terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Os homens não nasceram para morrer, mas para recomeçar

 

A 21 de dezembro, no encontro com os membros da Cúria Romana para a apresentação dos votos natalícios ao Papa na Sala das Bênçãos, após as palavras de saudação do Cardeal Decano, Francisco pronunciou, como é habitual, o seu discurso sobre o Natal e a postura do corpo de colaboradores no governo da Igreja. E, no fim, ofereceu de prenda a cada um dois livros: a vida de Carlos de Foucauld, um Mestre da crise, que nos deixou um dom, oferta do Padre Ardura; e “Holotropia: os verbos da familiaridade cristã”, dum biblista, discípulo do Cardeal Martini, que trabalhou em Milão, mas que é da diocese de Albenga-Imperia.     

Sustentando que o Natal de Jesus é o mistério dum nascimento que releva que “os homens, embora tenham de morrer, não nasceram para morrer, mas para recomeçar” – como observa a filósofa Hanna Arendt, que inverte o pensamento de Heidegger, para quem “o homem nasce para ser lançado na morte”, pois, no entender de Arendt, “o milagre que preserva o mundo (…) é, em última instância, o facto da natalidade” –, o Papa vincou a “fé e esperança no mundo” por parte de quem vive o anúncio da “feliz notícia” do advento: “Um menino nasceu para nós”.

Exortou a que, frente ao mistério da Encarnação expresso no Menino reclinado na manjedoura e ao Mistério Pascal do Crucificado, nos apresentemos “desarmados, humildes, essenciais” e vivamos o programa paulino da abjuração do azedume, raiva, ira, gritaria, injúria e maldade, assumindo a bondade, compaixão e perdão, feitos servos de todos. E recordou que Santo Inácio pede que nos imaginemos no cenário do presépio dos pobres, “fazendo-me eu pobre e indigno servo que olha para eles, contempla-os e serve-os nas suas necessidades”.

Considerando que este Natal fica marcado pela múltipla crise, que se tornou “uma realidade partilhada por todos”, disse que o flagelo da pandemia constituiu “uma grande ocasião para nos convertermos e recuperarmos a autenticidade”. E, evocando a imagem da tempestade exposta a 27 de março na Praça de São Pedro vazia de gente, mas cheia de “presença fraterna”, reiterou que a tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade, as falsas e supérfluas seguranças, os programas, projetos, hábitos e prioridades; põe a nu os propósitos de “empacotar” e esquecer o que alimentou a alma das comunidades e povos; faz cair a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso “eu” sempre preocupado com a própria imagem; e fica a descoberto a “pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”.

Vincando que a Providência lhe dera a graça de escrever a “Fratelli tutti”, sobre a fraternidade e a amizade social, salientou a lição da narrativa do nascimento de Jesus, a da união cúmplice dos protagonistas: Maria, José, pastores, magos e quantos ofereceram a sua fraternidade e amizade, “para poder ser acolhido na escuridão da história o Verbo que Se fez carne”.

E, tendo proposto na encíclica que do reconhecimento da dignidade de cada pessoa humana se fizesse renascer “um anseio mundial de fraternidade”, de modo que ninguém se sinta a caminhar sozinho, mas em comunidade solidária, apresentou uma deambulação histórica pela crise.

Começou por assegurar que se trata duma “etapa obrigatória da história pessoal e da história social” e que, enquanto facto extraordinário, provoca sentimentos de trepidação, angústia, desequilíbrio e incerteza. E, pinçando algumas personalidades bíblicas de entre a floresta das que foram surpreendidas pela crise, destacou: Abraão, provado na fé deixando a sua terra e disponibilizando-se a sacrificar a Deus o seu único filho, mas premiado com a bela promessa do nascimento dum novo povo; Moisés, que sentiu a falta de confiança em si mesmo, mas a quem o Senhor constituiu como o seu servo que guiou o povo para fora do Egito; Elias, o profeta tão forte e comparado ao fogo, que desejou a morte e que depois experimentou a presença de Deus, não no vento impetuoso, no tremor de terra ou no fogo, mas no “murmúrio duma brisa suave”; João Batista, acabrunhado pela dúvida sobre a identidade messiânica de Jesus porque não Se apresentava como o justiceiro, mas que, depois da prisão do precursor é que Jesus começou a pregar o Evangelho de Deus; e Paulo de Tarso, abalado pelo encontro com Cristo no caminho de Damasco e impelido a deixar as suas seguranças para O seguir, tornando-se o artífice que impeliu a Igreja a sair do recinto de Israel para chegar aos confins da terra.

Porém, segundo o Santo Padre, a crise mais eloquente é a de Jesus, pois inaugura a vida pública com a experiência das tentações (o tentador é o diabo, mas é o Espírito Santo que leva Jesus ao deserto), experiência de fome, fragilidade e cansaço. E Jesus mostra que nunca se dialoga com o diabo. Depois, encarou a indescritível crise do Getsémani, a da solidão, medo, angústia, traição e abandono. E, por fim, veio a crise extrema na cruz: a da solidariedade com os pecadores até ao ponto de Se sentir abandonado pelo Pai. Não obstante, foi com plena confiança que entregou o seu espírito nas mãos do Pai, do que resultou a abertura do caminho da ressurreição.

À luz da reflexão sobre a crise, o Sumo Pontífice exortou a que não se julgue precipitadamente a Igreja com base nas crises dos escândalos, como fez o profeta Elias que, desabafando com o Senhor, Lhe fez uma descrição da realidade sem esperança, quando “uma leitura da realidade sem esperança” não é “realista”, já que é a esperança que “dá às nossas análises o que muitas vezes o nosso olhar míope é incapaz de captar”. E Deus, respondendo a Elias que a realidade não é como ele a percebeu e ordenou-lhe:

Vai e volta pelo caminho do deserto em direção a Damasco (…), deixarei com vida em Israel sete mil homens que não ajoelharam perante Baal e cujos lábios não o beijaram” (1Rs 19, 15.18).  

E, garantindo que “Deus continua a fazer germinar as sementes do seu Reino no meio de nós”, frisou que, “na Cúria, muitos são os que dão testemunho com o trabalho humilde, discreto, sem murmurações, silencioso, leal, profissional, honesto”. Depois, observou que não olhar a crise à luz do Evangelho é como “fazer a autópsia dum cadáver”. Assim, sentenciou que o susto que nos advém da crise resulta do facto de nos esquecermos de a avaliar como o Evangelho nos convida a fazê-lo e de olvidarmos que “o Evangelho é o primeiro a colocar-nos em crise”. Ao invés, se reencontrarmos a coragem humilde de dizer em voz alta que “o tempo da crise é um tempo do Espírito”, então, na experiência da escuridão, fraqueza, fragilidade, contradições, confusão, não haverá lugar a esmagamento, mas “conservaremos sempre a confiança íntima de que as coisas estão prestes a assumir uma forma nova, nascida exclusivamente da experiência duma graça escondida na escuridão” – assegurou o Papa Bergoglio.

E concluiu a deambulação pela crise distinguindo crise de conflito. A crise tem um desfecho positivo, ao passo que o conflito cria contraste, competição, antagonismo aparentemente sem solução, com amigos a amar e inimigos a combater e a vitória duma das partes. Depois, a lógica do conflito busca, estigmatiza e despreza os culpados; e leva os que se julgam justos a alijar as responsabilidades. Neste ambiente, sobressai a perda do sentido duma pertença comum e a afirmação de certas atitudes elitistas e de grupos fechados com “lógicas restritivas e parciais”, que empobrecem a universalidade da missão. E, nesta lógica, a Igreja divide-se, polariza-se, perverte-se e atraiçoa a sua natureza. Como corpo perenemente em crise, está viva, mas, se se lhe junta o conflito, “semeará temor, tornar-se-á mais rígida, menos sinodal e imporá uma lógica uniforme e uniformizadora, muito distante da riqueza e pluralidade que o Espírito deu à sua Igreja” – advertiu o Papa, que, a partir da citação do versículo joânico “se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto(Jo 12,24), frisou:

O ato de morrer da semente é ambivalente, porque assinala simultaneamente o fim dalguma coisa e o início doutra. Ao mesmo momento chamamos morte-apodrecer e nascimento-germinar, porque são a mesma coisa: diante dos nossos olhos, vemos um fim e, ao mesmo tempo, naquele fim manifesta-se um novo início.”.

E declarou que, “se um certo realismo nos mostra a nossa história recente apenas como a soma de tentativas, nem sempre bem-sucedidas”, nem por isso nos devemos assustar, nem negar a evidência de tudo o que “em nós e nas nossas comunidades é afetado pela morte e precisa de conversão”, pois, “só morrendo para uma certa mentalidade, é que conseguiremos também abrir espaço à novidade que o Espírito suscita constantemente no coração da Igreja” – a metanoia.

E a dinâmica da crise, segundo o Pontífice, postula que se deixe de pensar na reforma da Igreja “como remendo dum vestido velho ou mera redação duma nova constituição apostólica”, visto que “não se trata de ‘remendar uma peça de vestuário’, porque a Igreja não é simples ‘vestido’ de Cristo, mas o seu Corpo que abraça a história inteira”. Neste sentido, não podemos “mudar ou reformar o Corpo de Cristo”, pois Cristo é “o mesmo ontem, hoje e pelos séculos”, mas “revestir com um vestido novo aquele mesmo Corpo”, para que resulte que “a graça possuída não vem de nós, mas de Deus”. E, se nós ou a Igreja, que transportamos em vasos de barro o tesouro de Deus, “riscássemos Deus, rico em misericórdia, da nossa vida, esta seria uma farsa”.

Ora, como observa o Bispo de Roma aos seus colaboradores diretos, em período da crise, Jesus acautela-nos dalgumas tentativas de saída condenadas ao fracasso, como a que “recorta um bocado de roupa nova para o deitar em roupa velha”: ficará rasgada a parte nova.

Aí, a postura correta é a do “doutor da Lei instruído acerca do Reino dos céus, semelhante ao pai de família que tira coisas novas e antigas do seu tesouro” (Mt 13,52). E, como ensinou Bento XVI, o tesouro é a Tradição, qual “rio vivo que nos liga às origens, o rio vivo no qual as origens estão sempre presentes, o grande rio que nos conduz ao porto da eternidade” – ou seja, “a Tradição é a salvaguarda do futuro e não um museu, guardião das cinzas”; é o congraçamento das coisas antigas, a verdade e a graça que já possuímos, com as coisas novas os ângulos da verdade que vamos compreendendo (“ut annis scilicet consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate – fortalece-se com o decorrer dos anos, desenvolve-se com o andar dos tempos, cresce através das idades”).

Assim, há que aceitar a crise como “um tempo de graça que nos foi dado para compreender a vontade de Deus sobre cada um de nós e a Igreja”, na certeza de que “Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças, mas, com a tentação, vos dará os meios de sair dela e a força para a suportar(1Cor 10,13); nunca interromper o diálogo orante com Deus, mesmo que fatigante, pois a oração permitir-nos-á ter esperança, para lá do que se podia esperar; e, sobretudo, deixar de viver em conflito e sentir-nos a caminho, abertos à crise, pois o caminho tem a ver com os verbos de movimento, sendo a murmuração o primeiro mal a que nos leva o conflito e do qual devemos procurar fugir.

E o Papa recordou que o Evangelho releva que os pastores acreditaram no anúncio do Anjo e acorreram a ver Jesus, ao passo que Herodes se fechou diante da narração dos Magos e transformou o seu fechamento em mentira e violência.

Nestes termos, o Romano Pontífice pediu expressamente a quantos o acompanham no serviço do Evangelho a prenda de Natal da “colaboração generosa e apaixonada no anúncio da Boa Nova sobretudo aos pobres”, lembrados de que “só conhece verdadeiramente a Deus quem acolhe o pobre que vem de baixo com a sua miséria e que, precisamente nestas vestes, é enviado do Alto”. E, como não podemos ver o rosto de Deus, mas podemos experimentá-lo ao olhar para nós quando honramos o rosto do próximo (…), o rosto dos pobres”, ficamos cientes de que “os pobres são o centro do Evangelho”.

Por fim, Francisco pretende que ninguém dificulte voluntariamente a obra que o Senhor está a realizar neste momento e todos peçamos o dom da humildade do serviço a fim de que “Ele cresça e nós diminuamos(cf Jo 3,30).

***

É de sublinhar que o cardeal Re, decano do Colégio Cardinalício, no seu discurso, frisou que a atmosfera de serenidade, alegria e festa que anualmente carateriza a celebração do evento mais alto da história, o do Filho de Deus que Se fez homem, este ano é perturbada pela pandemia da covid-19, o que reforça a necessidade de reunir em torno do Papa “em comunhão de fé, de pensamento e de compromisso de serviço para o bem da Igreja e da humanidade”, certos de que “o Menino que vem até nós no Natal continua a ser a nossa grande esperança também para os graves problemas que temos de enfrentar nesta época difícil e conturbada”.

Sobre o ano prestes a findar, Re anotou que ficará na história pelo drama causado pelo pequeno vírus e pela imagem do Papa que, sozinho, rezou e falou ao mundo no evocativo e majestoso, mas vazio cenário da Praça São Pedro, e que  permanecerão vivos nas mentes e corações os discursos das quartas-feiras, os Angelus dominicais e as muitas iniciativas do Papa, de apoio, conforto e encorajamento num ano de sofrimento e dificuldades, em que a pobreza de muitos tem aumentado, a par do aumento da generosidade e solidariedade de muitos, com expressões de solidariedade nunca dantes vistas. E o purpurado afirmou que “a Igreja se confirmou próxima da gente, com particular atenção aos sofredores, pobres, marginalizados, pessoas sozinhas e, de modo especial, às pessoas afetadas pelo coronavírus, sobressaindo a dedicação dos sacerdotes.

A pandemia não abrandou a intensa atividade do Papa, cujas palavras têm sido um farol de luz, conforto e esperança, nem impediu a realização de grandes iniciativas a nível mundial como o “Pacto Educativo Global” e o encontro em Assis dos jovens para “A Economia de Francisco”, embora no modo online. E Re enfatizou que um dos eventos de maior ressonância foi a terceira Encíclica de Francisco, “Fratelli tutti”, assinada em Assis, diante do Túmulo de São Francisco, lugar de grande significado simbólico, e que teve imediata e ampla divulgação e acolhimento, com a sua mensagem de fraternidade e amizade social que não exclui ninguém e com o convite a cuidar uns dos outros e a promover uma sociedade fundada na fraternidade.

Recordou que, para o centenário do nascimento de São João Paulo II, ocorrido no último dia 20 de maio, Francisco tinha planeado uma solene Concelebração Eucarística na Praça São Pedro, com a presença duma grande peregrinação da Polónia, mas a situação de emergência criada pelo coronavírus só permitiu ao Santo Padre celebrar a Missa naquela manhã no altar do túmulo do Santo na Basílica do Vaticano, explicando na homilia que o seu predecessor foi um modelo de Bispo que reza e de Pastor próximo do povo, um vigoroso promotor de justiça no mundo e um fervoroso apóstolo da Divina Misericórdia.

2020.12.22 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário