor (hodós
kyríou), fazei direitas as suas veredas”. Aconteceu João a batizar no
deserto e a anunciar (kêrýssô) um batismo de conversão para a remissão
dos pecados. E saía (exeporeúeto: imperf. de ekporeúomai)
para ele toda a região da Judeia e todos os habitantes de Jerusalém, e eram
batizados (ebaptízonto: imperf. pass. de baptízô) por ele no
rio Jordão, confessando os seus pecados. E João andava vestido de pelos de
camelo e um cinto de pele à volta dos seus flancos, e alimentava-se de gafanhotos
e mel silvestre. E anunciava (ekêryssen: imperf. de kêrýssô),
dizendo: “Vem (érchetai) o mais forte do que eu (ho ischyróterós mou)
depois de mim, do qual eu não sou competente (ikanós), inclinando-me, de
desatar a correia das suas sandálias. Eu batizei-vos em água, mas ele
batizar-vos-á no Espírito Santo”».
O trecho
assinala, em relação ao que se vai seguir (Novo Testamento: NT), o início e, em relação ao antecedente (Antigo
Testamento: AT), assinala o
cumprimento da profecia. João, como homem do deserto, aponta o essencial.
Indica Aquele-que-Vem e que fica no meio de nós. O Batista é provisório, pois
só lava com água, mas “é único”, pois eram recorrentes, entre os judeus, os
banhos e abluções em ordem à purificação. Porém, os que o procuram não tomam o usual
banho de purificação: é João quem os batiza. E, por esta forma de fazer
insólita de fazer é que João recebe o cognome de Batista, sendo, no mundo
judaico, o primeiro que batiza outros.
O batismo de penitência (literalmente,
“batismo de conversão” ou de “metanoia”) proposto e ministrado por João representa o convite à
mudança radical de vida, de comportamento, de atitude, de mentalidade, não
bastando abandonar este ou aquele pecado. Na perspetiva de João, este batismo é
um rito de iniciação à comunidade messiânica: quem aceitava este batismo
passava a viver uma vida nova e aceitava integrar a comunidade do Messias.
Ora, se João
é provisório, ‘Aquele-que-Vem’ é definitivo, o Alpha e o Ómega, o Primeiro e o Último”,
o Princípio e o Fim; e, dando “o Espírito Santo sem medida, admite à comunhão
com Deus”. O que João faz “é em ordem ao Fazer novo e criador d’Aquele-que-Vem
com o Espírito Santo, que tem e dá a Vida verdadeira”.
Adverte Dom
António Couto que a citação dita de Isaías (Mc 1,2) é um mixtum
de Malaquias 3,1 e de Isaías 40,3. No referido segmento de Malaquias, lemos, com
Deus em primeira pessoa: “Vou enviar o meu mensageiro e ele
preparará o meu caminho diante de mim…”. E
Malaquias refere, mais adiante (3,23), que o
mensageiro é Elias. Marcos muda, na citação, duas formas pronominais, a mostrar
a importância d’Aquele-que-Vem: “Vou enviar o meu mensageiro
diante de ti, o qual preparará o teu caminho”. Continua,
pois, a ser o mensageiro de Deus (meu) que é enviado; e é-o para preparar o caminho de Jesus
(teu), adiante de Jesus (ti). O mensageiro é João, que satisfaz a função de Elias (cf Mc 9,13;
Mc 11,14). E a citação de Isaías 40,3 aparece
inalterada em Marcos 1,3: «Voz do que clama no deserto: “Preparai o caminho do
Senhor”», em que a voz é João e o caminho
do Senhor é o de Jesus, o Filho de Deus que vem até nós e cuja vinda devemos
preparar, pois não basta ficar à espera, mas a sua relevância postula a espera
ativa da preparação e da esperança. No entanto, o caminho santo do Advento (“Ele mesmo
andará nesse caminho” – Is 35,8) não é tanto
o nosso caminho para Deus, mas, antes de mais, “o caminho de Deus para nós”.
João não se
sente capaz (ikanós) de desatar
a correia das sandálias d’Aquele-que-Vem (1,7). É, sem dúvida, a confissão de humildade da parte de João face a Quem lhe
é incomparavelmente superior. Porém, Dom António Couto, para mostrar que esta
confissão de humildade “não esgota a metáfora das sandálias”, cita o artigo “As sandálias do Messias noivo”, de Luís
Alonso-Schökel, que remete “este dizer e esta metáfora para o domínio da
esponsalidade do Messias”, visto que, segundo referem os Salmos 60,10 e 108,9,
“pôr a sandália sobre” significa “tomar posse de” – “linguagem jurídica de
posse”. Efetivamente, segundo o Deuteronómio (Dt 25,5-9), o não cumprimento da lei do levirato implica a
retirada a sandália ao cunhado não cumpridor da lei, o que lhe garante a perda
de posse no âmbito matrimonial. Aqui já se trata de direito matrimonial; e, em
Rute 4,7-10, temos um caso daquele que tem o direito de resgatar o património e
de desposar Rute, mas prescinde desse direito. Para o dizer juridicamente, em
reunião pública à porta da cidade (Rt 4,1), o homem em causa tira a sandália e entrega-a a Booz,
que fica com o direito de resgatar o património e desposar Rute. Por isso, a
metáfora da sandália em Marcos 1,7 e nos demais dizeres do NT “significa também
que é Jesus o noivo, a quem assiste o direito de desposar Israel, e que a João
não assiste esse direito ou competência”.
Segundo
Marcos, acorria a João “toda a gente” da região
da Judeia e todos os habitantes de Jerusalém” para serem batizados, confessando
os seus pecados. Porém, há de ter-se em conta que essa afirmação é hiperbólica.
Contudo, ao apresentar esta perspetiva ideal da forma como a mensagem foi
acolhida pelo Povo, Marcos sugere o caráter decisivo e determinante da proposta
que João faz: não é “mais um” convite à conversão, mas é o último e definitivo
apelo de Deus ao seu Povo.
Ademais,
a identificação física de João com Elias
significa que a era messiânica chegou e que João é o mensageiro esperado, cuja
mensagem prepara a chegada do Messias libertador. João fala da força do Messias
e define a sua missão como “batizar no Espírito”. Tanto a fortaleza como o dom
do Espírito são prerrogativas do Messias, segundo a catequese profética (cf Is 9,6; 11,2). Portanto, o Messias terá a força de Deus e a sua missão
será comunicar esse Espírito de Deus, que transforma, renova e recria os
corações dos homens.
Em suma, João é o mensageiro enviado por Deus para preparar
os homens para a chegada do Messias. A mensagem transmitida por João – com a
palavra e com a vida – é um apelo à mudança de vida e de mentalidade, para que
a proposta do Libertador encontre lugar no coração do homem e lhe comunique o
Espírito que o transforma, na pessoa e na comunidade.
Enfim, se o
Advento é sobretudo o caminho de Deus ao nosso encontro, também, como alerta
São Pedro (2 Pe 3,8-14), no trecho
tomado como 2.ª leitura desta dominga, o tempo de Deus não é o nosso tempo,
pois “um dia, para Ele, é como mil anos e mil anos como um dia” (2 Pe 3,8;
cf Sl 90,4). É a
paciência de Deus que espera a nossa conversão, que é uma graça que tem de se
pedir, acolher e cultivar. O tempo é-nos dado para alijarmos futilidades que
nos pesam e nos prendem.
Por isso, o
Advento reclama de nós vestes novas, dado que novos céus e nova terra surgirão (2Pe 3,13), habitados por filhos e irmãos, que entendem a nova
linguagem da paz, justiça, fidelidade, mansidão, misericórdia (Sl 85) – o que postula, como o Papa dizia neste domingo, “desapego do
pecado e da mundanização e busca de Deus e do seu reino”, sabendo-se que
“o abandono do conforto e da mentalidade mundana não é por si só um
objetivo, mas visa alcançar algo maior, ou seja, o reino de Deus, a comunhão
com Deus, a amizade com Deus”.
Se percebermos os sinais do Deus
que vem, teremos um Natal como nunca tivemos!
2020.12.06 – Louro de Carvalho
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