sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Conteúdo e objetivo do acordo pós-Brexit entre Londres e Bruxelas

 

Bruxelas e Londres fecharam, no dia 24 de dezembro, véspera do Natal, um acordo com duas mil páginas que procura evitar o caos, proporcionando uma saída airosa da União Europeia (UE) por parte do Reino Unido (UK).  

Ora, após tantas manifestações de júbilo por parte dos acordantes e das vozes de figuras de proa de Estados-membros da UE, incluindo governantes portugueses, importa saber em que termos vai funcionar a relação entre as duas entidades que acabaram por chegar a acordo após 11 meses de discussão, já depois de esgotado o prazo para as negociações, por contemporização de Bruxelas, mas ainda antes do termo do prazo de transição (1 de janeiro de 2021).  

Dos passaportes às tarifas, das pescas à segurança, o acordo do pós-Brexit, com mais de duas mil páginas, evitará uma saída desordenada e garantirá aos britânicos o acesso ao mercado único europeu (sem tarifas ou quotas), mas poderá ser um pesadelo burocrático para cidadãos e empresas. Na verdade, continuam a ser muitas as dúvidas e as potenciais perdas para cidadãos e empresas, como deixavam antever os vários pontos de tensão entre as partes, com as pescas, os transportes e as políticas de concorrência a constituir os dossiês mais espinhosos.

A Comissão Europeia já revelou os principais aspetos do acordo comercial alcançado no dia 24, que estabelece um novo marco económico e comercial após a saída do UK do mercado único e da união alfandegária.

Assim, em termos da Circulação de pessoas, não serão beliscados os direitos dos cerca de três milhões de cidadãos europeus que residem no UK nem do milhão de britânicos que vivem em estados-membros da UE. No entanto, a partir de 1 de janeiro, quem quiser visitar o Reino Unido só o poderá fazer por um período máximo de três meses e sem direito a trabalhar ou estudar. E, para estadas mais prolongadas, terá de ser pedido visto. Mais: de 1 de outubro de 2021 em diante, será necessário apresentar passaporte para entrar no Reino Unido. Apenas os cidadãos irlandeses estarão dispensados desse condicionalismo.

No âmbito da Segurança e da Cooperação judicial, o Reino Unido continua a colaborar em investigações internacionais, mas vai abandonar, por exemplo, o sistema do mandado de detenção europeu. Deixará de integrar de pleno direito a Europol, serviço europeu de polícia, e a Eurojust, agência europeia para a cooperação judiciária. Todavia, conservará um mecanismo de acesso privilegiado ao Sistema de Informação de Schengen (SIS II), a base de dados de partilha de alertas policiais acerca de bens furtados e pessoas desaparecidas.

O acordo “estabelece um novo marco” em relação à cooperação policial e judicial, destinado “concretamente a lutar contra a delinquência transfronteiriça e o terrorismo”.

Esta cooperação poderia ficar congelada se Londres se recusasse a fazer parte da Convenção Europeia dos Direitos Humanos ou “a aplicá-la em nível nacional”.

A nível das Trocas comerciais, preveem-se taxas aduaneiras a zero e quotas também a zero - para “todos os bens que respeitem as regras de origem apropriadas” (condições inéditas nos acordos comerciais) –, com o objetivo de não fazer cair a pique a intensidade das importações e das exportações entre as duas partes, que em 2019, somadas, totalizavam perto de 500 milhões de euros. Assim, as empresas britânicas manterão o acesso ao mercado único europeu e aos seus 450 milhões de consumidores, enquanto as empresas europeias poderão continuar a vender os seus produtos aos 66 milhões de britânicos. Nestes termos, o presente acordo comercial, inédito, evitará o rompimento das cadeias de produção, o que teria sido muito problemático para alguns setores, como o automóvel. Ainda assim, tanto Bruxelas como Londres preveem o reforço dos controlos fronteiriços e o aperto da malha às declarações fiscais de quem entra e de quem sai. O impacto da burocracia pode ser enorme, sobretudo no transporte de mercadorias feito pelos camiões que cruzam o Canal da Mancha.

Relativamente à Proteção do selo de qualidade, haverá pleno reconhecimento dos direitos de produção e comercialização de bens certificados, o que postula que os produtores europeus terão de cumprir os padrões britânicos e vice-versa.

No atinente à Concorrência, UK e UE comprometem-se a respeitar condições de concorrência equitativas entre as empresas, “mantendo níveis de proteção elevados em âmbitos como a proteção ambiental, a luta contra o aquecimento global, a taxação do carbono, os direitos sociais e trabalhistas, a transparência fiscal e as ajudas estatais”. E, se alguma das partes não respeitar estas condições, poderão ser adotadas “medidas corretivas”, como direitos aduaneiros.

Haverá um mecanismo de fiscalização e sancionamento caso a UE ou o UK se sintam lesados pelas políticas económicas, sociais, laborais e até ambientais da contraparte. Os apoios e subsídios estatais a empresas obedecerão a princípios rígidos de transparência.

E, em termos de arbitragem, ficou acordado que, se o UK ou a UE não respeitarem o tratado, um mecanismo de arbitragem, como os existentes na maioria dos acordos comerciais, resolverá os litígios. Por vontade reiteradamente expressa pelo UK, nomeadamente pela voz de Boris Johnson, o Tribunal de Justiça da UE não intervirá. Um Conselho Conjunto vigiará pela correta interpretação e aplicação do acordo.

Quanto aos Transportes, ficou estabelecido que é para manter a conectividade área, marítima, ferroviária e rodoviária, embora de forma menos vantajosa do que se o Reino Unido continuasse a fazer parte do mercado único.

As cartas de condução europeias continuarão a ser válidas no Reino Unido, uma vez que o acordo dispensa o pedido de licenças internacionais. Todavia, a entrada em solo britânico com um veículo pressuporá uma carta verde ou um documento que ateste a cobertura por um seguro.

Não obstante, o entendimento Bruxelas-Londres inclui artigos que garantem uma concorrência equitativa e igualdade de condições entre as companhias (dos vários modos de transporte) europeias e britânicas, “para que os direitos dos passageiros, dos trabalhadores e a segurança nos transportes não sejam prejudicados”.

Em relação às Pescas, ficou acordado que as frotas europeias continuarão a ter acesso aos mares britânicos até junho de 2026, mas com uma condição: durante este período transitório, a UE renunciará, em favor de Londres, a 25% da sua cota anual em águas britânicas, avaliada em 650 milhões de euros ao ano. Após essa data, haverá negociação anual de quotas.

Como detalhe não negligenciável, ressalta que ainda não foram determinadas as espécies e as zonas abrangidas pela redução.

No âmbito da Ciência, o Reino Unido continuar a fazer parte de alguns programas da UE entre 2021 e 2027. Por exemplo, participará (inclusivamente pagando), durante os próximos sete anos, no Horizon Europe, o principal programa-quadro de inovação e investigação da UE. Permanecerá igualmente ligado ao Copérnico e à Euratom. Mas deixará de fazer parte de outros, como o de intercâmbio universitário Erasmus.

Em relação ao intercâmbio Erasmus, o Primeiro-Ministro britânico, alegou questões de custo (“extremamente caro” para o Reino Unido) e anunciou um programa global nacional para o substituir, com o nome do matemático e cientista da computação britânico Alan Turing, para permitir que estudantes britânicos frequentem as melhores universidades de todo o mundo, não só da Europa.

Os europeus, se quiserem estudar no UK, é que terão custos acrescidos.

Por fim, ressalta que, no quadro da Política externa, o tratado não afeta a cooperação na política externa, segurança externa e defesa, pois os britânicos não quiseram negociar estas questões.

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Em suma, o acordo abrange o comércio de bens e serviços, bem como áreas como investimento, concorrência, auxílios estatais, transparência fiscal, transportes aéreos e rodoviários, energia e sustentabilidade, pescas, proteção de dados e coordenação da segurança social.

Prevê tarifas e quotas zero para todos os bens que respeitem as regras de origem adequadas.

UK e UE comprometem-se a assegurar condições de concorrência equitativas, mantendo elevados níveis de proteção em áreas como o ambiente, alterações climáticas e os preços do carbono, direitos sociais e laborais, transparência fiscal e os auxílios estatais, com aplicação efetiva a nível interno, com um mecanismo de resolução de litígios vinculativo e a possibilidade de ambas as partes tomarem medidas corretivas.

UE e UK acordaram num quadro de gestão conjunta das pescas nas águas partilhadas por ambos. Continuarão as atividades de pesca do UK; serão salvaguardadas as atividades e meios de subsistência das comunidades pesqueiras europeias; e serão preservados os recursos naturais.

Relativamente aos transportes, o prevê-se a continuidade e a sustentabilidade da conectividade aérea, rodoviária, ferroviária e marítima, embora o acesso ao mercado seja inferior ao que o mercado único oferece. 

Quento à energia, prevê-se novo modelo de comércio e interconetividade, com garantias de concorrência aberta e leal, incluindo normas de segurança para offshore, e de produção de energia renovável.

No atinente à coordenação da segurança social, assegura-se uma série de direitos dos cidadãos da UE e dos do UK, isto é, dos da UE que trabalham, viajam ou se mudam para o UK e dos cidadãos britânicos que trabalham, viajam ou se mudam para a UE após 1 de janeiro de 2021.

Permite-se a participação contínua do Reino Unido numa série de programas emblemáticos da UE para o período 2021-2027 (sujeito a uma contribuição financeira do UK para o orçamento da UE).

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Há agora um roteiro para a concretização formal do acordo, em que se prevê que a Comissão Europeia formulará uma proposta que apresentará à apreciação dos Estados-membros O Conselho adotará uma decisão sobre a assinatura e possível aplicação provisória do acordo. Se os prazos se concretizarem, a decisão será publicada no Jornal Oficial da União Europeia, permitindo a entrada em vigor, provisória a 1 de janeiro. Mais tarde, prevê-se que, na primeira sessão plenária do próximo ano, o Parlamento Europeu vote então o acordo, como se prevê que o Parlamento britânico também o faça. E, finalmente o Conselho adotará uma posição final.  

Sabe-se que a antiga Primeira-Ministra Theresa May pretende ler os termos do acordo. Percebe-se, dado que tanto lutou pela concretização dum acordo, quando o Parlamento britânico sempre rejeitou os termos do por ela acordado com Bruxelas. Será desta vez?

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Um bom e mútuo presente de Natal!

2020.12.25 – Louro de Carvalho

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