Bruxelas e Londres fecharam, no dia 24 de dezembro,
véspera do Natal, um acordo com duas mil páginas que procura evitar o caos,
proporcionando uma saída airosa da União Europeia (UE) por parte do Reino Unido (UK).
Ora, após tantas manifestações de júbilo por parte
dos acordantes e das vozes de figuras de proa de Estados-membros da UE, incluindo
governantes portugueses, importa saber em que termos vai funcionar a relação entre
as duas entidades que acabaram por chegar a acordo após 11 meses de discussão,
já depois de esgotado o prazo para as negociações, por contemporização de
Bruxelas, mas ainda antes do termo do prazo de transição (1 de janeiro de 2021).
Dos passaportes às tarifas, das
pescas à segurança, o acordo do pós-Brexit, com mais de duas mil páginas, evitará
uma saída desordenada e garantirá aos britânicos o acesso ao mercado único
europeu (sem tarifas ou
quotas), mas poderá ser
um pesadelo burocrático para cidadãos e empresas. Na verdade, continuam a ser muitas as dúvidas e as
potenciais perdas para cidadãos e empresas, como deixavam antever os vários pontos de tensão
entre as partes, com as pescas, os transportes e as políticas de concorrência a
constituir os dossiês mais espinhosos.
A Comissão
Europeia já revelou os principais aspetos do acordo comercial alcançado no dia
24, que estabelece um novo marco económico e comercial após a saída do UK do
mercado único e da união alfandegária.
Assim,
em termos da Circulação de pessoas, não serão beliscados os direitos dos
cerca de três milhões de cidadãos europeus que residem no UK nem do milhão de
britânicos que vivem em estados-membros da UE. No entanto, a partir de 1 de
janeiro, quem quiser visitar o Reino Unido só o poderá fazer por um período
máximo de três meses e sem direito a trabalhar ou estudar. E, para estadas mais
prolongadas, terá de ser pedido visto. Mais: de 1 de outubro de 2021 em diante,
será necessário apresentar passaporte para entrar no Reino Unido. Apenas os
cidadãos irlandeses estarão dispensados desse condicionalismo.
No âmbito da Segurança e da Cooperação judicial,
o Reino Unido continua a colaborar em investigações internacionais, mas vai
abandonar, por exemplo, o sistema do mandado de detenção europeu. Deixará de
integrar de pleno direito a Europol, serviço europeu de polícia, e a Eurojust, agência
europeia para a cooperação judiciária. Todavia, conservará um mecanismo de
acesso privilegiado ao Sistema de Informação de Schengen (SIS
II), a base de dados
de partilha de alertas policiais acerca de bens furtados e pessoas
desaparecidas.
O acordo “estabelece
um novo marco” em relação à cooperação policial e judicial, destinado “concretamente
a lutar contra a delinquência transfronteiriça e o terrorismo”.
Esta
cooperação poderia ficar congelada se Londres se recusasse a fazer parte da
Convenção Europeia dos Direitos Humanos ou “a aplicá-la em nível nacional”.
A nível
das Trocas
comerciais, preveem-se taxas aduaneiras a zero e quotas também a zero -
para “todos os bens que respeitem as regras de origem apropriadas” (condições inéditas nos acordos
comerciais) –, com o
objetivo de não fazer cair a pique a intensidade das importações e das
exportações entre as duas partes, que em 2019, somadas, totalizavam perto de
500 milhões de euros. Assim, as empresas britânicas manterão o acesso ao
mercado único europeu e aos seus 450 milhões de consumidores, enquanto as
empresas europeias poderão continuar a vender os seus produtos aos 66 milhões
de britânicos. Nestes termos, o presente acordo comercial, inédito, evitará o
rompimento das cadeias de produção, o que teria sido muito problemático para alguns
setores, como o automóvel. Ainda assim, tanto Bruxelas como Londres preveem o reforço dos controlos
fronteiriços e o aperto da malha às declarações fiscais de quem entra e de quem
sai. O impacto da burocracia pode ser enorme, sobretudo no transporte de
mercadorias feito pelos camiões que cruzam o Canal da Mancha.
Relativamente
à Proteção
do selo de qualidade, haverá pleno reconhecimento dos direitos de
produção e comercialização de bens certificados, o que postula que os
produtores europeus terão de cumprir os padrões britânicos e vice-versa.
No atinente
à Concorrência,
UK e UE comprometem-se a respeitar condições de
concorrência equitativas entre as empresas, “mantendo níveis de proteção
elevados em âmbitos como a proteção ambiental, a luta contra o aquecimento
global, a taxação do carbono, os direitos sociais e trabalhistas, a transparência
fiscal e as ajudas estatais”. E, se alguma das partes não respeitar estas condições, poderão
ser adotadas “medidas corretivas”, como direitos aduaneiros.
Haverá
um mecanismo de fiscalização e sancionamento caso a UE ou o UK se sintam
lesados pelas políticas económicas, sociais, laborais e até ambientais da
contraparte. Os apoios e subsídios estatais a empresas obedecerão a princípios
rígidos de transparência.
E, em termos de arbitragem, ficou acordado que, se o UK ou a UE não
respeitarem o tratado, um mecanismo de arbitragem, como os existentes na
maioria dos acordos comerciais, resolverá os litígios. Por vontade reiteradamente
expressa pelo UK, nomeadamente pela voz de Boris Johnson, o Tribunal de Justiça
da UE não intervirá. Um Conselho
Conjunto vigiará pela correta interpretação e aplicação do acordo.
Quanto
aos Transportes,
ficou estabelecido que é para manter a conectividade área, marítima,
ferroviária e rodoviária, embora de forma menos vantajosa do que se o Reino
Unido continuasse a fazer parte do mercado único.
As
cartas de condução europeias continuarão a ser válidas no Reino Unido, uma vez
que o acordo dispensa o pedido de licenças internacionais. Todavia, a entrada
em solo britânico com um veículo pressuporá uma carta verde ou um documento que
ateste a cobertura por um seguro.
Não obstante,
o entendimento Bruxelas-Londres inclui artigos que garantem uma concorrência
equitativa e igualdade de condições entre as companhias (dos vários modos de transporte) europeias e britânicas, “para que os
direitos dos passageiros, dos trabalhadores e a segurança nos transportes não
sejam prejudicados”.
Em
relação às Pescas, ficou acordado que as frotas europeias continuarão a
ter acesso aos mares britânicos até junho de 2026, mas com uma condição: durante este período transitório, a UE renunciará, em favor
de Londres, a 25% da sua cota anual em águas britânicas, avaliada em 650
milhões de euros ao ano. Após
essa data, haverá negociação anual de quotas.
Como detalhe
não negligenciável, ressalta que ainda não foram determinadas as espécies e as
zonas abrangidas pela redução.
No âmbito
da Ciência,
o Reino Unido continuar a fazer parte de alguns programas da UE entre 2021 e 2027. Por exemplo,
participará (inclusivamente
pagando), durante os
próximos sete anos, no Horizon Europe,
o principal programa-quadro de inovação e investigação da UE. Permanecerá igualmente
ligado ao Copérnico e à Euratom. Mas deixará de fazer parte de outros, como o
de intercâmbio universitário Erasmus.
Em relação
ao intercâmbio Erasmus, o Primeiro-Ministro
britânico, alegou questões de custo (“extremamente caro” para o Reino Unido) e anunciou um
programa global nacional para o substituir, com o nome do matemático e
cientista da computação britânico Alan Turing, para permitir que estudantes britânicos frequentem as melhores universidades de todo
o mundo, não só da Europa.
Os europeus, se quiserem estudar no UK, é que terão custos
acrescidos.
Por fim, ressalta que, no
quadro da Política externa, o tratado não afeta a cooperação na política externa,
segurança externa e defesa, pois os britânicos não quiseram negociar estas
questões.
***
Em suma, o acordo abrange o comércio de bens e
serviços, bem como áreas como investimento, concorrência, auxílios estatais,
transparência fiscal, transportes aéreos e rodoviários, energia e
sustentabilidade, pescas, proteção de dados e coordenação da segurança social.
Prevê tarifas e quotas zero para todos os bens
que respeitem as regras de origem adequadas.
UK e UE comprometem-se a assegurar condições de concorrência
equitativas, mantendo elevados níveis de proteção em áreas como
o ambiente, alterações climáticas e os preços do carbono, direitos sociais e
laborais, transparência fiscal e os auxílios estatais, com aplicação efetiva a
nível interno, com um mecanismo de resolução de litígios vinculativo e a
possibilidade de ambas as partes tomarem medidas corretivas.
UE e UK acordaram num quadro de gestão conjunta das
pescas nas águas partilhadas por ambos. Continuarão
as atividades de pesca do UK; serão salvaguardadas as atividades e meios de
subsistência das comunidades pesqueiras europeias; e serão preservados os
recursos naturais.
Relativamente aos transportes, o prevê-se a
continuidade e a sustentabilidade da conectividade aérea, rodoviária,
ferroviária e marítima, embora o acesso ao mercado seja
inferior ao que o mercado único oferece.
Quento à energia, prevê-se
novo modelo de comércio e interconetividade, com garantias de concorrência
aberta e leal, incluindo normas de segurança para offshore, e de produção de energia
renovável.
No atinente à coordenação da segurança social, assegura-se uma série de direitos dos cidadãos
da UE e dos do UK, isto é, dos da UE que trabalham, viajam ou
se mudam para o UK e dos cidadãos britânicos que trabalham, viajam ou se mudam
para a UE após 1 de janeiro de 2021.
Permite-se a participação contínua do Reino
Unido numa série de programas emblemáticos da UE para o período 2021-2027 (sujeito a uma contribuição
financeira do UK para o orçamento da UE).
***
Há agora um roteiro para a concretização formal do
acordo, em que se prevê que a Comissão Europeia formulará uma proposta que
apresentará à apreciação dos Estados-membros O Conselho adotará uma decisão sobre a assinatura e possível aplicação provisória do
acordo. Se os prazos se concretizarem, a decisão será publicada no Jornal
Oficial da União Europeia, permitindo a entrada em vigor, provisória a 1 de
janeiro. Mais tarde, prevê-se que, na primeira sessão plenária do próximo ano,
o Parlamento Europeu vote então o acordo, como se prevê que o
Parlamento britânico também o faça. E, finalmente o Conselho adotará uma
posição final.
Sabe-se que a antiga Primeira-Ministra
Theresa May pretende ler os termos do acordo. Percebe-se, dado que tanto lutou
pela concretização dum acordo, quando o Parlamento britânico sempre rejeitou os
termos do por ela acordado com Bruxelas. Será desta vez?
***
Um bom e mútuo presente de Natal!
2020.12.25 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário